José Lima Santana*
A praça triangular era circundada por vinte e um eucaliptos. Praça João
Ventura. No centro da praça, seis pés de tamarindos. Ali jogava-se futebol. Ali
brincava-se de carros de lata ou de madeira. Ali jogava-se pião e bola de gude,
que se dizia de marraio ou marraia. Ali brincava-se de moleque de castanha de
caju. Ali jogava-se peteca. Ali, às vezes, ocorriam brigas de meninos ou de
homens. Mas, ali, também, mulheres teciam as rendas nas almofadas de bilros, em
tardes de verão, cantarolando antigas modinhas.
Nas duas esquinas da cabeça da praça, nas estradas da Caiçara e do
Gonçalão, situavam-se duas bodegas: a de seu Oscar Andrade, que depois passou
por outros donos, Lindolfo, pai de Zé Cabecinha, e Afonso, um capelense que
também matava porcos, engraçado que só ele. Dele, a bodega foi comprada por
Joel, cunhado do meu tio Carivaldo, que a vendeu a Edinaldo de Morenita; e a do
meu tio-avô Vangelo, que faleceu em novembro de 1959, passando a bodega para
sua filha Neneia (Dionélia Soares Santana), que passaria para o irmão Benani,
que a venderia a Manoel de Totonho de Bela, cunhado do meu tio José, e este, a
Milton sanfoneiro. Acho que foi nessa sequência.
Algumas bodegas não passavam de um cacete-armado, outras eram mesmo
pequenos armazéns de secos e molhados e armarinhos. Nestas, parte das compras
semanais das famílias eram feitas. Arroz, açúcar, macarrão, biscoitos
(“Sandra”, “Pilar”, “Tupi”), goiabada (“Peixe”), quitute (“Wilson”), café em
grão ou em pacote. Os cafés sergipanos eram: Café Aragipe (“O melhor café de
Sergipe”), Café Sul-Americano (“Bom do começo ao fim do ano”) e Café Império
(“O imperador dos cafés”). Carreteis, carrinhos e cachetes de linha
(“Corrente”), agulhas, botões, broches, outros aviamentos, pentes, sabonetes e
talcos (“Dorly”, “Eucalol”, o das figurinhas, “Phebo”, “Cinta-Azul”,
“Palmolive” etc.), brilhantina (“Zézé”, “Glostora”), pastas de dente
(“Kolynos”, “Kolipe”, esta era uma praga de tanto amarga, que Dona Berila de
“seu” Américo, afamado bodegueiro, recomendou a mamãe, porque ambas diziam que
os respectivos filhos “comiam” a pasta Kolynos, tinha, sim, um gosto
bonzinho...).
Cigarros pé-duro, bagoga, pacaio ou pacal, de fumo de corda picado,
enrolados em papel “Itacolomy”, que era, também, uma das marcas de baralho,
dentre outras. Cigarros de carteira (ainda vou escrever sobre as carteiras de
cigarros, que os meninos transformavam em “dinheiro”): “Continental”, com
filtro e sem filtro, (este era o preferido do meu pai), “Astória”, “Hollywood”,
com filtro e sem filtro, “Minister”, “Kent”, “Kennedy”, “Gaivota”, “Senador”
etc. E, claro, fósforos (“Pinheiro”) e pedras de isqueiros. Pilhas “Rayovac”
(as amarelinhas) e “Everedy”. Querosene “Jacaré”.
Nalgumas bodegas, o pé do balcão e o chão próximo eram sebosos de tanto
os homens derramarem um pingo das bebidas quentes, que ingeriam. Ora, um pingo
antes de beber, “para o santo”, ora o restinho do copo, além da cuspida, em
forma de cagada de pato, bem espalhada. Cuspe grosso, quando o sujeito já
estava para lá de Bagdá. Um nojo!
As melhores bodegas dispunham de geladeira. No início da década de 1960,
geladeira, nalguns casos, ainda era um luxo. Então, cervejas Brahma e
Antarctica. Bebidas ditas quentes eram variadas. Muitos tipos e muitas marcas.
Cito as que estão acesas em minha depauperada memória. Um vinho nordestino
famoso era o de jurubeba “Leão do Norte”. Havia quem gostasse de uma Genebra
“Gato”, que tinha a figura de um gato sobre um barril, e que a língua do povo
chamava “zinebra”. Uma aguardente famosa era a “Guaiamum”. Alguns gostavam de
Coca-Cola com Guaiamum; outros, do vermute Cinzano com “Guaiamum”, o famoso
rabo-de-galo. Martini era bebida de moça, diziam. Tinha uma aguardente chamada
“Rola Fogo-Apagou”, do rótulo amarelo. Aí o sujeito dizia: “Bote uma rola”! O
Cinzano fez muita fama e era o patrocinador do mais espetacular noticioso do
rádio sergipano, o “Informativo Cinzano”, do radialista Silva Lima, na Rádio
Liberdade de Albino Silva, mas que, no fim da década de 1960, passou para a
Rádio Difusora, hoje Aperipê. Nas bodegas de Dores tinham boa aceitação os
vinhos de jenipapo, caju e banana, do fabrico de Júlio Costa, de Maruim.
Bebidas ainda mais quentes eram as cachaças, vindas de Capela ou dos alambiques
locais: Santa Cruz, do finado Maurício, depois, do seu filho Mário, que, no
passado, tinha sido um engenho de açúcar, aliás, o último a moer em Dores, e
Fostina, de Lealdo Araújo Costa. As misturas: erva-cidreira, erva-doce, milone,
angico, murici, barbatan, capim-santo, pau-ferro e tantas outras cascas de pau.
Lá no alto da prateleira, uma garrafa assustadora para alguns meninos: uma
cobra engarrafada, geralmente coral. Tinha quem dela bebesse. Curava picada de
cobra. Santo Deus!
Para a meninada, as guloseimas em forma de balas, bobons, drops, gomas
de mascar e pirulitos. Mas, bons mesmo eram os pirulitos de Dora de Américo de
Joaninha, da professora Ediméia e de Dina de Pucina, pirulitos de mel de abelha
e alguns com uma pitada de caldo de goiaba. Delícias que não eram vendidas nas
bodegas.
Pela manhã, os inefáveis pacotes de pão jacó e pão doce, de dois tipos:
carrapicho e peito de moça. À tarde, chegavam os bolachões de coco, mornos. Ah,
nada como um bolachão com cocada quentinha! Ou com mariola, ao que me parece,
fabricada pelo pai do professor Nicodemos Falcão, na Capela. Eu também gostava
da “sergipana”, parecida com o bolachão, só que era fofa e doce.
E os refrigerantes, que também faziam a festa da meninada? Eis alguns:
“Gasosa”, “Jade”, “Crush”, “Grapette” (“Que bebe, repete”). A Coca-Cola parecia
já existir desde o tempo do livro do Gênesis.
Nas festas de fim de ano, algumas bodegas realizavam as rifas, jogatina
com baralho. O jogo era o 31. Rifavam-se goiabadas, garrafas de bebidas,
quitutes, copos, pratos etc. Eu era “contratado” por Edinaldo para tomar conta
de algumas mesas do jogo, recolhendo a quota da casa. Além dos trocados, ainda
recebia uns brindes de quem acabava ganhando muitos. A minha casa ficava a
poucos metros da bodega. Papai era amigo de Edinaldo, então, deixava que eu lá
ficasse. Quando tinha poucos jogadores, eu também me arriscava no 31. Um menor
na jogatina.
Nas bodegas, eu coletava palavras, apelidos e ditos populares, anotados
em cadernos, que, hoje, me servem, nas crônicas e contos que escrevo. Para
finalizar esta crônica simplória, papai tinha conta aberta na bodega. Então, eu
e meu irmão comprávamos guloseimas e botávamos na conta. Certa feita, papai nos
proibiu de comprar, pois estávamos comprometendo o orçamento doméstico.
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