domingo, 8 de novembro de 2020

UM AMERICANO NA TERCEIRA SÉRIE GINASIAL


  

José Lima Santana*

 

Do francês saímos para o inglês. O professor? Um norte-americano do Estado de Montana, Michael Joffrey Pichette. Naquele tempo, alguns jovens americanos perambulavam pelo Brasil. Eram estudantes e se diziam “Voluntários da Paz”. Para nós, ingenuamente, eles eram agentes da CIA. Michael era estudante de Economia. Passaria um ano conosco. Era, contudo, gente muito boa. Dado a longas conversas fora da sala de aula.

Ele hospedara-se na Pensão de Dona Ceicinha Melo, mulher de José Freitas de Oliveira, chefe da Agência de Coleta do IBGE, onde eu trabalharia em 1976, contratado como Auxiliar Censitário Técnico. Chamava-me de “Joe”. O inglês não me encantou tanto quanto o francês. Uma disciplina que me atormentaria, juntamente com Matemática: Desenho, ministrada pelo padre Antonino. Italiano exigente. Régua, compasso e transferidor. Eu os detestava. Nada me impelia para as Exatas.

Eu queria estudar História, na UFS. Para trás ficou a História do Brasil. Agora, História Geral: Pré-História, Antiguidade e Idade Média. Egito, Mesopotâmia, Grécia e Roma. A Grécia atraía-me. Mas, a política romana me fascinava. A República muito mais do que o Império.

No segundo semestre, nós deixamos o prédio do Grupo Escolar Gal. Calasans e fomos para o prédio próprio, recém construído. A ala direita com quatro salas de aula, banheiros e uma pequena sala provisória para a administração. Éramos somente quatro turmas. Deixamos a noite pela tarde. Nos dois artigos anteriores, eu não mencionei as fardas. Faço-o agora.

Havia a farda diária e a farda de gala. Saia verde para as meninas com blusa branca de mangas curtas, a diária. A de gala era uma saia também verde, plissada, mas a blusa era de mangas compridas com uma gravata verde. Para nós, os meninos, a diária era calça cáqui e camisa de algodão basicamente da mesma cor da calça. A de gala era calça preta, camisa branca de mangas compridas e uma gravata preta. Sapatos pretos para meninos e meninas.

Uma coisa o padre Araújo fazia com esmero: os desfiles de Sete de Setembro com alegorias históricas nacionais e regionais. Procurei imitá-lo, quando me tornei diretor. A Banda Marcial nos foi dada pelo governador.

Naquela época, o Setor Local da CNEC mudou o nome do Ginásio, de Tertuliano Pereira de Azevedo para Francisco Porto. Enquanto estudávamos na ala direita, a ala administrativa estava em construção. Deu-se a inauguração no fim do ano. Na mesma época, a DESO, agora transformada em Sociedade de Economia Mista, começava a fazer experimentos para a implantação do sistema de água encanada, que seria o primeiro implantado no interior pela estatal.

Continuávamos absorvendo os ensinamentos do professor Cerivaldo Pereira. Ouvíamos as Rádios do bloco comunista. É claro que, no meio de nós, havia os pró-americanos. Da política dos States, eu detestava muito mais os republicanos. Até hoje. Porém, sendo antiamericano, no todo, eu não usava um dos símbolos juvenis vindos daquele país: a tão badalada calça jeans da marca Lee. Jamais.

Eu era radical. No entanto, nunca me deixei levar pela ditadura do proletariado. Na minha tosca compreensão, eu não deveria contestar a ditadura militar no Brasil e defender as ditaduras comunistas. Para mim, estava claro que ditaduras não prestavam, de direita ou de esquerda.

Dois fatos marcariam a minha vida naquele ano de 1969, aos 14 anos. O primeiro foi a entrevista que eu li, na revista “Realidade”, de um jovem político português exilado em Paris, fugindo da ditadura de Antônio Oliveira Salazar. Ele era do Partido Socialista. Para mim, nascia um novo viés político: nem o capitalismo dos americanos, nem o comunismo do bloco soviético. O jovem era Mário Soares.

O segundo fato foi a descoberta, na Biblioteca Paroquial Ceciliano Andrade, do livro “Escolhi a Liberdade”, do dissidente russo Victor Kravchenko, publicado em 1949. Nele, eram expostos os famigerados expurgos promovidos por Josef Stalin. “Isso aí é propaganda contrarrevolucionária”, disse-me Cerivaldo. Até podia ser, mas os relatos me impressionaram. Com a morte de Stalin e a subida ao poder soviético de Nikita Kruschev ao menos parte dos relatos de Kravchenko confirmaram-se. Propaganda contrarrevolucionária ou não, o livro em tela ajudou-me a tomar uma decisão: nem capitalismo nem comunismo nos moldes existentes.

A entrevista de Mário Soares, que viria a ser, após a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, primeiro-ministro e presidente do seu país, levou-me a buscar o humanismo e a social democracia, como seria o caso da alemã de Willy Brandt, para culminar na social democracia nórdica. Eu fugia dos extremos.

Na terceira série, alguns alunos da minha turma tomaram o encargo de encenar “Capitu”, de Machado de Assis. Começaram os ensaios. Eu faria o papel de Bentinho. Após alguns ensaios, o projeto foi abortado. Mas, no papel de Bentinho, eu não me senti traído. Nem por um átimo, eu me senti corno. Não pegava bem, nem mesmo numa encenação.

Fora da escola, uma das nossas diversões era jogar botões. Eu promovi o Campeonato Dorense de Botões, criando a Liga Dorense de Futebol de Mesa, da qual era o presidente, obviamente. Jogávamos nas calçadas ou nas salas de algumas casas, sobre um “campo” de madeira, notadamente nas casas de Fernando Lima e Valdir de Acrísio. Escreverei sobre isso, oportunamente.

O padre Araújo criou o clube de jovens, Jovens Unidos Dorenses – JUD. Espaço para bater papo, jogar e dançar. A maioria dos frequentadores era exatamente de alunos do Ginásio. Eu continuava devotado a escrever poesias. A ponto de mamãe dizer: “Esse menino só pensa em fazer versos”.

De uma vizinha, eu recebi esta quadrinha: “Não lembra você que um dia / Humilde, lhe pedi amor / Mas você, com displicência / Não me deu mais que uma flor”. Meu coração batia noutras plagas. Por uma menina da segunda série. Rosa, de quem “um dia eu vi a rosa orvalhada pelo desejo”, como cantei em poema publicado no livro “Para Jamais Esquecer”, de 1989. Na primeira vez que toquei em suas mãos, suspirei uma noite inteira. Ora, para que tantos suspiros? Para acabar padre. Caminhos insondáveis...

A terceira série foi a única do curso ginasial na qual eu passei sem precisar fazer prova final de Matemática. Um alívio. Aliás, de Matemática eu só aprendi mesmo a calcular 20% de honorários advocatícios. E a memorizar a regra do seno/cosseno: “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / seno a cosseno b / Seno b cosseno a”. Horrorosa trigonometria.

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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