José Lima Santana*
Zé
Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de
vento? Que o povo é besta? Besta é tu, que quer fazer o povo de besta. Num vem
que num tem”! O vereador, embora da situação, estava, dizia-se na cidade,
pronto para arribar para a oposição, de mala e cuia. Amâncio de Belinha,
pré-candidato a prefeito, apoiado pelo governador, que tinha rompido com o
prefeito João de Afonso Berro Grosso, convidara o vereador Zé Calango para o
ninho oposicionista.
O
rompimento do governador deu-se porque o prefeito andara deitando falação
contra o chefe do Executivo estadual. Tudo por causa de uma estrada, ligando
Pedra Azul a Barro Alto, que estava para completar dez anos e não saía da
terraplanagem. Na campanha eleitoral, o governador garantira, de pés juntos,
que terminaria a obra, iniciada na gestão anterior, em seis meses. Terminando o
mandato, a obra continuava parada como água de bacia.
O
prefeito João de Afonso Berro Grosso falara da leseira do governador, de suas
fanfarronices, da falta de cumprimento das promessas de campanha. A estrada de
Pedra Azul a Barro Alto era vital para o escoamento das safras de milho e
feijão, pois o Município era o segundo maior produtor do Estado, dessas dois
cereais. Os deputados Andrade Júnior e Bosco Pinto, estadual e federal,
respectivamente, aos quais João de Afonso apoiara, despejando uma cacada de
votos, estavam tirando o corpo fora. O prefeito, agoniado, via-se sozinho.
Agora, com a saída de Zé Calango, outros vereadores poderiam ser cooptados.
Cargos em comissão, no governo não faltavam. Porém, o candidato do prefeito à
sua sucessão não era de pouca envergadura. No passado, fora homem de rifle e punhal.
Ainda seria anunciado por João de Afonso.
O
prefeito ouviu, calado, o desabafo intencional de Zé Calango. Ouviu e deu-lhe
as costas. Zé Gregório, capanga do prefeito, perguntou, quase de assobio: “É
pra dar um jeito, chefe”? Não. Ainda não. O prefeito precisava fazer contas,
matutar direito, limpar as vistas, arejar o quengo. O seu pai, Afonso Berro
Grosso, que Deus o tivesse, ensinara que mingau se comia pelas beiradas, bem
devagar, com cuidado para não queimar a língua e os beiços. O governador era
poderoso, mas era um homem como ele. Só que mais rico, aliás, bem mais, e
estava no topo da escada. Mas, ele, João de Afonso não era marinheiro de
primeira viagem. E tinha raiz na política. Raiz familiar. Desde o bisavô
paterno. Sabia manejar para aqui e para acolá.
No sertão
dos Angicos, fora-se o tempo das barbaridades políticas, como fraudes nas
urnas, que não foram poucas, assassinatos de adversários e todo tipo de
esculhambação, que era perpetrada desde os idos do Império. Agora, tudo se
resolvia na maciota. No escorrego. E ainda contava com os arranjos de Chico de
Zé Bufinha.
O
prefeito João de Afonso matutou a manhã inteira. Entrou pela tarde. Avançou
pela noite. O governador era forte. Muito mais do que o prefeito, do que
qualquer prefeito. Mas, não era um tronco de baraúna, que, acoitado pela maior
ventania, não se bole do lugar. O pré-candidato a prefeito, Amâncio de Belinha,
que deveria se bater nas urnas contra o candidato ainda a ser apresentado pelo
prefeito, andava gastando uns trocados, de bodega em bodega, de beco em beco,
de povoado em povoado. Não perdia batizado de boneca, nem enterro de cachorro.
Andava de asas soltas e abertas. Antes, não tinha jeito de político, era
acanhado, cara emburrada, sorriso escondido, até remelentinho ele era.
Para
pirraçar o prefeito, o governador marcou uma visita à cidade, onde seria
recebido por Amâncio de Belinha, em faustoso jantar. Sábado. Pouco passava da
hora das badaladas do sino da Ave-Maria, quando a comitiva do governador
aportou na cidade. Amâncio e uma tropa, com estampidos de foguetes e rojões,
estavam na entrada principal da cidade, para recepcionar sua excelência. O
cortejo seguiu a pé para a casa de Amâncio, um casarão de quatro águas, na
Praça da Igreja. Uma banda de fanfarra, vinda de Barro Alto, cabeça da Comarca,
tocava um dobrado. As pessoas saiam às portas para ver o cortejo passar. Na Rua
do Melão, quando Sá Mariquinha de Maneca Pé de Pato, tirava uma baforada do
cachimbo, de chofre, a iluminação pública foi pro beleléu. Apagou tudo. Escuridão
de breu. Desde o fim da tarde, o céu nublara. Chuva à vista, daí o breu da
escuridão pouco depois das seis da noite. Até o amanhecer do dia, a cidade
ficaria às escuras. Botaram sal no doce do governador e do seu pré-candidato a
prefeito.
Dois dias
depois, Amâncio de Belinha foi diagnosticado com um mal súbito e bateu a
caçoleta. Chico de Zé Bufinha, sabia-se lá como, borrifara nas fuças do
pré-candidato uma aragem de pó de sovaco de morcego. Foi tiro e queda. Diante
dos novos fatos, Zé Calango preferiu não arredar pé do lado do prefeito João de
Afonso. Ninguém saiu. Pelo contrário, muitas adesões foram recebidas.
Dona
Julinha de Santo Rezador, alardeou, com a boca sem dentes: “João de Afonso é
peia. Caga no sapato, mas não mela a meia”.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.