sábado, 1 de maio de 2021

A FEBRE DE TINOQUINHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Tinoquinho de Tonha de Zé Felício amanheceu queimando de febre. Os beiços rachados. A pijama, os lençóis e as fronhas ensopados de suor. Gemeu de dor de cabeça a noite inteira. Não teve como dormir, nem tirar um cochilo, salvo uns instantes em que delirou. Não quis incomodar a mãe, Tonha.

Ao raiar o dia, levantou-se, tomou um comprimido e caiu debaixo do chuveiro de água morna, apenas quebrada a frieza. A temperatura corporal, medida logo depois, estava em 39.8. Tonha avexou-se. Mãe zelosa de três filhas e um filho, todos vivos, graças a Deus, ela cuidou de preparar um chá de camomila com limão.

O chá de camomila ajudava a reduzir a febre, pois possuía atividade calmante e estimulante que facilitavam a sudorese, baixando a temperatura do corpo. Por sua vez, o limão para febre, sendo rico em vitamina C, possuía propriedade anti-inflamatória, diminuindo a febre e aumentando as defesas do organismo. Não devia ser dispensado um dentinho de alho. Abençoado reforço. A receita vinha da mãe, da avó, da bisavó de Tonha. Perdia-se no tempo aquela utilização conjugada.

A mãe zelosa marcaria uma consulta com o Dr. Sebastião Neto, médico dos melhores que ela conhecia e que clinicava na cidade, dois dias por semana. Aquele era um dos seus dias. A pandemia estava solta, igual a uma besta fera. Contaminando e matando. Nas ruas, uma parcela da população de Monte Alto não estava nem chite para o vírus.

Andava sem máscara e sem usar álcool em gel. Distanciamento? Era só olhar as filas na única agência bancária da cidade ou na casa lotérica. Sem falar no dia da feira semanal. A cidade parecia um mundo à parte do mundo. As autoridades municipais relaxavam nos cuidados sanitários que deveriam ser implantados.

O município já contava com mais de vinte mortes pela covid-19. Ainda assim, a população fazia pouco caso. E havia o estímulo absurdo de negacionistas contumazes. Tonha estava assustada com a possibilidade de o filho ter contraído o vírus. No dia anterior, ele esteve um tempão na fila do Banco.

Dois dias antes, inadvertida e irresponsavelmente, participou de um racha, isto é, de uma pelada no campo do Fuzuê Futebol Clube. E contou à mesa durante o almoço, naquele dia, que Jorginho de Américo Crocodilo, o zagueiro adversário, que lhe deu marcação cerrada, estava com uma tosse seca, que acabou por tirá-lo do jogo uns vinte minutos depois de começado. E Barbudinho, o goleiro do seu lado, reclamou de dor de garganta.

O moço febril tinha delirado algumas vezes na noite. “Viu” coisas e situações. Figuras grotescas. Falou besteiras. O hipotálamo esteve aceso, ajustado. Caixões de defuntos empilhados caíam sobre ele. Túmulos se abrindo num cemitério. Uma jovem que fugia dos seus braços para cair num precipício. Delírios. Delírios.

Chá tomado, reação quase imediata. A temperatura foi baixando. Enfim, 36.3. Tonha viu-se aliviada. Todavia, pediu para Célia Maria, a filha mais velha, que trabalhava na farmácia de “seu” Amintas, marcar a consulta com o Dr. Sebastião. O consultório dele era parede-meia com a farmácia.

Por volta das 10 horas, Tonha levaria Tinoquinho até lá. Já tinha tomado precauções necessárias. Separou o prato, a xícara e os talheres que o filho febril fizera uso no café da manhã. Manteve-o afastado dos demais. Não se sabia. Melhor não arriscar.

O Dr. Sebastião Neto examinou Tinoquinho. Em princípio, tudo bem com ele. Não lhe pareceu estar o rapaz acometido pela Covid-19. Entretanto, seria bom realizar o teste. O único disponível na cidade era o de sorologia. Tal tipo de teste não detectava o vírus, mas sim a presença de anticorpos, isto é, a resposta do organismo frente à infecção. Ou seja, identificava quem já teve contato com o vírus ou quem já teve a doença. Bem. Era o que se tinha.

O médico recomendou, para ter-se mesmo certeza, o RT-PCR. Considerado o padrão ouro para diagnosticar a Covid-19, o RT-PCR constataria a presença do material genético do Sars-Cov-2 na amostra do paciente. Tonha veria o que fazer com o filho adolescente de 16 anos. O “colírio da casa”, como ela mesma dizia.

Antes da febre tomar de assalto o corpo adolescente de Tinoquinho, naquela noite, eis que à tarde, o coração do rapaz foi dilacerado. Um punhal enferrujado atravessou-o. Foi cravado com uma força descomunal. Cravado e torcido. Torcido e retorcido. Fez uma ferida brutal, daquelas que jamais cicatrizaria. Punhalada medonha. Desferida por quem ele nunca poderia imaginar.

Rosa Maria, filha de Maria Rosa de Bartolomeu Borges Barata, o popular 3B. Sim, ela, sim. Rosa Maria, encanto dos olhos de Tinoquinho. Colega de escola e amiga íntima desde a infância. Olhos gateados que começaram a azucrinar a sua vida há não mais do que três meses.

Antes, eram apenas olhos de amiga. Há três meses, mais ou menos, tornaram-se olhos a lhe sobressaltar o coração, a cada instante que os fitava. Ah, os lábios levemente carnudos de Rosa Maria, que, antes, só pareciam servir para sorrir, tornaram-se objeto de desejo! Beijá-los, senti-los, sorver o néctar que, certamente, por ali se derramava.

Ao encontrar-se com Rosa Maria, no fim da tarde, em frente à igreja matriz, casualmente, Tinoquinho criou a coragem que há semanas lhe faltava: “Rosa, eu quero namorar com você”, ele disse, de supetão, sem pestanejar, de forma direta. Mais direta, impossível. A moça teve um sobressalto. Arregalou os olhos e foi tão direta quanto ele o fora. “Tinoquinho, nós somos bons amigos. E devemos continuar assim. Eu não pretendo estragar a nossa amizade. E, ademais, ontem mesmo eu comecei a namorar com Flavinho, seu primo. Eu lhe amo muito, como irmão. Fraternalmente”.

“Como irmão”, ela disse. Fraternalmente, ele ouviu, zonzo. Ele ouviu aquelas palavras como uma sentença de morte. Baixou a cabeça. Não disse nada. Saiu. Meio trôpego. Flavinho. O que ela viu nele? Tropeçou na calçada de “seu” Henrique Lopes. Sentiu o sangue gelar nas veias.

Em casa, ele chegou quase chorando. Trancou-se no quarto. Pôs o travesseiro sobre a cabeça. Caiu em prantos. Não teve forças para jantar. Deu uma desculpa qualquer. E não demorou muito para a febre chegar, cozinhando o corpo. Não, não era a covid-19. Era o amor esmagado.

Mal entrado no mundo da paixão, o coração adolescente de Tinoquinho deparou-se com o mundo cruel da desilusão. Valeria a pena lutar pelo amor de Rosa Maria? O tempo... O tempo.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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