José Lima Santana*
Eleição
municipal, em tese, é a que mais mexe localmente com as pessoas. Claro, é no
município que as pessoas vivem. Além disso, os candidatos estão perto dos
eleitores. Numa eleição ocorrem poucas e boas, especialmente no curso das
campanhas eleitorais.
Eleição
de 1962. O rebuliço era grande. Um candidato a prefeito ameaçava pôr fim ao
mandonismo político de Totoinho da Várzea Grande, que atravessou intacto as
décadas de 1930, 1940 e 1950. Elegeu-se e elegeu quem bem quis e entendeu, sem
levar um único tombo. Só não ganhou quando não teve eleição, no período
varguista.
Dizia-se,
na cidade, que se ele candidatasse o cachorro do vaqueiro Zé Botinha, elegeria
na moleza. Rico, gastador, comprava cabos eleitorais a três por dois. O que
importava para ele era o poder em suas mãos. Os prefeitos que elegeu, na sua
alternância, eram comparsas devotados, seus lambe-botas.
Não
importava se o governo estadual ao qual ele se alinhava estava de cima ou de
baixo. Ele elegia quem queria para a Prefeitura Municipal. Oposição? Uns gatos
pingados, que articulavam umas lorotas, aqui ou ali, mas nunca mostravam votos
suficientes para derrotá-lo.
Ah, mas
naquele ano, 1962, o caldo poderia engrossar contra Totoinho! Afonso de Zeca
Aleijado estava sacudindo a cidade e, muito mais, os subúrbios e os povoados,
ou seja, a raia miúda, onde estava a maior parte dos eleitores, pois a zona
rural e a suburbana eram muito mais povoadas do que a zona urbana, a despeito
do número assombroso de analfabetos, que não votavam.
Totoinho
gastava com os cabos eleitorais e estes embolsavam o dinheiro, nada sobrando
para os pobres. Afonso não era rico, mas estava com costas largas, junto a um
deputado federal, que queria ser senador e estava abrindo a mão, direitinho. E
o candidato a prefeito molhava a mão dos pobres. Um corte de pano, um chapéu,
um sapato, uma sandália, uns frascos de remédio, uma dentadura, e assim por
diante.
Os pobres
faziam fila na frente de sua casa. E Dona Olga, sua esposa, não se fazia de
rogada: atendia a todos com extrema solicitude, diferente das grã-finagens de
Dona Aurélia, mulher de Totoinho, matrona que parecia ter saído de uma revista
da nobreza inglesa.
Ela mal
falava com as outras ricaças. A família era podre de rica, muito mais do que a
do marido. Era de gente das Alagoas, metida em usinas e na política. O avô
materno tinha sido barão, daqueles que compravam o título de nobreza abrindo
uns quilômetros de estrada à custa de sua fazenda. Um tio e um primo foram
governadores. Talvez por isso, ela fosse tão metida.
A
campanha política daquele ano parecia mesmo que entornaria o caldo. O cordão de
Afonso de Zeca Aleijado aumentava, dia a dia. O candidato de Totoinho, que o
substituiria na Prefeitura, era Maneca Boca Preta, dono de plantações de
algodão e de fábrica de descaroçar. A maior do estado. Outro rico. Mão de vaca.
Porém, Totoinho era, para os seus, imbatível, mesmo com toda afoiteza de
Afonso, que, no frigir dos ovos, não haveria de passar de um pé de vento,
dizia-se.
Do lado
de Afonso, crescia a certeza da vitória. O deputado Odilon Fagundes, candidato
ao Senado, não deixava faltar a bufunfa necessária, que escorria diretamente
das mãos de Afonso para as mãos do povo. Um dentista prático acudia na ação de
banguelar os pobres e de dar-lhes novas dentaduras ou pererecas. Um médico
receitava remédios para as doenças triviais. Um primo do deputado,
médico-cirurgião, cortava a barriga de um montão de gente, em cirurgias de
hérnia ou de apendicite. Mas, também, incômodos de mulher, que ficavam a cargo
de sua esposa, obstetra.
A loja de
Carmosa de João do Prego vendia tecidos, sapatos, sandálias e chapéus, por
conta de Afonso. Tudo do mais em conta, que era para poder servir a todos que o
procuravam. Faltando duas semanas para a eleição, o próprio Boca Preta andava
preocupado. “Compadre Totoinho, a coisa tá ficando feia pra nóis”! Mas, o velho
prefeito, tentava acalmar o seu candidato: “Ainda num tô vendo água que dê uma
enchente”! Confiava na ação costumeira dos cabos eleitorais.
Um desses
tais, segredou um plano para desmoralizar Afonso. Totoinho riu. E dobrou a
risada. Gargalhou uma tarde inteira. Ele achou o plano muito bom. Causaria uma
danação. O cabo eleitoral tinha sabido que Dona Raimundinha, viúva em bom
estado, recatadíssima, desde que Floriano dos Caititus foi parar na cidade de
pés juntos e lhe deixou sem filhos, há cinco ou seis anos, tinha encomendado ao
prático uma dentadura, na conta de Afonso. E este fazia questão de entregar os
donativos de porta em porta, como se fosse um turco mascate.
Totoinho
botou gente vigiando os passos de Afonso. Boquinha da noite, Afonso saiu de
casa, sozinho, e foi à casa de Raimundinha, a viúva bem-apanhada, pernas
roliças, cabelos começando a pratear, ali perto, dobrando a esquina. De
repente, alguns malandros fizeram saber aos quatro cantos da cidade que Afonso
tinha ido “lavar a perereca de Raimundinha”, que, quando era jovem, teve uma
queda por ele. Disso todo mundo sabia, até Dona Olga, que guardava um ranço.
Coisa de mulheres que pensam que os maridos são eternamente dados à galinhagem.
Num
instante, uma boa alma foi botar no bico de Dona Olga: “Num gosto de resenha,
mas, que Deus me perdoe, a cidade tá cheia que Afonso, o seu Afonso, tá nesta
horinha lavando a perereca de Raimundinha, aquela sonsa”. Ai, ai, ai! Foi um
Deus nos acuda! Dona Olga, tão dedicada à campanha política do marido, não
esperou para fazer um avaluemos. Perdeu as estribeiras, pois tinha o sangue
quente da gente das Queimadas. Botou as roupas do marido na calçada,
amontoadas. Cerrou portas e janelas. O bafafá estava criado. Afonso era um
desassossegador de viúvas. E Raimundinha, uma destruidora de lares.
Era tudo
o que Totoinho esperava. O plano sujo parecia dar certo. A noite ferveu. “Dona
Olga pegou Afonso lavando a perereca de Raimundinha”, alardeava-se. A notícia
se espalhou como vento bem soprado. As mulheres de bem queriam dar uma sova na
viúva sonsa.
Em cena,
porém, entrou o padre Limoeiro, conhecedor das virtudes de Raimundinha e das
boas intenções de Afonso. Bateu, manhãzinha cedo, na porta de Dona Olga. “Minha
filha, não se deixe enganar por essa gente cínica. Você não está vendo que
querem fazer mal ao seu marido? Criaram um embeleco. Afonso, ontem à noite, foi
levar a perereca de Raimundinha, isto é, a dentadura postiça. Levar não é
lavar. Acorde, Olga”!
Então, o
padre, zeloso com o seu rebanho, desfez o aleive contra Afonso, que se elegeu
prefeito de Roseiral. 1962. Que ano! No calendário chinês, seria o ano da
perereca.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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