terça-feira, 28 de julho de 2020

FÉ E CIÊNCIA - VELHOS EMBATES E NOVAS QUESTÕES





Prof. Claudefranklin Monteiro Santos*


“Penso, logo existo”. E se além de pensar, também crermos: deixamos de existir? Se existimos, por exemplo, temos uma origem e um fim e é exatamente aí que as contendas se avolumam entre a fé e a ciência. A lógica da ciência e toda a sua racionalidade ainda não deu conta de explicar essa inquietante incógnita. Em tempos de pandemia, talvez continuar existindo tenha mais sentido do que procurar saber de onde viemos e para onde vamos.
Quando o filósofo e matemático francês, René Descartes (1596-1650) afirmou aquela frase, a ciência estava pondo suas asas de fora e batendo de frente com o imperativo da fé, notadamente, da fé católica. Ao preconizar a frase em tom sumário e sob os auspícios de uma outra verdade que não a do crer, ele confirmou e conformou uma tendência de que a razão dar-se-ia como princípio norteador e único para explicar as coisas que acontecem e as demandas dos fenômenos, que ultrapassassem a nossa apreensão à primeira vista sem maiores questionamentos.
O embate entre fé e ciência já teve vários capítulos na história da humanidade. Santos católicos, anteriores ao avanço da chama ciência moderna, já apontavam possibilidades de conciliação entre as duas coisas. É de Santo Agostinho (354-430), por exemplo, a conhecida máxima: Intellige ut credas, crede ut intelligas (“é preciso compreender para crer, e crer para compreender”). Alguns séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) procurou aprofundar a ponte possível entre as duas áreas. A seguir, temos uma amostra disso em: “(...) se o intelecto humano compreende a substância de uma coisa, seja de uma pedra ou de um triângulo, nenhuma das realidades inteligíveis desta coisa excede a capacidade da razão humana. Porém, com relação a Deus, tal não acontece. Isto porque o intelecto humano não pode chegar a apreender a substância divina pela sua capacidade natural” (Suma contra os gentios).
No século XIX, a célebre afirmação de Friederich Nietzsche (1844-1900) de que “Deus está morto” poderia ser o último round na peleja entre a fé e a ciência, dando a esta o cinturão sagrado da verdade. Mas, passadas duas guerras mundiais, guerra fria, novas pestes e epidemias, novas ideologias, a escalada da morte e do horror, eis que Deus permanece vivo e a fé exercendo forte e até decisiva influência sobre os mais diversos assuntos. Mas a fé, no seu sentido prático e doutrinário ainda precisa resolver um problema que a ciência também não foi capaz de oferecer: soluções efetivas para minimizar a miséria humana e dar dignidade às pessoas, longe das regras ditadas pelo mercado e pelo lucro voraz.
Longe de avançar nessa discussão no plano filosófico ou teológico, penso (e creio também) que o nosso tempo nos impõe se não um meio termo entre as duas verdades, ao menos uma complementariedade. Assim como o mundo está polarizado entre esquerda e direita e bem e mal, penso e creio que seguir em mais uma dicotomia de mais de cinco séculos não ajudaria em nada a nos mantermos vivos. Aliás, são exatamente os pêndulos extremistas que estão matando as pessoas mais do que necessariamente o vírus. Este tornou-se, portanto, o algoz por excelência da cisão humana no afã de soberbamente ser só uma coisa ou outra e não se permitir ser uma terceira ou a intersecção harmoniosa entre ambas.
Em artigo recente, de muita lucidez, a professora e teóloga Maria Clara Bingemer disse algo que nos parece muito oportuno para o tempo presente ou para o novo normal: “Falar de Deus em tempos de coronavírus implica dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe é própria. Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte (Dom Total, 26 de maio de 2020)”.
O fato é que a minha fé me dá certeza que existe vida após a morte. Por outro lado, o meu conhecimento me permite duvidar para conhecer melhor. Ao passo que amo um Deus invisível, sinto o frescor das flores e do ar que a ciência me ajudou a compreender. A vacina que os cientistas lutam tenazmente para encontrar, em sua luta diária na bancada dos laboratórios, cultiva, de uma forma ou de outra a mesma coisa que a religião ou as religiões de um modo geral ensinam: a prática da empatia, a esperança e a necessidade e possibilidade de superar as adversidades, a dor, o sofrimento e quem sabe até mesmo a morte.
Se a fé é a cegueira dos idiotas, a ciência bem pode ser a virtude dos imbecis. Se a pandemia ainda não deixou isso claro, não sei ainda o que pode vir a ser pior para o ser humano num futuro bem próximo: a instituição da ignorância ou o império da arrogância. Enquanto isso, seguimos sem saber de onde viemos e para onde vamos, e, naturalmente, sendo eliminados por um mísero vírus, que até se prove o contrário, não crê e nem tão pouco duvida: ele contamina, adoece e até mata.


*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em História e membro das Academias Sergipanas de Letras e de Educação.




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