sábado, 29 de agosto de 2020

O CANGACEIRO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O cangaceiro olhou para a casa de janela aberta. O bando passava a passo lento, entrando no povoado miserável, xexelento, de casas de taipa e gente de pés no chão. Na janela, uma mocinha, que não devia ter mais do que quinze ou dezesseis anos de idade. Ela não parecia assustada com aqueles homens mal-encarados, bem montados, com roupas cobertas de poeira. Fuzis a tiracolo, punhais atravessados na cintura.

O bando vinha de um tiroteio, na fronteira do estado vizinho. Alguns macacos mortos. Dois cangaceiros mortos e um ferido, carregado numa rede dependurada nos arcos de duas selas. Hemorragia. Ferimento na barriga. Era o irmão caçula do cangaceiro que olhara para a janela, onde Mariinha estava coberta de inocência e, talvez, desejo. “Capitão, naquela casa, ali atrás, à direita, tem uma moça na janela. Deixe eu levar Tiro Certo para lá. Quem sabe, Nosso Senhor dá um valimento pelas mãos daquela moça”, disse Adalberto Rompe Cerco, o lugar-tenente do chefe dos cangaceiros. O capitão assentiu com a cabeça. E disse: “Faça como tu me pede”!

Rompe Cerco dirigiu ordens aos dois companheiros que conduziam, na rede, o irmão ferido. Voltaram. Adalberto dirigiu-se à mocinha, que não tinha arredado pé da janela: “Boas tardes, dona moça. Tem mais gente em casa? Este aqui na rede é meu irmão. Tá ferido. Precisa das mão dum anjo pra vê s’incontra um valimento de cura”.

Mariinha estava só em casa. A mãe fora a um povoado distante, ajudar uma parenta com dor de menino. Moravam sozinhas. O pai e os dois irmãos tinham arribado para o sul, um ano antes, procurando cavar a vida na terra estranha. Um dia, mandariam buscar as duas. No sertão, cavava-se a vida e a morte.

A moça não se fez de rogada. Ofereceu seus préstimos. O cangaceiro ferido foi levado para o interior da casa. Deitaram-no na rede, no chão de terra batida. Mariinha rasgou a camisa ensopada de sangue. Franziu a testa: “Parece mal. Mas, Deus tudo pode”. Dito isso, mergulhou no interior da casa e voltou com uma bacia d’água, panos limpos, uma faca de ponta e um alicate. Retornou e veio com um candeeiro aceso. Pediu que o irmão do moribundo esquentasse a faca no bico do candeeiro. Limpou a ferida. Um tiro. Adalberto Rompe Cerco admirou-se da disposição da moça, que não se intimidou diante deles – ele e os dois que transportaram Tiro Certo.

A tarde estava nos soluços derradeiros, preparando-se para ceder lugar ao negrume da noite. O sol explodia em vermelho e dourado. A mais esplendorosa de todas as mortes, na certa, era a do sol, que, tingia o espaço com as cores estonteantes, que o celestial pincel modelava. Mariinha tomou da faca. Estava acostumada a ajudar a mãe em precisões de partos. Era uma mocinha destemida.

Pediu que os três segurassem os braços e as pernas do ferido, que gemia gemidos soluçantes. Por sorte, a perfuração era quase rasa. O gibão de couro devia ter amortecido o impacto da bala. O problema era que tinha perdido muito sangue. O cangaceirinho, mais ou menos da sua idade, estava mais branco do que uma vela. Ela também estava acostumada a castrar frangos e bacorinhos, serviço que, desde doze anos, fazia melhor do que os dois irmãos, causando admiração ao pai.

Com cuidado, fez a faca penetrar na ferida. O cangaceiro soltou um gemido grosso, como um berro. Ela parou. Mas, pouco esperou. Tornou a enfiar a ponta da faca, aquecida na chama do candeeiro. Topou no projétil. O rapaz estremeceu. Ela pediu para o irmão do ferido esquentar o alicate. Feito isso, fez o alicate penetrar na ferida. Não deu muito custo, e eis a bala de revólver extraída. A cirurgiã de ocasião lavou o ferimento. Fez uma compressa e uma faixa. Exclamou, enxugando o suor da testa: “Agora, é esperar por Deus”!

Os cangaceiros precisavam tocar o caminho. O rapaz ferido ficaria. Não havia perigo de perseguição dos macacos, pois estavam em outro estado, no qual não haviam ainda tido ou dado trabalho. Rompe Cerco estava agradecido. Orientou a mocinha a encontrar alguém, para ficar com ela e o ferido, pois a sua honra não deveria ser atacada, por abrigar um homem em sua casa, estando sozinha. Deixou dinheiro, para alguma necessidade.

O bando partiu. Rompe Cerco seguiu com um rebuliço no coração. Estaria maluquecendo? Ao passar o alicate esquentado, sentiu o toque da mão da mocinha na sua mão. Demorou um átimo, mas pareceu uma eternidade. Teria sido de propósito? Um engraçamento? Pareceu-lhe que sim. Nunca tinha sentido nada parecido, antes. Teria que voltar, pelo irmão ferido e por ela.

À noite, amoitados na caatinga, sentiu cólicas e acesso de vômito. O pensamento voltado para Mariinha. Seria sua. Seria a primeira mulher num bando de cangaceiros. Seria sua, e de mais ninguém. Jurou pelo Padim Ciço. Logo, a sua família seria formada por ela e seu irmão, a quem deveria cuidar, tão moço que ainda era.

Passadas seis semanas, numa boquinha da noite Rompe Cerco voltou ao povoado. Sem a costumeira indumentária, para não chamar a atenção. Precisava saber do irmão. Precisava rever a sua pretendida. Ah, o olhar dela, quando o bando passou em frente à sua casa...! O olhar da mocinha foi direto no seu olhar. Achou mesmo ter percebido um sorriso, que seria para ele. Naquele instante, brotou um alvoroço no seu coração de homem embrutecido.

Não ousou dizer nada, por ora, ao capitão, mas a levaria consigo, junto com o irmão, se curado estivesse. O único irmão, já que os três outros tinham tombado no cangaço, anos antes. O cangaceiro apeou do cavalo. A porta da casa estava aberta. “Ô de casa”! De dentro, a resposta: “Ô de fora”! A mãe de Mariinha acudiu ao chamado. O visitante se identificou. Ela chamou pela filha, que estava ainda mais bela. Um sorriso de flor aberta iluminou o seu rosto ao vê-lo. Ele não teve dúvida: ela era sua. Mariinha gritou: “Roberto, teu irmão tá’qui”!

Adalberto Rompe Cerco recebeu o abraço do irmão, que estava bem. Quando se desenlaçaram, o rapaz segurou a mão de Mariinha e disse: “Mano, eu vou largar essa vida do cangaço. Encontrei a mulé da minha vida”. Adalberto amarelou. O sangue lhe fugiu das veias. Caçou chão sob os pés e não achou. De chofre, avermelhou. O sangue voltou. Quente. Uma fornalha parecia lhe queimar o corpo inteiro. Não perderia a sua mulher para homem nenhum, nem mesmo para o irmão caçula, único ainda vivo. Desaforo daquele tamanho, homem nenhum suportaria. A moça seria sua ou de ninguém. Lavaria a sua honra com o seu próprio sangue, o sangue do seu irmão. Sacou do parabélum e grunhiu: “Ela é minha”! Mariinha pôs-se diante de Roberto, o primeiro rapaz por quem ela se engraçou, e, abrindo os braços, disse: “Deixe disso, Adalberto. Roberto e eu, a gente tem um destino. Se tu quer matar, mate os dois”. Rompe Cerco levantou a mão, segurando a arma com firmeza. Lá fora, o Saci, ave cuculiforme do sertão (Tapera naevia), tida, na voz do povo, como agourenta, cantou: “Buraco feito”! “Buraco feito”! A mãe de Mariinha suplicou: “Valei-me, meu bom Jesus”! Na sua mão, a luz do candeeiro bruxuleava.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.   


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