domingo, 17 de setembro de 2023

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é besta? Besta é tu, que quer fazer o povo de besta. Num vem que num tem”! O vereador, embora da situação, estava, dizia-se na cidade, pronto para arribar para a oposição, de mala e cuia. Amâncio de Belinha, pré-candidato a prefeito, apoiado pelo governador, que tinha rompido com o prefeito João de Afonso Berro Grosso, convidara o vereador Zé Calango para o ninho oposicionista.

O rompimento do governador deu-se porque o prefeito andara deitando falação contra o chefe do Executivo estadual. Tudo por causa de uma estrada, ligando Pedra Azul a Barro Alto, que estava para completar dez anos e não saía da terraplanagem. Na campanha eleitoral, o governador garantira, de pés juntos, que terminaria a obra, iniciada na gestão anterior, em seis meses. Terminando o mandato, a obra continuava parada como água de bacia.

O prefeito João de Afonso Berro Grosso falara da leseira do governador, de suas fanfarronices, da falta de cumprimento das promessas de campanha. A estrada de Pedra Azul a Barro Alto era vital para o escoamento das safras de milho e feijão, pois o Município era o segundo maior produtor do Estado, dessas dois cereais. Os deputados Andrade Júnior e Bosco Pinto, estadual e federal, respectivamente, aos quais João de Afonso apoiara, despejando uma cacada de votos, estavam tirando o corpo fora. O prefeito, agoniado, via-se sozinho. Agora, com a saída de Zé Calango, outros vereadores poderiam ser cooptados. Cargos em comissão, no governo não faltavam. Porém, o candidato do prefeito à sua sucessão não era de pouca envergadura. No passado, fora homem de rifle e punhal. Ainda seria anunciado por João de Afonso.

O prefeito ouviu, calado, o desabafo intencional de Zé Calango. Ouviu e deu-lhe as costas. Zé Gregório, capanga do prefeito, perguntou, quase de assobio: “É pra dar um jeito, chefe”? Não. Ainda não. O prefeito precisava fazer contas, matutar direito, limpar as vistas, arejar o quengo. O seu pai, Afonso Berro Grosso, que Deus o tivesse, ensinara que mingau se comia pelas beiradas, bem devagar, com cuidado para não queimar a língua e os beiços. O governador era poderoso, mas era um homem como ele. Só que mais rico, aliás, bem mais, e estava no topo da escada. Mas, ele, João de Afonso não era marinheiro de primeira viagem. E tinha raiz na política. Raiz familiar. Desde o bisavô paterno. Sabia manejar para aqui e para acolá.

No sertão dos Angicos, fora-se o tempo das barbaridades políticas, como fraudes nas urnas, que não foram poucas, assassinatos de adversários e todo tipo de esculhambação, que era perpetrada desde os idos do Império. Agora, tudo se resolvia na maciota. No escorrego. E ainda contava com os arranjos de Chico de Zé Bufinha.

O prefeito João de Afonso matutou a manhã inteira. Entrou pela tarde. Avançou pela noite. O governador era forte. Muito mais do que o prefeito, do que qualquer prefeito. Mas, não era um tronco de baraúna, que, acoitado pela maior ventania, não se bole do lugar. O pré-candidato a prefeito, Amâncio de Belinha, que deveria se bater nas urnas contra o candidato ainda a ser apresentado pelo prefeito, andava gastando uns trocados, de bodega em bodega, de beco em beco, de povoado em povoado. Não perdia batizado de boneca, nem enterro de cachorro. Andava de asas soltas e abertas. Antes, não tinha jeito de político, era acanhado, cara emburrada, sorriso escondido, até remelentinho ele era.

Para pirraçar o prefeito, o governador marcou uma visita à cidade, onde seria recebido por Amâncio de Belinha, em faustoso jantar. Sábado. Pouco passava da hora das badaladas do sino da Ave-Maria, quando a comitiva do governador aportou na cidade. Amâncio e uma tropa, com estampidos de foguetes e rojões, estavam na entrada principal da cidade, para recepcionar sua excelência. O cortejo seguiu a pé para a casa de Amâncio, um casarão de quatro águas, na Praça da Igreja. Uma banda de fanfarra, vinda de Barro Alto, cabeça da Comarca, tocava um dobrado. As pessoas saiam às portas para ver o cortejo passar. Na Rua do Melão, quando Sá Mariquinha de Maneca Pé de Pato, tirava uma baforada do cachimbo, de chofre, a iluminação pública foi pro beleléu. Apagou tudo. Escuridão de breu. Desde o fim da tarde, o céu nublara. Chuva à vista, daí o breu da escuridão pouco depois das seis da noite. Até o amanhecer do dia, a cidade ficaria às escuras. Botaram sal no doce do governador e do seu pré-candidato a prefeito.

Dois dias depois, Amâncio de Belinha foi diagnosticado com um mal súbito e bateu a caçoleta. Chico de Zé Bufinha, sabia-se lá como, borrifara nas fuças do pré-candidato uma aragem de pó de sovaco de morcego. Foi tiro e queda. Diante dos novos fatos, Zé Calango preferiu não arredar pé do lado do prefeito João de Afonso. Ninguém saiu. Pelo contrário, muitas adesões foram recebidas.

Dona Julinha de Santo Rezador, alardeou, com a boca sem dentes: “João de Afonso é peia. Caga no sapato, mas não mela a meia”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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