sábado, 18 de julho de 2020

FEDÔ DE DOIDO




 

 

JOSÉ LIMA SANTANA*

 

 

            Ah, Manico de Tintiliano! Quantas presepadas você não armou no Boqueirão de Cima, nos tempos enturmados com Coceirinha e seu irmão Vadico, filhos do velho Zé Sebinho? Fedô de Doido...! Eu sei muito bem que o leitor gosta de especular. Afinal, eu também sou leitor. E especulo. Ora se... Porém, o título deste mísero escrito não tem nada a ver com o cheiro ruim que podia exalar da sobaqueira de Manico de Tintiliano do finado Zé de Cazuza. Nem de longe. Manico conversador, danado para arranjar presepadas. Bicho sorrateiro em boas conversas estava ali. Dava dribles com a língua de deixar qualquer interlocutor tonto, tirturado no desmantelo do palavreado. Menino, um adolescente, mas de muito bom tino.

            Manico era dado a botar apelidos nos outros. Ninguém lhe escapava. Nem o padre João das Virgens Fortunato, que se demorou na cidade para mais de trinta anos, de lá saindo bem velhinho, para um asilo das Irmãs de Caridade, na capital, já trôpego, a voz cansada, para entregar a alma a Deus pouco mais de dois anos depois. Um típico pároco de aldeia, incansável trabalhador da messe do Senhor. Seis cidades e um monte desembestado de povoações para assistir. Viajava, sozinho, por esse mundão de meu Deus, montado numa burra apaideguada, que de tempos em tempos, ele trocava por outra de igual valia. Um homem culto. Criou escolas, apaziguou adversários, realizou santas-missões, batizou, casou, confessou um magote de gente. Semeou o Evangelho sem ter descanso. Podia ter saído bispo, mas se recusou a deixar o sacerdócio simples, mas, ao mesmo tempo, tão grandioso, sacerdócio junto ao povo miúdo. Pois bem. Até aquele santo homem mereceu um apelido saído da boca de Manico de Tintiliano: Luz de Anjo. Um apelido respeitador para um homem respeitado pelo mundo afora.

            Os apelidos que Manico botava nas outras pessoas eram desembestados. Urubu cansado, Guela de bem-te-vi, Vara de virar tripa, Beira de penico, Lenço de mulher-dama, Bilhete sujo, Mijo de sagui, Bunda de tanajura, Fiofó arregaçado, Tamborete sem pernas, Olho de boi zanoio, Cacimba sem água, Asa de muriçoca, Pavio de candeeiro, Donzela morta, Boca de caçapa, Boi deitado, Cabeça sem miolo, Fundo de panela, Gazela apressada. Eis alguns dos apelidos, cujos apelidados ainda vivem. Apelidos pegam, ou não pegam. Se a pessoa apelidada subir nos tamancos, rodar a baiana, fazer fuzuê, aí o apelido pega. Ninguém, daquele tempo, azedou mais com o apelido do que Chico de Mamede, que não gostava de ser chamado de Limonada. Ele virava nas seiscentas. Pior era quando dois sujeitos lhe azucrinavam, um gritando “Limão!”, e outro gritando “Açúcar!”. Então, ele garrava de uma faca peixeira e brotava: “Mustura, fio do cabroco, mustura, que eu lhe decosturo de faca, do quengo à bicheira do pé”! A molecada ia à loucura.

            Mas, e Fedô de Doido, onde, enfim, entra nessa trama? Calma. O leitor deve ter a paciência que tem o autor, embora este não seja lá grande coisa, no trato do palavreado. É preciso ter calma. Afinal, todo escrito tem um fim, embora nem sempre seja do agrado do leitor. Fedô de Doido...! Que apelidozinho mais desgraçado! É de tapar o nariz. Porém, é, também, de se ter misericórdia dos pobres amalucados que andam por aí, sem esmo, sem atinar para a vida, os miolos desconjuntados na cabeça, vagando como almas penadas de carne e osso. Vidas que minguam no descompasso do desajuizamento.

            Era uma tarde de sol frouxo, que dava sinais da aproximação do inverno, tardio, nos fins de maio. Ninguém plantara o milho de São José. As chuvas não deram sinal, nos meados de março. Entrou abril com o sol a pino, dia após dia. Seria mais um ano de seca verde, como o ano anterior? Prenúncio de miséria, de fome e de sede? Não, não seria. A grandeza de Deus, como dizia Sá Bertina de João de Rosa, ainda cairia, bem lacrimejada, para fazer a terra engravidar e parir todo tipo de brotos. Pois naquela tarde, em que um ventinho safado de bom descia da Serra das Moças, com nuvens bonitas prendendo e soltando o sol, Manico vinha pela estrada do Caga Sebo, montado no jegue de Tintiliano, seu pai, com os pés quase arrastando no chão, cantarolando uma modinha antiga, que sua mãe, Cecilinha de Tintiliano, devia cantarolar enquanto cuidava da lide. Passando na porta de Porfírio de Sá Lucinda de Bastião das Aroeiras, deu de cara com Maria das Dô, filha caçula de Porfírio, que começava a desabrochar, qual fulô de mandacaru em prenúncio de chuva. Ali estava uma morena de endoidecer um quengo, de fazer um cabrinha no verdor da vida, se livrando da inhaca do mijo, como se dizia, ver os olhos não grudarem no sono por uma noite inteirinha. Ah, miséria de vida era a chegada da paixão alucinada, atirando por terra os beiços de alguém! Um endoidecimento. Coisas sem-vergonhas passando pela cabeça e se materializando na solidão. Agonia. Uma fulô de mandacaru amorenada, de formas botando ainda mais belas formas, formando uma formosura de maior esplendor do as auroras, juntas, do mundo inteiro.

            Manico manobrou a alimária para o terreiro de Porfírio e Sá Lucinda. A fulô amorenada expendia nos seus quinze anos. O de coração triturado não passava dos dezessete. Coração a carecer de um lenitivo para a sua agonia. “Boas tarde, das Dô”! A voz quase sussurrante do rapaz fez a fulô abrir um sorriso, como se procurasse beber uma gota de orvalho. O moço apeou do animal. O sorriso de Das Dô encorajaria até um calango diante de uma cascavel.

            Em inoportuna ocasião, o jumento sem cerimônia e sem pejo fez descer no terreiro de Sá Lucinda um avantajado jato de xixi. Mais que depressa, Manico tangeu o jegue para debaixo de um pé maria-preta. “Vai pra lá, Fedô de Doido”! A fulô riu igual a uma noite de lua cheia. O filho de Tintiliano acabara de botar mais um apelido.

            Mal e mal começando uma prosa encabulada, do lado de lá e do lado de cá, a primeira prosa assim de olho arregalado em olho arregalado, corações em descompasso, como se furtando estivessem, Manico, num sobressalto, viu aproximar-se o dono da casa, compadre dos seus pais. “Boas tarde, Manico. Como vai o compadre? E a comadre? Ô Das Dô, minha filha, traga uma cadeira pro moço”. Aquilo soou como uma bênção. Das Dô foi e voltou num piscar de olho, mais rápida que um corisco virando cobra de fogo no ar. Aquela seria a primeira de muitas belas tardes na vida daqueles dois. Debaixo do pé de pau, Fedô de Doido, nem aí para o casalzinho, sacudia o rabo, tangendo moscas.

 

 

* Padre, Advogado, Professor da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da  Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


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