José Lima Santana*
O padre Zéfiro Moreira foi acordado
às duas da manhã. Madrugada fria. O vento açoitava lá fora e entrava por umas
frestas do telhado, na casa sem forro. Casarão do fim do século XIX, doado à
Paróquia recém instalada, em 1912. Doação do neto do Barão do Alecrim. O velho
padre tateou na escuridão em busca do interruptor para acender a lâmpada de 60
velas. Ergueu a mão, arranhou a parede, mais um pouco e eis o acendedor da luz.
Àquela hora, aos berros, só podia ser
Maria de João do Pati, afamada papa-hóstia, coordenadora do Apostolado. Seria
mais uma crise do neto, Flodualdo. A velha beata insistia que o neto de dezoito
anos estava possuído por um demônio. Implorava por um exorcismo. Porém, um
exorcismo teria que ser autorizado pelo senhor bispo e na presença de
evidências que o justificassem. Não era coisa de brincadeira. Depois, nada
evidenciava uma possessão diabólica. E ainda que fosse, o velho padre não teria
tutano para tanto. Não era exorcista. Briga com o demo não era para qualquer
um.
O jumento de Belisário, no terreno
aos fundos da casa paroquial, fez alvoroço. Relinchou duas vezes. Duas horas,
no contado. Relógio sem corda, mas que nunca falhava. O padre vestiu a calça e
a batina preta. Bocejou. O amargor fê-lo afastar com a mão a papa dos anjos nos
cantos da boca.
Maria vivia sofrendo com aquele neto
desde que ele perdeu a cabeça por uma zinha do último circo que esteve na
cidade, uma rumbeira balzaquiana, que lhe tirou o sossego e algo mais. O rapaz
virou a cabeça para a tal, e esta acabou indo embora com o circo. Bebedeira,
malcriações, delírios.
Ele era um brinco de moço até a
chegada do circo, até tê-la visto rebolando no palco. Até ela o ter sufocado na
serpente de seus braços. Balzaquiana, mas bela e fogosa. Numa noite de
exibição, ela passou o lenço no pescoço do moço, como costumavam fazer as
rumbeiras, à cata de uns trocados.
Flodualdo, no frescor e no viço dos
dezessete anos, soltou uma nota de dez cruzeiros, daquela que tinha a estampa
de Vargas. Ela o fitou, passou a mão no queixo dele, que fechou os olhos.
Quando os abriu, ela o beijou. Na boca. Língua viperina. Ele ficou arreado dos
quatro pneus. Tiveram um chamego. Aceso.
A beata estava aflita, transida de
frio, o velho xale branco do seu próprio feitio sobre os ombros, além de um
casaco de lã. “O seu vigário me perdoe, mas o menino está possuído de novo. Tá
vendo coisas novamente. Vampiros”. Embora não chovesse, o padre tomou do
guarda-chuva e do chapéu. Pôs uma capa Renner. E lá foram os dois a acudir o
rapaz atacado por vampiros.
Flodualdo era, desde criança, amante
de filmes, assistidos no Cine São José, de Valmor de Zuliná. Desde a
adolescência, gostava dos bangue-bangues e dos espadachins. Censura? Naquele
tempo, não se exigia. Não ali, na Tapera dos Martins. Mas, o filme “Drácula” com
Christofer Lee o impressionara.
Depois que a rumbeira se foi, ficaram
os vampiros para lhe atormentar. Sonhava com eles. Via-os a todo instante com
seus dentes afiados, prontos para ser cravados no pescoço de alguém. No dele,
primeiramente. Recolhia-se ao quarto. Lá estavam os vampiros. Gritava.
Sacudia-se na cama como se estivesse sendo atacado. Atracava-se com os
travesseiros, lutando. Passava a mão no pescoço, o sangue escorrendo pelos dois
furos. A avó o acudia. Nada. Ele estava intacto.
O padre Zéfiro foi encontrar
Flodualdo com os olhos esbugalhados, movendo a cabeça para a direita e para a
esquerda sem parar. Dona Maria sentou-se ao lado do neto. “Meu filho, olhe o
padre”. O neto atracou-se com ela. Gritou. “Vó, é o vampiro, é o vampiro!”. Os
gritos de pavor aumentaram.
O padre aspergiu água benta sobre
ele. Fez em sua direção o sinal da cruz. Orou: o Pai-Nosso e o Credo. Por um
momento, a luz tremulou, bruxuleou e, enfim, estabilizou. A custo, o rapaz
relaxou. Já passavam das cinco horas. A aurora lutava para se derramar sobre o
mundo. Um sol sem forças tentava se levantar. Era setembro. Comecinho. Fim de
inverno.
Acalmado o neto, Maria de João do
Pati pôs-se a preparar o café para o padre. Ah, o velho sacerdote gostava de um
bom cuscuz com natas de leite, queijo de coalho derretido, ovos fritos e uma
tigela de café preto, sem açúcar! Antes, uma fruta, mamão de preferência. Se
tivesse um pedaço de carne de sol, assada na brasa, ele louvava a Deus duas
vezes.
A história da rumbeira deixara a avó
de Flodualdo em pânico. Um menino seduzido por uma marafona, uma rapariga de
circo, uma rampeira, isso, sim, ela era. Ele perdeu o juízo. Nas cinco semanas
que o circo se ajeitou na cidade, o rapaz não arredou os pés de lá, armado que
estava na Praça de “seu” Juca.
A casa alugada pelo dono do circo
virou um antro de safadeza. A marafona arrastou Flodualdo para o lodaçal da
perdição. Ficou encegueirado. Primeira mulher da vida dele, no sentido carnal,
a avó o supunha. Com ela, tirou os atrasados da adolescência, que só os exercia
nos banhos demorados.
Passaram-se dois meses. Flodualdo
teve melhoras e pioras. Um médico de passagem pela cidade aconselhou que ele
fosse levado a um especialista de cabeça, na capital. Médico de doidos. Maria
de João do Pati alvoroçou-se. Procurou o padre. Este referendou o
aconselhamento do doutor.
Enfim, duas semanas depois, a avó e o
neto aboletaram-se para a capital. Uma prima marcou a consulta. Não teve jeito.
Internação mais que depressa, na clínica de doentes mentais. Clínica particular.
Coisa nova na capital. Custaria um dinheirão, mas isso não seria problema. A
avó era farta nas patacas.
A clínica ficava no subúrbio, numa
pequena elevação. Arborizada e bem asseada. Devidamente medicado, Flodualdo foi
levado ao apartamento. Uma enfermeira trintona lhe foi apresentada. Ele fez
pouco caso. Um muxoxo. Fechou os olhos. Dormiu. Era o fim da tarde.
A noite já tinha descido. Um chuvisco
borrifou a clínica e adjacências. O jasmineiro ao lado perfumava a noite. O
jantar foi servido. Flodualdo pouco comeu. Deitou-se. Talvez tenha adormecido.
Por volta da meia-noite, a enfermeira adentrou ao apartamento. A claridade da
luz no corredor deixava o apartamento na penumbra.
Flodualdo viu a enfermeira
aproximar-se. Silenciosa. Chegou perto dele, causando-lhe susto. Ela abriu a
boca. Dois dentes vampirescos, duas presas enormes saltaram à vista. Ele quis
gritar. O grito foi abafado. Então, ele sentiu as presas no pescoço, penetrando
cada vez mais. O sangue escorreu. Inundou o corpo, a cama, o quarto.
Delírios...?
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana
de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação
e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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