José Lima
Santana*
Manuelão de Zé
Timbira do finado Afonso de Miguelin. Eis o nome. Manuelzão era fruto do
cruzamento de brancos, negros e índios. Na pele, uma mistura de cores, no
sangue uma mistura de gênios bons e maus. Viúvo sem filhos, ainda muito novo
decidiu fazer rancho na Serra do Tabuleiro Grande, depois do Alecrim de Cima,
da Mata Verde, da Caatinga Amarela e das Timbiras, lugar de sua família.
Isolou-se do mundo. Tinha roçado e cabras de leite.
Cidade? Depois
que se refugiou na Serra, não foi por lá mais do que duas vezes. Bicho do mato.
Fera nos rebuliços de encantamentos. O neto do finado Afonso de Miguelin, pelo
lado paterno, e de Mané Grigório da negra Maria de Rumão Catunda, pelo lado da
mãe, era muito requisitado para fazer coisas. Animal fujão ou perdido, ele o
trazia de volta, apenas tocando o polegar esquerdo no rastro deixado. Livrava
pastos e soltas de gado, expulsando cobras venenosas de todo tipo e tamanho,
balançando na mão esquerda um pequeno chocalho, enfeitado com guizos do rabo de
uma cascavel.
Por onde ele
passasse tilintando o pequeno chocalho, as cobras mudavam-se de capineiras ou
de capoeiras, de baixios ou de carrascos (terras ruins, pedregosas). Valho-me
do testemunho bem testemunhado de Valdomiro Carrapatoso, para lhes dar nota do
sucedido na fazenda Riacho Torto, comprada de novo por Antônio Jurema,
bodegueiro fino em roubar nas contas de cadernetas dos fregueses descuidados.
Jurema perdeu
duas vacas no mesmo lugar de beber. Picadas por cobra. Ora, sendo no mesmo
lugar, era cobra vezeira, por ali entocada. Só podia ser. Manuelão de Zé
Timbira correu por pastos afora, beiras de riacho, baixios e elevados, enfim,
toda a fazenda do bodegueiro, que estava tendo ares de rico. Desentocou cobras
jararacas, jararacuçus, corais, corres-campos e o que mais ali podia se entocar
ou rastejar.
Valdomiro,
cabra da minha desmedida confiança, homem sem treitas e sem tortuosas palavras,
afiançou-me que viu dezenas de cobras, dezenas não, disse ele, centenas, em
debandado rastejamento. O chocalho de Manuelão tinha mais poder do que muita
autoridade de terno e gravata, de toga ou jaquetão. Disse-me, cruzando os dedos
em sinal de veracidade de suas nunca desmentidas palavras, que uma jararacuçu
malha de sapo, bicha traiçoeira que nem matador de aluguel entrincheirado numa
curva, meteu-se no oco de um pé de pau seco, para fugir do furor do chocalho.
Adiantou não. Na mesma horinha, desceu do céu o fogaréu de um raio, fulminando
o pau seco, que ardeu até virar um amontoado de cinzas. Num átimo. E não era
tempo de trovoadas. Era agosto, atolado em bom inverno.
Até matar
gente, Manuelão matava, a depender da ocorrência de um caso escabroso, que
merecesse a devida reparação. Matava de sopro. Nunca perdeu um. Serviço de
batimento de botas, encomendado a Manuelão era garantido. O que ele dissesse,
valia.
Em Monte Azul,
cidadezinha pachorrenta, de casas quase caindo, de gente de pouca eira e
pouquíssima beira, mas muito presunçosa, fazia morada um tal de Francisquinho
Canuto, cujo nome a molecada vadia o arrastava na lama mais podre, que o diabo
mexeu e deixou para trás. Diziam as línguas de fétido trapo que os dois filhos
do Canuto tinham, cada um, um pai. Uma miséria! O que não eram capazes de
inventar pessoas que cuidavam da vida alheia, deixando as suas vidas
escondidinhas, debaixo da sujeira dos tapetes de sacos de estopa! “Raça de
víboras egípcias, a matar princesas”, dizia Tonho de Malaquias Zanóio, leitor
de almanaques, referindo-se a uma rainha do Egito que foi se apaixonar por uns
grandolas de Roma, em tempos de há muito idos.
Línguas de
trapo ou não, alguém deu com a língua nos dentes e delatou a mulher de
Francisquinho, numa noite em que ele estava no costumeiro carteado, no bar de
Cardosinho de Sá Bilica. “Tem urso na sua cama”, disse o delator. Mas, disse em
voz alta, para todo mundo ouvir. O supostamente traído, avermelhado que era,
amarelou e cinzou. Atirou na mesa as cartas do baralho, passou a mão na
cintura, procurando o revólver, pois só andava armado, sob os auspícios do
sargento Tonho Perneta, seu compadre, levantou-se, empertigou-se e tomou o rumo
de casa. Ninguém ficou no bar. Todo mundo na rua. Haveria uma morte ou duas
mortes?
Honra lavada
com sangue. Tempo antigo... Não demorou muito e a cidadezinha foi sacudida por
uma sequência de tiros. Cinco ou seis? Divergiam as pessoas. “Matou os dois,
com certeza”, gritou uma velha de voz esganiçada. “Matou os dois, não. Matou o
Ricardão. Francisquinho é caidinho pela mulher. Corno convencido é a pior peste
que há”. Fala de Juca do Berimbau, soldado de polícia reformado. Matou não. Nem
ele, nem ela. Francisquinho Canuto meteu bala no sofá da sala, onde encontrou a
mulher em safadística conxambrança com Marcos Pé de Bode, oficial de justiça.
Errou todos os disparos. “Na certa, a mão tremeu. Tem corno, que além de chifrudo,
tem frouxidão nos nervos”, comentou Peixotinho de Zé Crioulo.
Ao que
parecia, ficaria o dito pelo não dito, o ocorrido pelo não ocorrido. Ao que
parecia. Francisquinho ficaria com a mulher que, pelo que se alardeava na
cidadezinha, era um pedaço de mau caminho. Bonitona, azeitada e foguenta.
Quanto ao oficial de justiça, continuaria citando e intimando os chamados em
juízo.
Pela primeira
vez, Francisquinho tomou tenência na vida, com relação à bonitona foguenta.
Atravessou terras e foi, de rota batida, parar na Serra do Tabuleiro Grande, no
pardieiro de Manuelão. Encomendar a morte de Marcos Pé de Bode. Contou o
ocorrido. Falou dos filhos, que precisavam da mãe. Fez arrodeios, como se
quisesse justificar os chifres. O eremita da Serra escutou, calado. Um
fedorento bode pai de chiqueiro acercou-se dos dois.
Manuelão topou
fazer o serviço. “Faço, sim, seu Francisquinho. Faço, sim. Mas tem uma
condição, que eu digo adispois”. Trato feito. Manuelão encheu as bochechas. Das
suas ventas saiu um sopro gélido, que desceu a Serra, atravessou caminhos até
chegar à cidadezinha. Era noite. O oficial de justiça, desassossegador de
família, estava no jantar com a esposa. Eram casados de novo. Diante dele, um
prato de sopa esfumaçando. Ele sentiu um vento glacial entrar em suas narinas.
Era o sopro da morte. A cabeça caiu no prato de sopa. Caiu murcha como um
maracujá de fim de feira. Sentindo o alcance do serviço, Manuelão exclamou:
“Seu Francisquinho o tal Pé de Bode foi encontrar o aparentado, nas profundezas
do inferno. E agora, a minha condição: o senhor nunca mais vai fazer coito com
sua patroa. Se fizer, morre”.
Aliviado, mas
assustado com a condição que lhe fora imposta, Francisquinho voltou para casa.
Nunca mais procurou a mulher para os chamegos da alcova. Passaram-se uns anos.
Numa noite, o diabo atentou. Ela estava com uma camisola vermelha,
transparente. O fogo consumia as entranhas do marido e ele não resistiu.
Então...
*Padre, advogado, professor do Departamento de
Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de
Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de
Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário