José Lima Santana*
A cidade amanheceu em rebuliço.
Primeiro dia do ano. Não, o rebuliço não era o rescaldo pelos festejos da
virada do ano, que, aliás, não ocorreram em face da pandemia. Era o dia da
posse do novo prefeito, ou melhor, prefeita, do vice-prefeito e dos vereadores.
Depois de trinta e dois anos no poder, o grupo de Aristides Fonseca Matos da
Colina dos Afonsos tombou diante de uma menina, a Dra. Mônica Lima de Tonho de
Malaquias.
Jovem, bem apessoada, formada em
medicina, começando a vida com sucesso profissional. Filha do lugar, escolheu a
sua cidade como local preferencial para o exercício da profissão.
Por trinta e dois anos, todos os
candidatos que disputaram o comando da Prefeitura contra Aristides ou os seus
candidatos, foram derrotados. Aristides conseguiu estruturar um poderio jamais
visto na cidade. Ele, apaniguados seus ou parentes foram se revezando à frente
dos destinos do município.
Mesmo com a redemocratização de 1988,
mesmo com uma nova Constituição, e, portanto, com ares novos soprando sobre o
país, ainda permaneciam certos grotões em que velhos coronéis davam as cartas,
ou populistas de primeira, de segunda e até de terceira categoria foram
assumindo posições municipais e estaduais. Federais? Também.
A vida política arrastava-se, como no
passado, em vários dos mais de cinco mil municípios brasileiros. Os novos
ventos não sopravam em todos os lugares, nem em todas as cabeças. Em cabeças
ocas, ventos nenhuns ou velhos ventos.
Mônica Lima, aos vinte e oito anos,
aceitou a candidatura a prefeita. Mobilizou a juventude, saiu às ruas e
povoados, bateu pernas de casa em casa, ouviu o povo, não fez promessas, mas
falou com firmeza, adquirindo a confiança dos eleitores. Aristides, do alto dos
seus oitenta anos, ele mesmo o candidato à reeleição, esperneou, gastou uma
dinheirama na penumbra, comprando votos.
Muita gente pegou o dinheiro do
prefeito e votou em Mônica. Resultado: 2.247 votos de frente, a maior diferença
registrada numa eleição para prefeito em Chapadão do Gentio. De onze
vereadores, o lado da prefeita eleita conseguiu fazer nove. Uma vitória e
tanto!
A pandemia impediu que a posse fosse
festiva, como a ocasião merecia. Apenas os eleitos e uns poucos familiares
compareceram à Câmara Municipal, na Rua de Cima. Na missa, às dez horas, o
mesmo efetivo. A prefeita eleita fez circular dois carros de som, conclamando o
povo a não comparecer às solenidades.
O povo obedeceu. Afinal, no município
já se contavam vinte e cinco mortes pela Covid-19, um número alto para o lugar.
A Prefeitura Municipal pouco ou nada fez para combater a propagação do vírus. O
negacionismo tomara conta da administração anterior. “Só morre quem tem que
morrer”, dizia o ex-prefeito. Afinal, para ele, tratava-se apenas de uma
gripezinha.
Na campanha eleitoral, Aristides
apelidou a jovem médica de “Curandeira”. Até um jingle sem-vergonha foi
produzido, cujo refrão dizia assim: “Se você estiver de caganeira / Chame a
curandeira / Chame a curandeira”. Como não falava no nome da candidata
oposicionista, a Justiça Eleitoral nada pôde fazer, embora devidamente
acionada.
A nova prefeita convidou uma jovem
médica, sua colega de turma, para secretariar a Saúde municipal.
Infectologista, ciosa das necessidades da população, já traçara, antes da
posse, estratégias para impedir o aumento da propagação do vírus, através de
medidas educativas em massa, dos aparatos necessários para dotar a Clínica de
Saúde local, que a deixaria em boas condições para atendimentos iniciais, e do
acompanhamento da população, realizado de casa a casa, inclusive com a aplicação
de testes.
As esperanças do povo eram cada vez
maiores na prefeita eleita, embora deu trabalho para Aristides largar o osso. O
velho político chegou a alegar fraude na eleição. As urnas eletrônicas passaram
a não ser da sua confiança. Alardeou que seria preciso imprimir uma comprovação
dos votos.
Tomara um banho de votos e falava em
fraudes, como se ainda vivesse no tempo em que ele e tantos outros fraudaram
eleições, trocando “chapas”, alterando mapas de apuração, contando votos em
branco como válidos etc. Na noite do dia 27 de dezembro, uma equipe de
destruição foi detida quando estava prestes a incinerar uma pilha de
documentos, nos fundos da Prefeitura.
A polícia foi acionada. Inquérito
instaurado. Quinze pessoas ouvidas. Tudo levava ao ex-prefeito, o mandante.
Dali até a posse, o rebuliço esteve por toda a cidade. Aristides seria
indiciado.
As preocupações maiores da nova
prefeita estavam, deveras, na saúde. Além do bate-boca infeliz entre os
defensores das medidas científicas para impedir a propagação do novo
corona-vírus e os defensores do negacionismo, estes formando um bando de tolos
que contavam até com o respaldo insensato de alguns profissionais da saúde,
havia, ainda, o péssimo exemplo de certas autoridades, desde as mais altas,
que, de maneira estúpida, através de suas posturas não convencionais para a
situação vivenciada, desdenhavam das quase duas centenas de mortes causadas
pelo vírus devastador, espalhadas pelo país até o fim do ano.
A partir do dia 2, a secretária da
Saúde começou o planejado trabalho de conscientização da população, para a
tomada de medidas preventivas. Tão logo pudesse fazer compras dentro dos
processos legais, distribuiria álcool em gel e máscaras de casa em casa, junto
à população mais carente, a depender dos levantamentos que já estavam sendo
feitos pelos agentes municipais de saúde.
Os dois vereadores da oposição,
embora a Câmara Municipal estivesse em recesso parlamentar, berravam em bares e
bodegas que a nova prefeita estava criando moda, fazendo besteira. Uns idiotas.
Na manhã do dia 5 de janeiro, eis que
a Clínica de Saúde recebeu um paciente em estado mais ou menos grave. Naquele
instante, ali se encontrava a prefeita, que, imediatamente, o socorrera,
dando-lhe, de forma precisa, os primeiros atendimentos. O paciente foi
encaminhado à capital, para o devido tratamento. Covid-19.
Mais um caso, dentre tantos que já
tinham levado à morte vinte e cinco munícipes. Aquele paciente seria, seis dias
depois, a vigésima sexta vítima local. Era Aristides, o ex-prefeito, o que
tanto desdenhara da doença, chamando-a de uma gripezinha. Lamentável. Qualquer
morte é para se lamentar.
Como bem disse o poeta inglês John
Donne (1572-1631), em Meditações VII: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si
mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de
terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se
fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a
morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por
isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana
de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação
e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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