sexta-feira, 4 de setembro de 2020

CARTEIRAS DE CIGARRO


 

 

José Lima Santana*

 

 

Sem ter, à época, plena consciência, eu já fui “banqueiro”. Capitalista fino. Como? Não sei se noutras cidades os meninos do meu tempo brincavam de transformar carteiras de cigarro em “dinheiro”. Em Dores, sim.

Cada carteira tinha um valor de face. A carteira de Astória valia pouco. Era a mais barata. Valia Cr$ 100,00, a menor “moeda” usual, para nós. Continental sem filtro valia Cr$ 200,00. Hollywood sem filtro valia Cr$ 500,00. Kent e Senador valiam Cr$ 1.000,00. Hollywood com filtro valia Cr$ 5.000,00. E Minister, a Top de linha, valia Cr$ 10.000,00. Quando apareceu a Continental com filtro, igualou-se à Hollywood congênere.

O “dinheiro” de carteira, como nós chamávamos, servia para brincar, apostando em jogos de bola de gude, moleque de castanha, baralho, dados (pios) etc. E, quando era o caso, trocávamos por dinheiro de verdade: um milhão em carteira de cigarro valia Cr$ 1.000,00 de verdade, uma nota de Cabral. Vendi muito. Com ele, comprávamos gibis, “atletas” (de jogo de botões) e outras coisas, entre nós. Era, pois, “dinheiro” corrente. Uma febre.

Em Dores, além de alguns de menor relevância, como Vamilson da Rua do Ouro, havia dois “banqueiros” principais: Valdir de Acrísio, na Praça da Matriz, e eu, no subúrbio João Ventura. Emprestávamos esse tipo de “dinheiro” a outros meninos, cobrando juros. O meu “capital” só aumentava.

Eu distribuía bombons a meninos ainda menores do que eu, para apanharem no chão das bodegas e das ruas as carteiras de cigarro vazias. Com isso, o meu “capital” duplicava a olhos vistos. Eu era um neguinho rico, montado num monte de “dinheiro”, que guardava em caixas de sapatos. Tio Patinhas? Nem tanto.

A vida fluía inocentemente. Muitas vezes, eu vendia o “dinheiro” de carteiras de cigarro, a fim de comprar o ingresso para assistir aos filmes de Durango Kid, Buck Jones, Tim Holt etc. Toda segunda-feira tinha filme de cowboy (cobói ou cobóio, na nossa língua). Ah, e o velho John Wayne? O maior cowboy de todos os tempos. Dele, no Cine São José, lembro-me de ter assistido “No Tempo das Diligências”, Rio Bravo – Onde Começa o Inferno”, “Rio Grande”, “Rio Vermelho” e o “Homem que matou o facínora”.

Eu era vidrado em faroeste. Era, não: ainda sou. Neste exato momento, fui à videoteca, contar quantos DVDs de bangue-bangue eu tenho: cento e trinta e quatro. Clássicos do faroeste.

Com o tempo, tornei-me viciado em jogar baralho com outros meninos, apostando o nosso “dinheiro”. Nas férias escolares, eu não queria outra vida. E tinha muita sorte. Às vezes, jogando pif-paf, que chamávamos de “cunca”, eu escondia uma carta, jogando com dez, ao invés das nove habituais. Imitava jogadores dos faroestes. Outros meninos faziam a mesma coisa. Éramos trapaceiros. Claro que, vez ou outra, chovia sopapos. Nada demais. Afinal, os meninos não deviam crescer mofinos.

Outras marcas de cigarro iam surgindo. Apareceu uma nova carteira de cigarro, denominada Gaivota. Era toda azul com uma gaivota branca em pleno voo. Foi-lhe atribuída, por decisão unânime dos “banqueiros”, o valor de Cr$ 5.000,00, igualando-a à Hollywood com filtro. Tudo bem. Como era um cigarro barato, logo tinha Gaivota à vontade, circulando entre nós.

Eu tinha emprestado duzentos contos de réis em notas de Gaivota (dois milhões). Lembrando que um conto de réis equivalia a Cr$ 1.000,00, ou seja, uma nota de Cabral valia um conto de réis. O padrão monetário cruzeiro foi instituído em 1942, mas, na boca do povo, o padrão réis continuava.

Surgiu um problema, que me quebraria, em parte. Na verdade, me descapitalizaria. Valdir mandou-me um recado, dizendo que, para ele, a nota da Gaivota de Cr$ 5.000,00 passou a valer Cr$ 10.000,00. Isso me lascava. Então, dos duzentos contos que eu emprestei em notas de Gaivota, só receberia a metade. Um golpe infeliz. Ah, não! Eu reagi, imediatamente. Mandei avisar que a Gaivota continuava com o mesmo valor de face, isto é, Cr$ 5.000,00. Nada mais.

O que fiz? Tratei de recolher todos os empréstimos em Gaivota. Mandei trocar com Valdir e Vamilson cada nota de Minister, de Cr$ 10.000,00, que eu tinha, por duas Gaivotas de Cr$ 5.000,00. Troquei tudo. Mandei os meninos, meus “trabalhadores” (não me falem em exploração infantil!), juntarem o quanto pudessem de Gaivotas. Quando, agora, vi-me com um montão de Gaivotas, mandei dizer a Valdir que a Gaivota valia Cr$ 10.000,00. Estourei na “riqueza”. Ufa! Valdir quase me atrapalhou. Porém, dei-lhe o troco bem dado. E assim, as nossas vidas de meninos seguia o seu curso. Valdir, que era o único rival de verdade que eu tinha, ficou para trás. Tornei-me, de longe, o “banqueiro” mais importante da cidade. Mas, nem tudo eram flores.

Uma vez, mamãe, que estava numa farinhada, ajudando os meus avós maternos, na casa de farinha de Dagraça de Sil, chegou em casa e encontrou-me, na calçada, jogando baralho com outros meninos. Ela tinha me encarregado de alguns afazeres da casa, dentre eles, esquentar as panelas com a comida já por ela preparada, antes de sair para a casa de farinha. Tudo estava frio, no fogão a lenha. Aí, deu ruim! Mamãe ralhou comigo. Botou os outros meninos para correr.

Chamou-me à cozinha, já de chinelo na mão. Imaginem um “banqueiro” apanhando! Mamãe, todavia, não sabia bem com quem estava lidando. Cheguei para ela com duas notas de Cabral na mão: “Mamãe, eu estava jogando e ganhei. Ganhei tanto que vendi dois contos de carteiras de cigarro. Olhe aqui. É da senhora”. Pronto. Ela pegou o dinheiro. Jogou o chinelo no chão. Não se brincava com um “banqueiro”. Principalmente, se ele tinha 11 anos de idade.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


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