JOSÉ LIMA SANTANA*
Ah, Manico de Tintiliano! Quantas
presepadas você não armou no Boqueirão de Cima, nos tempos enturmados com
Coceirinha e seu irmão Vadico, filhos do velho Zé Sebinho? Fedô de Doido...! Eu
sei muito bem que o leitor gosta de especular. Afinal, eu também sou leitor. E
especulo. Ora se... Porém, o título deste mísero escrito não tem nada a ver com
o cheiro ruim que podia exalar da sobaqueira de Manico de Tintiliano do finado
Zé de Cazuza. Nem de longe. Manico conversador, danado para arranjar
presepadas. Bicho sorrateiro em boas conversas estava ali. Dava dribles com a
língua de deixar qualquer interlocutor tonto, tirturado no desmantelo do
palavreado. Menino, um adolescente, mas de muito bom tino.
Manico era dado a botar apelidos nos
outros. Ninguém lhe escapava. Nem o padre João das Virgens Fortunato, que se
demorou na cidade para mais de trinta anos, de lá saindo bem velhinho, para um
asilo das Irmãs de Caridade, na capital, já trôpego, a voz cansada, para
entregar a alma a Deus pouco mais de dois anos depois. Um típico pároco de
aldeia, incansável trabalhador da messe do Senhor. Seis cidades e um monte
desembestado de povoações para assistir. Viajava, sozinho, por esse mundão de
meu Deus, montado numa burra apaideguada, que de tempos em tempos, ele trocava
por outra de igual valia. Um homem culto. Criou escolas, apaziguou adversários,
realizou santas-missões, batizou, casou, confessou um magote de gente. Semeou o
Evangelho sem ter descanso. Podia ter saído bispo, mas se recusou a deixar o
sacerdócio simples, mas, ao mesmo tempo, tão grandioso, sacerdócio junto ao
povo miúdo. Pois bem. Até aquele santo homem mereceu um apelido saído da boca
de Manico de Tintiliano: Luz de Anjo. Um apelido respeitador para um homem
respeitado pelo mundo afora.
Os apelidos que Manico botava nas
outras pessoas eram desembestados. Urubu cansado, Guela de bem-te-vi, Vara de
virar tripa, Beira de penico, Lenço de mulher-dama, Bilhete sujo, Mijo de
sagui, Bunda de tanajura, Fiofó arregaçado, Tamborete sem pernas, Olho de boi
zanoio, Cacimba sem água, Asa de muriçoca, Pavio de candeeiro, Donzela morta,
Boca de caçapa, Boi deitado, Cabeça sem miolo, Fundo de panela, Gazela
apressada. Eis alguns dos apelidos, cujos apelidados ainda vivem. Apelidos
pegam, ou não pegam. Se a pessoa apelidada subir nos tamancos, rodar a baiana,
fazer fuzuê, aí o apelido pega. Ninguém, daquele tempo, azedou mais com o
apelido do que Chico de Mamede, que não gostava de ser chamado de Limonada. Ele
virava nas seiscentas. Pior era quando dois sujeitos lhe azucrinavam, um
gritando “Limão!”, e outro gritando “Açúcar!”. Então, ele garrava de uma faca
peixeira e brotava: “Mustura, fio do
cabroco, mustura, que eu lhe decosturo
de faca, do quengo à bicheira do pé”! A molecada ia à loucura.
Mas, e Fedô de Doido, onde, enfim,
entra nessa trama? Calma. O leitor deve ter a paciência que tem o autor, embora
este não seja lá grande coisa, no trato do palavreado. É preciso ter calma.
Afinal, todo escrito tem um fim, embora nem sempre seja do agrado do leitor.
Fedô de Doido...! Que apelidozinho mais desgraçado! É de tapar o nariz. Porém,
é, também, de se ter misericórdia dos pobres amalucados que andam por aí, sem
esmo, sem atinar para a vida, os miolos desconjuntados na cabeça, vagando como
almas penadas de carne e osso. Vidas que minguam no descompasso do desajuizamento.
Era uma tarde de sol frouxo, que
dava sinais da aproximação do inverno, tardio, nos fins de maio. Ninguém
plantara o milho de São José. As chuvas não deram sinal, nos meados de março.
Entrou abril com o sol a pino, dia após dia. Seria mais um ano de seca verde,
como o ano anterior? Prenúncio de miséria, de fome e de sede? Não, não seria. A
grandeza de Deus, como dizia Sá Bertina de João de Rosa, ainda cairia, bem
lacrimejada, para fazer a terra engravidar e parir todo tipo de brotos. Pois naquela
tarde, em que um ventinho safado de bom descia da Serra das Moças, com nuvens
bonitas prendendo e soltando o sol, Manico vinha pela estrada do Caga Sebo,
montado no jegue de Tintiliano, seu pai, com os pés quase arrastando no chão,
cantarolando uma modinha antiga, que sua mãe, Cecilinha de Tintiliano, devia
cantarolar enquanto cuidava da lide. Passando na porta de Porfírio de Sá Lucinda
de Bastião das Aroeiras, deu de cara com Maria das Dô, filha caçula de
Porfírio, que começava a desabrochar, qual fulô de mandacaru em prenúncio de
chuva. Ali estava uma morena de endoidecer um quengo, de fazer um cabrinha no
verdor da vida, se livrando da inhaca do mijo, como se dizia, ver os olhos não
grudarem no sono por uma noite inteirinha. Ah, miséria de vida era a chegada da
paixão alucinada, atirando por terra os beiços de alguém! Um endoidecimento. Coisas
sem-vergonhas passando pela cabeça e se materializando na solidão. Agonia. Uma
fulô de mandacaru amorenada, de formas botando ainda mais belas formas,
formando uma formosura de maior esplendor do as auroras, juntas, do mundo
inteiro.
Manico manobrou a alimária para o
terreiro de Porfírio e Sá Lucinda. A fulô amorenada expendia nos seus quinze
anos. O de coração triturado não passava dos dezessete. Coração a carecer de um
lenitivo para a sua agonia. “Boas tarde, das Dô”! A voz quase sussurrante do
rapaz fez a fulô abrir um sorriso, como se procurasse beber uma gota de orvalho.
O moço apeou do animal. O sorriso de Das Dô encorajaria até um calango diante
de uma cascavel.
Em inoportuna ocasião, o jumento sem
cerimônia e sem pejo fez descer no terreiro de Sá Lucinda um avantajado jato de
xixi. Mais que depressa, Manico tangeu o jegue para debaixo de um pé
maria-preta. “Vai pra lá, Fedô de Doido”! A fulô riu igual a uma noite de lua
cheia. O filho de Tintiliano acabara de botar mais um apelido.
Mal e mal começando uma prosa
encabulada, do lado de lá e do lado de cá, a primeira prosa assim de olho
arregalado em olho arregalado, corações em descompasso, como se furtando estivessem,
Manico, num sobressalto, viu aproximar-se o dono da casa, compadre dos seus
pais. “Boas tarde, Manico. Como vai o compadre? E a comadre? Ô Das Dô, minha
filha, traga uma cadeira pro moço”. Aquilo soou como uma bênção. Das Dô foi e
voltou num piscar de olho, mais rápida que um corisco virando cobra de fogo no
ar. Aquela seria a primeira de muitas belas tardes na vida daqueles dois.
Debaixo do pé de pau, Fedô de Doido, nem aí para o casalzinho, sacudia o rabo,
tangendo moscas.
* Padre, Advogado,
Professor da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras,
da Academia Sergipana de Letras Jurídicas,
da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário