Claudefranklin
Monteiro Santos*
Próxima de completar cem anos de sua
primeira edição, uma das obras mais polêmicas de Lima Barreto ajuda a entender
o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. O pêndulo que separa os dois tempos e no
mesmo movimento os aproxima intimamente define ao livro Os Bruzundangas a sua importância na História da Literatura Brasileira
e recoloca o autor na cena discursiva que versa sobre a tênue fronteira entre ficção
e realidade.
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu
no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1888. Aos seis anos de idade, ficou
órfão da mãe, Amália Augusta. O trauma não lhe causou empecilhos para se destacar
na escola pública, quando estudou no Colégio Paula Freire. Ingressou no nível
superior, mas precisou interromper os estudos para ajudar financeiramente em
casa, pois seu pai havia enlouquecido. Trabalhou como amanuense (uma espécie de
secretário de repartição pública) e como jornalista no Correio da Manhã. Morreu
muito jovem, no Rio de Janeiro (01.11.1922), aos 41 anos vítima de complicações
coronárias, agravadas pela loucura e pelo alcoolismo.
Lima Barreto, mestiço de origem e
polemista por essência, além de encontrar dificuldades de ser aceito entre os pares
de sua época, teve parte de sua obra publicada postumamente. Coube aos
escritores Francisco de Assis Barbosa e Lilia Moritz Schwarcz tornar o autor
conhecido e respeitado, com exímios trabalhos biográficos, dignos de nota e
elogios, respectivamente: Vida e Obra de Lima Barreto (1952) e Lima Barreto –
Triste Visionário (2017).
Lima foi um combatente da literatura
brasileira, lutando contra todo tipo de preconceitos e contra o racismo,
inclusive o chamado racismo científico de sua época. Andarilho do Rio de Janeiro
(de onde só saiu para se tratar do alcoolismo, em Marisol, com o médico
lagartense, radicado em Santos, Ranulfo Prata), captou a cidade e a levou para
seus escritos. Lugares e sujeitos. Com uma “literatura embrenhada de memória”
(Lilia Schwarz), tornou-se uma leitura obrigatória para a compreensão do Brasil
da Primeira República.
Autor de vários romances, crônicas,
artigos, memórias, destacou-se, sobretudo pela obra Triste Fim de Policarpo
Quaresma (1915), que mereceu uma versão para o cinema brasileiro em 1998, com
Paulo José e Giulia Gam. Em 1982, a Escola de Samba Unidos da Tijuca lhe fez
uma homenagem com o samba-enredo Lima Barreto – mulato, pobre, mas livre.
No que diz respeito ao livro Os Bruzundangas,
trata-se de uma sátira que foi escrita, em forma de notas, entre os anos 1917 e
1921, tendo sido publicada postumamente em 1922. Para Valentim Facioli (USP,
1985): “(...) o efeito do texto é o de um ferrão na inteligência do leitor” (p.
11).
Lima usa uma tática para falar do
Brasil de seu tempo, valendo-se de um lugar imaginário (Bruzundanga). Ao
colocar, o tempo todo, ambos os lugares em oposição (aqui e lá), no fundo o
escritor está se referindo a um único lugar. Para dar nome aos seus
personagens, Lima Barreto inventou nomes próprios, como se fossem escritos em
língua estrangeiras. Se vale também da língua portuguesa e em alguns casos até
dá “nome aos bois” (Coelho Neto).
Entre as críticas mais contundentes,
destaque para as dirigidas aos “samoiedas”, termo utilizado por Lima Barreto
para criticar a chamada literatura “sorriso da sociedade” da época, não muito
diferente da atual: erudição floreada e discurso convencional e panegírico,
descolado da realidade. Ao falar dos “samoiedas” referia-se aos literatos e
intelectuais de pouca obra ou de obra nenhuma, que pousam de figurões
respeitáveis, inclusive nos círculos literários, movidos pela vaidade e não
pela arte literária. Nesse sentido, para Lima: “(...) A glória das letras só as
tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se
esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega” (edição de 1985, p. 23).
A seguir, em linha gerais, as principais
críticas de Lima Barreto presentes na obras Os Bruzundangas: ao jeito pavão de
ser das elites brasileiras; à economia monocultura, latifundiária e dependente
do capital externo; à nobreza de toga, de espada, doutoral e de palpite; ao
acúmulo de cargos públicos, às acomodações e conchavos políticos e à propina; à
hipocrisia católica; ao ufanismo exacerbado; ao ensino e os privilégios dos
mais abastados; à desobediência à Constituição, sua mutilação e inúmeras
modificações para acomodar interesses particulares ou de ideologias; ao carreirismo
político; ao heroísmo fabricado; à corrupção por meio de assaltos “legitimados”
aos cofres públicos; ao sistema eleitoral; à prática mercantil da medicina; à
bajulação da personalidade e o culto à própria imagem; ao loteamentos de cargos;
entre outros, atualíssimas.
Sobre
o conjunto da obra e como a podemos situar no passado e no presente, o próprio
autor nos dá uma valiosa pista: “(...) se a posteridade não encontrar nelas [as
notas sobre Bruzundangas] algum ensinamento, e as desprezar, os contemporâneos
do meu país podem achar nestas rápidas anotações de coisas de nação tão remota,
moldes, receitas e meios para esbodegar [grifos meus] de vez o Brasil” (p. 66)
É duro (re)ler Os Bruzundangas e notar que o Brasil segue o mesmo, em muitos
aspectos, passados cem anos. A mesma canalhice de sempre e o mesmo desprezo
pela cultura, pelo saber e pela ética. Segue a economia a ditar os rumos da
nação, por meio de manobras políticas escusas à base do privilégio e da
desfaçatez.
*Professor,
doutor em História, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia
Lagartense de Letras e da Academia Sergipana de Educação.
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