José Lima Santana*
Naquele
chão, nada era maior do que a miséria e a valentia do sertanejo. Tempos duros,
difíceis, assombrando os mofinos, que se contavam nos dedos de uma mão. Estes
eram poucos, que bem teriam feito ao bom nome do sertão se tivessem morrido de
caganeira, ainda no berço.
No todo,
porém, os sertanejos se mostravam destemidos, tanto para o enfrentamento das
intempéries do clima azedado desde os princípios dos tempos, quanto para a luta
a ferro e sangue, se preciso fosse. E, muitas vezes, era preciso. Terra de homens
embrutecidos pelas agruras da própria vida, pela falta de educação escolar.
Escola? E
tinha? No sertão do começo da República? “Tinha não, amigo velho”. Para não
faltar com a verdade, no Xique-Xique de Riba uma mocinha dava aulas de ABC e
bê-a-bá. Coisinha curta, só para não dizer que todo mundo era iletrado,
ignorante. Poucos aprendiam alguma coisa. Um soletramento sofrível, um assinar
o nome em garranchos, uma conta de somar no lápis, que mais fácil era fazer de
cabeça.
As forças
volantes espalhavam-se por todo o sertão, para dar cabo do rei do cangaço e de
seus príncipes. Famigerados para uns, festejados por outros. O cabo Josino Pai
D’Égua teve dois irmãos trucidados pelos cangaceiros, no Alto do Morro do
Virgílio. Tiroteio que durou mais de seis horas, começando no início da tarde e
alongando-se até a boca da noite.
Os dois
eram da força volante do tenente Isaías. Morreram quatro soldados e dois
cangaceiros. A vantagem estava quase sempre do lado dos celerados. Josino Pai
D’Égua jurou vingança. Não haveria de descansar enquanto não metesse uma bala,
ou muitas, no quengo do capitão de bosta. “Capitão... Oxente! Quem deu tal
patente ao cangaceiro, que se intitulava o “Rei do Cangaço”?
Capitão...
Capitão, que nada! Era um bandoleiro, que matava, roubava, estuprava. O cabo
Josino ainda o teria em sua mira. Veria o seu olho cego explodir com o impacto
de uma bala de fuzil. Os miolos lambuzando a paisagem.
Noca de
Pedro Melo das Aroeiras engraçou-se, na feira do Morro das Faceiras, por um
tipo que entrara na vila com um bando de cangaceiros, chefiado por Caninana, um
dos lugares-tenentes do tal capitão. Na venda de Domitila de Zé Ceguinho, ele
passou o olho nela e ela passou o olho nele.
Fogo e
pólvora misturados. Dali mesmo, ela arribou com ele, para desgosto da família.
O zun-zun-zun foi tanto que as irmãs de Noca nunca mais pisaram os pés na vila.
Vergonha da patifaria que a desmiolada da irmã acabara de fazer. Misturar-se
com a laia do cangaço. Era uma desfeita para qualquer família de bem.
Uma moça
entregue à sem-vergonhice com aquele tipo de gente. Para quê? Para manchar a
honra da família. Família pobre, mas direita. E, mais dia, menos dia, acabar
morta por uma força volante, a carcaça exposta aos bicos dos urubus.
Geraldinho
de Pedro Melo, irmão de Noca, danou-se para a capital, em busca de encontrar-se
com um primo, tenente da Força Pública. Queria assentar praça. Entrar para uma
força volante, a fim de dar cabo de alguns cangaceiros e, talvez, da própria
irmã, que desgraçou a família, deixando a mãe areada do juízo e o pai ainda
mais carrancudo.
A irmã
desmiolada estava nas garras sujas dos bandoleiros. Estava mal falada, botando
na lama o nome da família. Grande era o sofrimento da mãe. O pai, Pedro Melo,
não. Arrenegou a filha. Para ele, morta ela estava. Geraldinho teve sorte. Não
só topou com o parente oficial, como este lhe deu guarida e ele assentou praça,
sim, na Polícia.
Mandou
recado para o pai. Estava na força volante do sargento Belizário, onde servia o
cabo Josino Pai D’Égua. Cada volante tinha um espaço no território sertanejo
para esquadrinhar em busca dos cangaceiros, que trafegavam de um para outro
Estado num piscar de olho.
Tinham lá
eles uma vasta rede de informantes, os coiteiros, que lhes davam, além de
informações sobre a movimentação das tropas, víveres, armas e munição, tudo
comprado com o dinheiro que os cangaceiros extorquiam por onde passavam. Apesar
dos malfeitos da bandidagem, havia quem os apoiavam, quem os consideravam
heróis, talvez porque havia sobre os bandoleiros a aura de que lutavam contra o
sistema.
E o
sistema naqueles sertões largados era, deveras, cruel. Fazendeiros, políticos,
militares, e até padres, espoliavam o povo sem proteção e sem vintém.
Tarde de
sexta-feira, véspera da feira semanal do Timbó Açu. Notícia correu e chegou ao
sargento Belizário que o bando do tal capitão estaria de chegada. Eram favas
contadas. O sargento arregimentou outros cabras e engrossou suas fileiras. Eram
mais de trinta homens bem armados e dispostos.
Josino
Pai D’Égua batia os dentes, de ansiedade, como um caititu. Vingaria os dois
irmãos caídos. A notícia dava conta de que os cangaceiros viriam da Mata do
Osório, pelo caminho de João Lourenço, passando pelo riacho do Meio. Na curva
para chegar à solta de Robertão, achava-se um bom lugar para tocaia.
A volante
tomou posições. Era manhãzinha quando um atropelo de cavalos em bom galope foi
ouvido. Seriam eles, os cangaceiros. E eram mesmo.
Tocaia
bem-feita. Fuzilaria das seiscentas. Gritos. Xingamentos. O cabo Josino deu
conta de três cangaceiros, mas não do tal capitão. Sentiu-se vingado, em parte.
Quanto a Geraldinho, foi ferido por um tiro na perna. Sangria braba.
Arrastou-se no meio do mato, buscando valimento. Azar. Topou com um cangaceiro
de punhal na mão direita, pronto para sangrá-lo.
Geraldinho
viu a cara feia da morte. Quando o celerado ia atingi-lo, outro cangaceiro
atirou nele pelas costas. Não era um cangaceiro. Era Noca, a irmã. “Salvei a
sua vida, mano. Diga ao pai e à mãe que essa, agora, é a minha vida. Adeus”.
Embrenhou-se no mato, rastejando como cobra.
Geraldinho
viu a irmã sumir de suas vistas e de sua vida. Quis gritar, chorar. Gritar,
atrairia outros cangaceiros. Chorar não era papel para um homem, não ali no
sertão. Porém, toda a sua macheza não foi suficiente para reter duas lágrimas
nos olhos. Duas gotas de orvalho, retidas na amplidão daquele espaço sangrento.
A irmã salvou-lhe a vida.
Era
março. Quaresma. Dali saindo, Geraldinho iria dobrar os joelhos na igreja do
padre Amarante. Agradecer a Deus pela vida poupada e orar pela irmã cangaceira.
*Padre,
professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro
da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana
de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe.
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