domingo, 5 de julho de 2020

COCÔ DE MOSCA





 

 

JOSÉ LIMA SANTANA*
 
 
            Tarde nublada de domingo. Comecinho da tarde. Pela manhã, uma chuvarada caiu sobre a cidade. Aliás, sobre toda a redondeza. Fim de inverno. O vento frio de agosto, soprando do mar para o interior, dava conta de enxugar a terra encharcada. Na casa de Dona Ritinha do finado João dos Cinco Paus, fazendola de um massapê adoidado de bom, o seu marido, Chico de Dió de Alberto Cospe Fogo, tentava passar o pente no restinho de cabelos, que teimavam em grudar no casco do cocoruto. Uns poucos fios caminhando para o prateado. O cuidado de Chico de Dió era para não molestar a careca com o pente.
            Naquele mesmo instante, bateu palmas na porta a viúva de Zeca de Felismina, Dona Matilde. Rezadeira de mão cheia, tirava olhado por mais brabo que fosse, curava de espinhela caída, jogava febre lá pras seiscentas e tudo o mais que se referisse a cuidados de quem tinha intimidade com o sobrenatural, desde que não fosse assim tão sobrenatural. Havia coisas lá do alto que a ninguém foi dado o poder de fazer ou compreender, ela dizia.
            Dona Ritinha acudiu à porta. “Entre, comadre Matilde. Boa tarde. Já tô aqui avexando os aviamentos do vestido de sua fia. É pra nestante”. A rezadeira entrou, após o regular cumprimento. “Se assente-se aqui”, disse a dona da casa, costureira procurada quando as freguesas não encontravam outra de maior valimento. Ficaram as duas de tró-ló-ló. Conversa para lá, conversa para cá.
            Chico de Dió apareceu na sala de visitas, que também servia de ateliê, nome bonito por demais para uma sala simplória, onde uma igualmente simplória mulher fazia de contas que era costureira. Bem. Costureira era, mas não era lá essas coisas, não. Era uma quebra-galhos. Mas, porém, e, contudo, ganhava lá uns trocados, que auxiliavam na mantença da casa, que Chico de Dió era muito devagar no que fazia. Diziam, então, as más línguas – e disso o mundo estava bem servido – que homem preguiçoso que se casava com professora ou modista, como também se chamava uma costureira naquelas bandas, estava com a vida ganha e se tornava ainda mais preguiçoso, pois tinha quem garantisse a feira.
            Dona Matilde respondeu ao cumprimento do marido da costureira. Ele alisava a careca, quando a visitante lhe indagou: “Ô ‘seu’ Chico, o senhor já deu de botar alguma coisa pra ver se o cabelo volta a nascer”? Rápida como um raio veio a resposta: “Ah, Dona Matilde, quem dera encontrar algum produto que me valesse! Esse negócio de ser careca é coisa de famía, mas eu num me sinto bem. Quem dera, sim, alguma coisinha que valesse a pena, nem que custasse um dinheirão. Eu era capaz de vender até a muié pra comprar o produto”. Dona Ritinha deixou de lado o que estava fazendo, olhou para o marido, pretenso vendedor do que não podia vender e exclamou: “Melhor eu acho que era tu se aprumar na vida, pra me dar um descanso”. Dona Matilde quis rir, mas conteve-se. Não ficaria bem.
            “Eu já ouvi dizer, e quem me disse foi um sujeito sabido, que mexe com folia de produtos químicos, um cabra estudado, que lá pras bandas do Sul um gringo descobriu um santo remédio pra dar vida de cabeleira cheia a uma careca. Diz que é misturar cocô de mosca com água serenada e um tiquinho de tapioca de macaxeira rosa. Lambuza o preparado na careca por quinze dias, pros cabelos apontarem como brotos de feijão nascendo em roça bem coivarada”, disse a visitante loroteira.  
            Chico de Dió, que estava prestes a colocar o chapéu no aeroporto de moscas, segurou-o junto ao peito e disse: “Dona Matilde, só vejo um probleminha nesse produto. Como juntar cocô de mosca? Raspando em tudo que é canto, um tiquinho de nada aqui e ali? E será que dá pra juntar cocô de mosca, Dona Matilde”? A rezadeira respondeu: “Ora, ‘seu’ Chico, eu sei que fácil né, não. Porém, com cuidado, eu acho que dá pra juntar o que for preciso. O ‘seu’ Fulano lá das Pedreiras Brancas, o das químicas, num disse qual a quantidade de cocô que é preciso pra botar no preparado. Quem sabe, um tiquinho resolve”.
            Chico de Dió matutou. Maneou a cabeça desprotegida e disse, quase gritando: “É... Num custa tentar. Se der certo, nem vou precisar vender a muié”. Saiu rindo.
            Passadas algumas semanas, o cabelo de Chico de Dió estava renascendo. Eram apenas umas penugens, mal comparando com as de um bruguelo de bem-te-vi. Já era um progresso, todavia. Todo mundo queria saber o que foi que ele fez para o cabelo voltar a dar na vista, embora ainda com muita timidez. Satisfeito, ele respondia: “Minha gente, Deus num fez nada sem serventia. Imagine que cocô de mosca só num vai ter preço no mercado, porque todo mundo pode juntar o de sua necessidade, sem precisar comprar”.
            Nem sempre o que parecia ser bom, era bom de verdade. Com mais outras semanas, a penugem mal e mal surgida na careca de Chico de Dió rareou e sumiu. No lugar da penugem de asa de bem-te-vi, apareceu umas perebas, que foram aumentando e crescendo. A cabeça de Chico rachou. Os miolos ficaram à vista. Uma coisa feia. Deu para feder. Enfim, ele bateu a caçoleta.
Averiguando-se depois, Chico de Dió tinha comprado a tapioca a um ambulante do Marmeleiro, tido como marmoteiro da pior espécie. Tapioca de mandioca brava, misturada com soda cáustica. Não era de macaxeira rosa não, como recomendado. Logo, não foi o cocô de mosca, que fez a desgraça de Chico de Dió.
Chico de Dió hospedou-se nos sete palmos, ao passo que o marmoteiro continuou por aí, palitando os dentes, até que o filho de outro sujeito tapeado por ele, que teve o mesmo fim de Chico de Dió, lhe encaminhou para o lugar de onde quem entra não sai. Êh, sertão brabo!
           
 
 
*  Padre, Advogado, Professor da UFS, Membro da ASL, ASLJ, ADL, ASE e IHGSE.


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