José Lima Santana*
Sem ter, à época,
plena consciência, eu já fui “banqueiro”. Capitalista fino. Como? Não sei se
noutras cidades os meninos do meu tempo brincavam de transformar carteiras de
cigarro em “dinheiro”. Em Dores, sim.
Cada carteira tinha um
valor de face. A carteira de Astória valia pouco. Era a mais barata. Valia Cr$
100,00, a menor “moeda” usual, para nós. Continental sem filtro valia Cr$
200,00. Hollywood sem filtro valia Cr$ 500,00. Kent e Senador valiam Cr$
1.000,00. Hollywood com filtro valia Cr$ 5.000,00. E Minister, a Top de linha,
valia Cr$ 10.000,00. Quando apareceu a Continental com filtro, igualou-se à
Hollywood congênere.
O “dinheiro” de
carteira, como nós chamávamos, servia para brincar, apostando em jogos de bola
de gude, moleque de castanha, baralho, dados (pios) etc. E, quando era o caso,
trocávamos por dinheiro de verdade: um milhão em carteira de cigarro valia Cr$
1.000,00 de verdade, uma nota de Cabral. Vendi muito. Com ele, comprávamos
gibis, “atletas” (de jogo de botões) e outras coisas, entre nós. Era, pois,
“dinheiro” corrente. Uma febre.
Em Dores, além de
alguns de menor relevância, como Vamilson da Rua do Ouro, havia dois
“banqueiros” principais: Valdir de Acrísio, na Praça da Matriz, e eu, no
subúrbio João Ventura. Emprestávamos esse tipo de “dinheiro” a outros meninos,
cobrando juros. O meu “capital” só aumentava.
Eu distribuía bombons
a meninos ainda menores do que eu, para apanharem no chão das bodegas e das
ruas as carteiras de cigarro vazias. Com isso, o meu “capital” duplicava a
olhos vistos. Eu era um neguinho rico, montado num monte de “dinheiro”, que
guardava em caixas de sapatos. Tio Patinhas? Nem tanto.
A vida fluía
inocentemente. Muitas vezes, eu vendia o “dinheiro” de carteiras de cigarro, a
fim de comprar o ingresso para assistir aos filmes de Durango Kid, Buck Jones,
Tim Holt etc. Toda segunda-feira tinha filme de cowboy (cobói ou cobóio, na
nossa língua). Ah, e o velho John Wayne? O maior cowboy de todos os tempos.
Dele, no Cine São José, lembro-me de ter assistido “No Tempo das Diligências”,
Rio Bravo – Onde Começa o Inferno”, “Rio Grande”, “Rio Vermelho” e o “Homem que
matou o facínora”.
Eu era vidrado em
faroeste. Era, não: ainda sou. Neste exato momento, fui à videoteca, contar
quantos DVDs de bangue-bangue eu tenho: cento e trinta e quatro. Clássicos do
faroeste.
Com o tempo, tornei-me
viciado em jogar baralho com outros meninos, apostando o nosso “dinheiro”. Nas
férias escolares, eu não queria outra vida. E tinha muita sorte. Às vezes,
jogando pif-paf, que chamávamos de “cunca”, eu escondia uma carta, jogando com
dez, ao invés das nove habituais. Imitava jogadores dos faroestes. Outros
meninos faziam a mesma coisa. Éramos trapaceiros. Claro que, vez ou outra,
chovia sopapos. Nada demais. Afinal, os meninos não deviam crescer mofinos.
Outras marcas de
cigarro iam surgindo. Apareceu uma nova carteira de cigarro, denominada
Gaivota. Era toda azul com uma gaivota branca em pleno voo. Foi-lhe atribuída,
por decisão unânime dos “banqueiros”, o valor de Cr$ 5.000,00, igualando-a à Hollywood
com filtro. Tudo bem. Como era um cigarro barato, logo tinha Gaivota à vontade,
circulando entre nós.
Eu tinha emprestado
duzentos contos de réis em notas de Gaivota (dois milhões). Lembrando que um
conto de réis equivalia a Cr$ 1.000,00, ou seja, uma nota de Cabral valia um
conto de réis. O padrão monetário cruzeiro foi instituído em 1942, mas, na boca
do povo, o padrão réis continuava.
Surgiu um problema,
que me quebraria, em parte. Na verdade, me descapitalizaria. Valdir mandou-me
um recado, dizendo que, para ele, a nota da Gaivota de Cr$ 5.000,00 passou a
valer Cr$ 10.000,00. Isso me lascava. Então, dos duzentos contos que eu
emprestei em notas de Gaivota, só receberia a metade. Um golpe infeliz. Ah,
não! Eu reagi, imediatamente. Mandei avisar que a Gaivota continuava com o
mesmo valor de face, isto é, Cr$ 5.000,00. Nada mais.
O que fiz? Tratei de
recolher todos os empréstimos em Gaivota. Mandei trocar com Valdir e Vamilson
cada nota de Minister, de Cr$ 10.000,00, que eu tinha, por duas Gaivotas de Cr$
5.000,00. Troquei tudo. Mandei os meninos, meus “trabalhadores” (não me falem
em exploração infantil!), juntarem o quanto pudessem de Gaivotas. Quando,
agora, vi-me com um montão de Gaivotas, mandei dizer a Valdir que a Gaivota
valia Cr$ 10.000,00. Estourei na “riqueza”. Ufa! Valdir quase me atrapalhou.
Porém, dei-lhe o troco bem dado. E assim, as nossas vidas de meninos seguia o
seu curso. Valdir, que era o único rival de verdade que eu tinha, ficou para
trás. Tornei-me, de longe, o “banqueiro” mais importante da cidade. Mas, nem
tudo eram flores.
Uma vez, mamãe, que
estava numa farinhada, ajudando os meus avós maternos, na casa de farinha de
Dagraça de Sil, chegou em casa e encontrou-me, na calçada, jogando baralho com
outros meninos. Ela tinha me encarregado de alguns afazeres da casa, dentre
eles, esquentar as panelas com a comida já por ela preparada, antes de sair
para a casa de farinha. Tudo estava frio, no fogão a lenha. Aí, deu ruim! Mamãe
ralhou comigo. Botou os outros meninos para correr.
Chamou-me à cozinha,
já de chinelo na mão. Imaginem um “banqueiro” apanhando! Mamãe, todavia, não
sabia bem com quem estava lidando. Cheguei para ela com duas notas de Cabral na
mão: “Mamãe, eu estava jogando e ganhei. Ganhei tanto que vendi dois contos de
carteiras de cigarro. Olhe aqui. É da senhora”. Pronto. Ela pegou o dinheiro.
Jogou o chinelo no chão. Não se brincava com um “banqueiro”. Principalmente, se
ele tinha 11 anos de idade.
*Padre, advogado, professor do
Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia
Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense
de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe.
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