sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A BOTIJA


  

José Lima Santana*

 

 

Diacho de precisão. Ainda faltavam dois contos e duzentos. Um negócio daquele não se deveria perder. Sítio formoso, pertinho da cidade, terra dadivosa, minadouro de boa água, que escorria fazendo um naco de terra verdejar de verão a verão. Partido mimoso de mandioca escondida, o melhor tipo, e uns bons paus de macaxeira rosa, a de maior predileção das donas de casa e doceiras, que se esmeravam nos manauês besuntados com manteiga ou leite de coco ralado, do grosso. Uma gostosura.

Além do quê, um partido de cana caiana, para um bom caldo de cana com limão ou para chupar, quem bons dentes tivesse, e fruteiras à larga: manga rosa, manga espada, manga bobona, manga maria, caju vermelho e amarelo, jaca mole e dura, jabuticaba, jenipapo, pitanga, araticum, carambola, laranja de umbigo, mexerica, mamão de cheiro e até um frondoso umbuzeiro. Lá no fundo tinha também dois pés de murici. Ah, uma farinha de murici era de dar gastura de tanto desejo!

Robertão de Maria de Dó contou e recontou o dinheiro que tinha disponível. Dez contos e oitocentos. Pedrinho de Tonho de Fulô não arredava pé: só passava o sítio por treze contos de réis. Era um dinheirão, que daria para comprar algumas boas tarefas de terra com pastos de capim sempre-verde. Cerca de cinquenta tarefas.

Mas, aquelas seis tarefas do sítio tão almejado, valiam muito bem o preço pretendido pelo dono. Onde arranjar o restante do dinheiro? Ele era alfaiate. Teve uma numerosa freguesia, mas os novos tempos começaram a afugentar os fregueses, que compravam roupa feita nas lojas, que, a bem da verdade, eram mal costuradas, coisa de carregação, inundando as cidades. Embora ficassem mais em conta, não dava para comparar o talhe bem medido e cortado, na tesoura, e melhor costurado na máquina de pé de Robertão.

O que se chamava de novos tempos estava tirando o bocado da boca e da barriga dos artesãos-oficiais. Dois contos e duzentos. Tomar emprestado, nem pensar. Quem lhe fiasse essa quantia ou até mais, Robertão tinha, fazendeiros de grana grossa, seus amigos. Nunca, todavia, foi do seu feitio sair por aí, pedindo empréstimos. O seu chapéu só ia até a altura da cabeça. Não acima dela. Dois contos e duzentos...

Perder aquela ocasião era um sacrilégio. Desfrutar seus últimos dias de travessia nesta vida, num sítio daquele, era o sonho acalentado e requentado. Refestelar-se numa rede, no fim da tarde, balançando-se para lá e para cá, lambendo os beiços com o mel das frutas, no tempo propício, beber da água minada, criar galinhas de terrança, soltas, quem sabia também um bacorinho para a ceia de Natal, tudo ali pertinho da cidade, tudo era um mimo, um conforto de rico, para quem dedicou a vida inteira ao trabalho duro, desde os tempos de aprendiz de alfaiate com o mestre Zuza Tesoura de Ouro, que mais do que mestre foi um verdadeiro pai. Ele bem merecia. Para tanto, faltavam dois contos e duzentos.

Noite alta. O sono demorou a vir aos olhos cansados de Robertão. Para não incomodar Dona Lourdinha, sua esposa há mais de quarenta anos, ele procurou ficar quieto, aguardando que Morfeu lhe visitasse. Já tinha provado as laranjas de umbigo do sítio que almejava comprar, pois Pedrinho era seu freguês e mais de uma vez lhe presenteara com deliciosos cítricos.

Dois contos e duzentos. Enfim, adormeceu, um galo cantando ali perto e outros respondendo adiante. Robertão teve um sonho com a finada Lourença de Chico do Marmeleiro. A mulher de maior sovinice da cidade, quem sabia, do mundo inteiro. Dizia-se que, em vida, a dita cuja não comia merda, porque fedia. Um horror!

Ela e o marido eram, até a morte, dela, que se foi por derradeiro, donos do melhor e mais sortido armazém de secos e molhados das redondezas. Freguesia farta de todo lugar. Enriqueceram no comércio. Nunca tiveram filhos. A fortuna ficou para os irmãos e sobrinhos de ambos.

No sonho, a velha Lourença mostrava o canto de um quarto da antiga casa do casal, agora fechada. Ali encontrava-se uma botija. Um bauzinho de trinta por trinta, cheio de joias. A defunta, que, no sonho, apareceu vestida como tinha partido desta para a outra vida, com uma mortalha azul-claro e um véu azul-escuro, estava mais feiosa do que em vida. Num minuto, os olhos faiscavam, noutro, ficavam mortiços como uma névoa. Pareciam um rabo de vagalume, acendendo e apagando.

A defunta deu as seguintes instruções: “Você deve ir sozinho à minha casa, na proximidade da meia-noite. À meia-noite, em ponto, deverá cavar sem olhar para os lados, nem dar ouvidos ao que tiver de ouvir. Demônios terríveis tentam desviar a atenção dos cavadores de botijas. E lá está mais do que você precisa”. Disse mais alguma coisa, que Robertão não conseguiu ou não quis ouvir. Boa coisa podia não ser.

Foi só um sonho, ou a defunta rica tinha mesmo uma botija para lhe dar? Robertão acordou encafifado. Não custava arriscar. Meia-noite em ponto, ele deveria começar a cavar a botija. Dez para a meia-noite, a hora do cão soltar-se, dirigiu-se à casa botijeira. A porta dos fundos estava só encostada. Estranho. Para ele, era uma providência da defunta.

Candeeiro numa mão, enxadeco na outra, procurou o local indicado. Um cheiro de mofo e coisas ruins dominava o ambiente. Ajoelhou-se e começou a cavar. De chofre, um sacolejo fez o chão tremer. Vozes esquisitas. Gritos tenebrosos. Fedor de enxofre. Outros sacolejos, ainda mais fortes. O inferno parecia abrir as portas. Mas, ele não deu fiança a nada daquilo.

No pescoço, um crucifixo e uma medalha do Arcanjo Miguel, tudo benzido pelo Cônego Monteiro. Cavou um pouco mais. O enxadeco bateu em algo. Era o bauzinho. Tirou a terra de cima, ergueu o recipiente. Vozes, gritos e fedor sumiram. Levantou-se para sair. Candeeiro numa mão, bauzinho na outra. Enxadeco? Deixou para lá.

Um susto. Susto das seiscentas! Um gato preto pôs-se diante dele, miando de forma horrenda. Olhos de fogo. Ele gritou: “T’esconjuro, maldito”! E correu. Em casa, sozinho, abriu o baú de trinta por trinta. Deu-lhe uma tremedeira. Ouro e brilhantes. Joias de grande valia. Bendita fosse a velha sovina em vida, mas, dadivosa após a morte!

Robertão largou tesoura e trena. Encostou a máquina de costura. O sítio adquirido era um sonho antigo. Mudou-se para lá, de mala e cuia, com a mulher, a filha e dois netos órfãos de pai. Dois anos e duzentos dias depois, no contado, eis que numa tarde de verão, Robertão estava na rede, no alpendre da casa, tentando tomar uma fresca. Galinhas ciscavam por perto. De repente, seus olhos faiscaram e nevoaram. Faiscaram e nevoaram. Morreu.

Disse, depois, Maricotinha, serviçal da casa, que um vulto de mortalha azul-claro e véu azul-escuro esteve ao lado do alfaiate já morto. Só ela viu.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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