sexta-feira, 7 de agosto de 2020

BURCKHARDT E O RENASCIMENTO ITALIANO

 

 

Claudefranklin Monteiro Santos*

 

 

No primeiro semestre de 1994, na disciplina Moderna I, a Profª Drª Terezinha Oliva lançou um desafio para seus alunos: fazer a leitura, resenha e apresentação de uma obra da historiografia que discutisse um tema específico da História Moderna. Todos, naturalmente, foram escolhendo aquelas que estivessem escritas em português e que tivessem o menor número de páginas possível. Restou sobre a mesa da professora, uma massaroca de mais de 400 páginas, que ficou sob meus cuidados e responsabilidade.

Refiro-me ao livro O Renascimento Italiano, de autoria de Jacob Burckhardt. Curiosamente, ao vasculhar alguns de meus exercícios acadêmicos, me deparei com uma resenha que fiz para aquela ocasião e notei, ao relê-la que a obra está completando 160 anos da publicação de sua primeira edição. A versão a qual eu me debrucei foi de 1973, editada pela Livraria Martins Fontes e traduzida por Antônio Borges Coelho.

Die Kultur der RenaissanceenItalien: ein versuch. Este foi o título original da obra, que segue sendo uma grande referência para entender um dos maiores acontecimentos culturais e científicos da Europa, entre os séculos XV e XVI. Movimento que revolucionou não somente as artes, mas também a ciência, a filosofia e até mesmo a religião. A ênfase no humanismo e na razão deu novo ânimo e apontou novos rumos para o mundo, cujos efeitos ainda se fazem sentir em nosso tempo.

Natural da Basiléia (Suíça), no dia 25 de maio de 1818, Jacob Burckhardt doutorou-se em História, ministrando seus primeiros cursos em sua cidade natal. Viajou muito, percorrendo importantes lugares da Itália, da Alemanha e da França, onde morou por muitos anos. Foi professor de História da Arte na Escola Politécnica de Zurich. Além de O Renascimento Italiano, escreveu A Época de Constantino, o Grande (1853) e Civilização Grega (1880-90). Morreu no dia 8 de agosto de 1897, na Basiléia.

Ele viveu numa época onde a Europa atravessava um momento de discussão em torno da identidade nacional, do patriotismo e da defesa da unidade territorial, que lançou as bases para a Unificação Italiana (1870) e a para a Unificação Alemã (1871). Uma preconização dos conflitos que o mundo irá viver no século seguinte, em razão da formação de grandes impérios.

Além disso, era um final de século onde a História, enquanto conhecimento, almejava à cientificidade, sob a batuta das ideias de Ranke e a necessidade de contar a história como ela tal e qual aconteceu e se apresentou. Uma busca quase inglória pela objetividade na ciência histórica. Elementos historiográficos que ele acabou agregando às suas obras e a sua análise, com um particular: dando vasão aos aspectos culturais.

O Renascimento Italiano, de Jacob Burckhardt, é uma obra robusta e de fôlego discursivo, rica em informações e bem fundamentada. Está dividida em seis partes: 1) O Estado considerando como obra de arte; 2) Desenvolvimento do indivíduo; 3) O ressurgimento da Antiguidade; 4) A descoberta do mundo e do homem; 5) A sociabilidade e as festas; 6) Costumes e religião.

Na primeira parte, o historiador suíço dedica-se a analisar a existência da tirania nos séculos XIV e XV, que dominava o território italiano à exceção de Veneza e Florença, considerada pelo autor como o primeiro Estado Moderno. Destaca ainda a questão da guerra e seu avanço em razão das novidades tecnológicas. Por fim, analisa o papado, com destaque para o pontificado de Sisto VI.

Em seguida, na segunda parte, Burckhardt opta por uma análise mais filosófica dos fatos, mas sem abrir mão do objetivismo. A palavra-chave é o individualismo. Procurar compreender o sentido do indivíduo na Itália da época Moderna, em contraposição ao que se convencionou ser o corporativismo do Medievo; discute ainda sobre a questão da personalidade e também a zombaria do comportamento espirituoso do homem moderno, com seu humor predominantemente mordaz e às vezes até cruel.

A larga influência da Antiguidade na produção dos renascentistas será uma das tônicas da terceira parte do livro. Dedica também especial atenção a descrever a atuação de figuras como Dante, Petrarca e Boccácio, bem como dos chamados promotores do humanismo, a exemplo de Manetti e o papa Leão X, ao qual esbanja comentários e tece elogios.

A ciência é o escopo da quarta parte. Burckhardt realça duas ideias que geraram outros temas: a preocupação com o natural e com a descrição fidedigna do objeto em atenção. Nesse sentido, ressalta o desenvolvimento das ciências naturais. Para ele, aqueles tempos permitiram ao italiano abrir-se ao que ele chama de “um espírito de consciência da corporeidade humana”, que irá refletir na inserção do conceito de beleza, na sensibilidade artística e poética, enfim, no espírito italiano moderno de pintar, falar e cantar aquilo que é belo, real e natural.

Nas duas últimas partes, o autor mostra a sua versatilidade analítica de um historiador singular do final do século XIX, discorrendo sobre a sociedade e seus costumes, a situação da mulher na sociedade moderna, a vida doméstica e o cotidiano, a religião e a religiosidade, a liberdade de ser e de crer ou não crer, as festas e gosto pelo esplendor e pela pompa.

Aos historiadores do nosso tempo que perderam a mão na escrita da história, divagando e se perdendo em estruturas complexas e teorias densas que nada explicam e dizem, vale a pena uma leitura acurada e interessada de O Renascimento Italiano. A obra, além de apresentar-se como um grande legado da historiografia do século XIX, também, em grande medida dialoga com o século XXI, apontando para uma metodologia que dá conta de analisar o homem sem deixá-lo nulo e inexistente em meio a tantos floreios discursivos que dizem mais da vaidade e da arrogância de quem escreve do que da vida, do ser humano e de suas sutilezas históricas.

 

 

*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em História e membro das Academias Sergipanas de Letras e de Educação.

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