sábado, 13 de fevereiro de 2021

DELÍRIOS


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O padre Zéfiro Moreira foi acordado às duas da manhã. Madrugada fria. O vento açoitava lá fora e entrava por umas frestas do telhado, na casa sem forro. Casarão do fim do século XIX, doado à Paróquia recém instalada, em 1912. Doação do neto do Barão do Alecrim. O velho padre tateou na escuridão em busca do interruptor para acender a lâmpada de 60 velas. Ergueu a mão, arranhou a parede, mais um pouco e eis o acendedor da luz.

Àquela hora, aos berros, só podia ser Maria de João do Pati, afamada papa-hóstia, coordenadora do Apostolado. Seria mais uma crise do neto, Flodualdo. A velha beata insistia que o neto de dezoito anos estava possuído por um demônio. Implorava por um exorcismo. Porém, um exorcismo teria que ser autorizado pelo senhor bispo e na presença de evidências que o justificassem. Não era coisa de brincadeira. Depois, nada evidenciava uma possessão diabólica. E ainda que fosse, o velho padre não teria tutano para tanto. Não era exorcista. Briga com o demo não era para qualquer um.

O jumento de Belisário, no terreno aos fundos da casa paroquial, fez alvoroço. Relinchou duas vezes. Duas horas, no contado. Relógio sem corda, mas que nunca falhava. O padre vestiu a calça e a batina preta. Bocejou. O amargor fê-lo afastar com a mão a papa dos anjos nos cantos da boca.

Maria vivia sofrendo com aquele neto desde que ele perdeu a cabeça por uma zinha do último circo que esteve na cidade, uma rumbeira balzaquiana, que lhe tirou o sossego e algo mais. O rapaz virou a cabeça para a tal, e esta acabou indo embora com o circo. Bebedeira, malcriações, delírios.

Ele era um brinco de moço até a chegada do circo, até tê-la visto rebolando no palco. Até ela o ter sufocado na serpente de seus braços. Balzaquiana, mas bela e fogosa. Numa noite de exibição, ela passou o lenço no pescoço do moço, como costumavam fazer as rumbeiras, à cata de uns trocados.

Flodualdo, no frescor e no viço dos dezessete anos, soltou uma nota de dez cruzeiros, daquela que tinha a estampa de Vargas. Ela o fitou, passou a mão no queixo dele, que fechou os olhos. Quando os abriu, ela o beijou. Na boca. Língua viperina. Ele ficou arreado dos quatro pneus. Tiveram um chamego. Aceso.

A beata estava aflita, transida de frio, o velho xale branco do seu próprio feitio sobre os ombros, além de um casaco de lã. “O seu vigário me perdoe, mas o menino está possuído de novo. Tá vendo coisas novamente. Vampiros”. Embora não chovesse, o padre tomou do guarda-chuva e do chapéu. Pôs uma capa Renner. E lá foram os dois a acudir o rapaz atacado por vampiros.

Flodualdo era, desde criança, amante de filmes, assistidos no Cine São José, de Valmor de Zuliná. Desde a adolescência, gostava dos bangue-bangues e dos espadachins. Censura? Naquele tempo, não se exigia. Não ali, na Tapera dos Martins. Mas, o filme “Drácula” com Christofer Lee o impressionara.

Depois que a rumbeira se foi, ficaram os vampiros para lhe atormentar. Sonhava com eles. Via-os a todo instante com seus dentes afiados, prontos para ser cravados no pescoço de alguém. No dele, primeiramente. Recolhia-se ao quarto. Lá estavam os vampiros. Gritava. Sacudia-se na cama como se estivesse sendo atacado. Atracava-se com os travesseiros, lutando. Passava a mão no pescoço, o sangue escorrendo pelos dois furos. A avó o acudia. Nada. Ele estava intacto.

O padre Zéfiro foi encontrar Flodualdo com os olhos esbugalhados, movendo a cabeça para a direita e para a esquerda sem parar. Dona Maria sentou-se ao lado do neto. “Meu filho, olhe o padre”. O neto atracou-se com ela. Gritou. “Vó, é o vampiro, é o vampiro!”. Os gritos de pavor aumentaram.

O padre aspergiu água benta sobre ele. Fez em sua direção o sinal da cruz. Orou: o Pai-Nosso e o Credo. Por um momento, a luz tremulou, bruxuleou e, enfim, estabilizou. A custo, o rapaz relaxou. Já passavam das cinco horas. A aurora lutava para se derramar sobre o mundo. Um sol sem forças tentava se levantar. Era setembro. Comecinho. Fim de inverno.

Acalmado o neto, Maria de João do Pati pôs-se a preparar o café para o padre. Ah, o velho sacerdote gostava de um bom cuscuz com natas de leite, queijo de coalho derretido, ovos fritos e uma tigela de café preto, sem açúcar! Antes, uma fruta, mamão de preferência. Se tivesse um pedaço de carne de sol, assada na brasa, ele louvava a Deus duas vezes.

A história da rumbeira deixara a avó de Flodualdo em pânico. Um menino seduzido por uma marafona, uma rapariga de circo, uma rampeira, isso, sim, ela era. Ele perdeu o juízo. Nas cinco semanas que o circo se ajeitou na cidade, o rapaz não arredou os pés de lá, armado que estava na Praça de “seu” Juca.

A casa alugada pelo dono do circo virou um antro de safadeza. A marafona arrastou Flodualdo para o lodaçal da perdição. Ficou encegueirado. Primeira mulher da vida dele, no sentido carnal, a avó o supunha. Com ela, tirou os atrasados da adolescência, que só os exercia nos banhos demorados.

Passaram-se dois meses. Flodualdo teve melhoras e pioras. Um médico de passagem pela cidade aconselhou que ele fosse levado a um especialista de cabeça, na capital. Médico de doidos. Maria de João do Pati alvoroçou-se. Procurou o padre. Este referendou o aconselhamento do doutor.

Enfim, duas semanas depois, a avó e o neto aboletaram-se para a capital. Uma prima marcou a consulta. Não teve jeito. Internação mais que depressa, na clínica de doentes mentais. Clínica particular. Coisa nova na capital. Custaria um dinheirão, mas isso não seria problema. A avó era farta nas patacas.

A clínica ficava no subúrbio, numa pequena elevação. Arborizada e bem asseada. Devidamente medicado, Flodualdo foi levado ao apartamento. Uma enfermeira trintona lhe foi apresentada. Ele fez pouco caso. Um muxoxo. Fechou os olhos. Dormiu. Era o fim da tarde.

A noite já tinha descido. Um chuvisco borrifou a clínica e adjacências. O jasmineiro ao lado perfumava a noite. O jantar foi servido. Flodualdo pouco comeu. Deitou-se. Talvez tenha adormecido. Por volta da meia-noite, a enfermeira adentrou ao apartamento. A claridade da luz no corredor deixava o apartamento na penumbra.

Flodualdo viu a enfermeira aproximar-se. Silenciosa. Chegou perto dele, causando-lhe susto. Ela abriu a boca. Dois dentes vampirescos, duas presas enormes saltaram à vista. Ele quis gritar. O grito foi abafado. Então, ele sentiu as presas no pescoço, penetrando cada vez mais. O sangue escorreu. Inundou o corpo, a cama, o quarto. Delírios...?

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...