Prof.
Claudefranklin Monteiro Santos*
“Penso,
logo existo”. E se além de pensar, também crermos: deixamos de existir? Se
existimos, por exemplo, temos uma origem e um fim e é exatamente aí que as
contendas se avolumam entre a fé e a ciência. A lógica da ciência e toda a sua
racionalidade ainda não deu conta de explicar essa inquietante incógnita. Em
tempos de pandemia, talvez continuar existindo tenha mais sentido do que
procurar saber de onde viemos e para onde vamos.
Quando
o filósofo e matemático francês, René Descartes (1596-1650) afirmou aquela
frase, a ciência estava pondo suas asas de fora e batendo de frente com o imperativo
da fé, notadamente, da fé católica. Ao preconizar a frase em tom sumário e sob
os auspícios de uma outra verdade que não a do crer, ele confirmou e conformou uma
tendência de que a razão dar-se-ia como princípio norteador e único para
explicar as coisas que acontecem e as demandas dos fenômenos, que ultrapassassem
a nossa apreensão à primeira vista sem maiores questionamentos.
O embate
entre fé e ciência já teve vários capítulos na história da humanidade. Santos
católicos, anteriores ao avanço da chama ciência moderna, já apontavam
possibilidades de conciliação entre as duas coisas. É de Santo Agostinho (354-430), por exemplo, a
conhecida máxima: Intellige ut credas,
crede ut intelligas (“é preciso compreender para crer, e crer para
compreender”). Alguns séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) procurou
aprofundar a ponte possível entre as duas áreas. A seguir, temos uma amostra
disso em: “(...) se o intelecto humano compreende a substância de uma coisa,
seja de uma pedra ou de um triângulo, nenhuma das realidades inteligíveis desta
coisa excede a capacidade da razão humana. Porém, com relação a Deus, tal não
acontece. Isto porque o intelecto humano não pode chegar a apreender a
substância divina pela sua capacidade natural” (Suma contra os gentios).
No século
XIX, a célebre afirmação de Friederich Nietzsche (1844-1900) de que “Deus está
morto” poderia ser o último round na
peleja entre a fé e a ciência, dando a esta o cinturão sagrado da verdade. Mas,
passadas duas guerras mundiais, guerra fria, novas pestes e epidemias, novas
ideologias, a escalada da morte e do horror, eis que Deus permanece vivo e a fé
exercendo forte e até decisiva influência sobre os mais diversos assuntos. Mas
a fé, no seu sentido prático e doutrinário ainda precisa resolver um problema
que a ciência também não foi capaz de oferecer: soluções efetivas para
minimizar a miséria humana e dar dignidade às pessoas, longe das regras ditadas
pelo mercado e pelo lucro voraz.
Longe
de avançar nessa discussão no plano filosófico ou teológico, penso (e creio
também) que o nosso tempo nos impõe se não um meio termo entre as duas
verdades, ao menos uma complementariedade. Assim como o mundo está polarizado
entre esquerda e direita e bem e mal, penso e creio que seguir em mais uma dicotomia
de mais de cinco séculos não ajudaria em nada a nos mantermos vivos. Aliás, são
exatamente os pêndulos extremistas que estão matando as pessoas mais do que
necessariamente o vírus. Este tornou-se, portanto, o algoz por excelência da
cisão humana no afã de soberbamente ser só uma coisa ou outra e não se permitir
ser uma terceira ou a intersecção harmoniosa entre ambas.
Em
artigo recente, de muita lucidez, a professora e teóloga Maria Clara Bingemer
disse algo que nos parece muito oportuno para o tempo presente ou para o novo
normal: “Falar de Deus em tempos de
coronavírus implica dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no
campo e competência que lhe é própria. Não misturar epistemologias ou querer
tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente
espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas,
empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte
(Dom Total, 26 de maio de 2020)”.
O
fato é que a minha fé me dá certeza que existe vida após a morte. Por outro
lado, o meu conhecimento me permite duvidar para conhecer melhor. Ao passo que
amo um Deus invisível, sinto o frescor das flores e do ar que a ciência me
ajudou a compreender. A vacina que os cientistas lutam tenazmente para
encontrar, em sua luta diária na bancada dos laboratórios, cultiva, de uma
forma ou de outra a mesma coisa que a religião ou as religiões de um modo geral
ensinam: a prática da empatia, a esperança e a necessidade e possibilidade de
superar as adversidades, a dor, o sofrimento e quem sabe até mesmo a morte.
Se a
fé é a cegueira dos idiotas, a ciência bem pode ser a virtude dos imbecis. Se a
pandemia ainda não deixou isso claro, não sei ainda o que pode vir a ser pior
para o ser humano num futuro bem próximo: a instituição da ignorância ou o império
da arrogância. Enquanto isso, seguimos sem saber de onde viemos e para onde
vamos, e, naturalmente, sendo eliminados por um mísero vírus, que até se prove
o contrário, não crê e nem tão pouco duvida: ele contamina, adoece e até mata.
*Professor
do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em
História e membro das Academias Sergipanas de Letras e de Educação.
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