sábado, 20 de fevereiro de 2021

O JUIZ E O BICHO-DE-PORCO


  

 

José Lima Santana*

 

 

No alpendre da pensão de Dona Carminha do finado Tonho de Maria de Zé Afonso, dormitava o senhor juiz de direito, numa cadeira de balanço, aproveitando um ventinho que de vez em quando soprava, meio morno, pois o verão estava no auge. Fevereiro, nos seus meados.

O sol vinha castigando o sertão desde outubro. As últimas chuvas tinham caído no início de setembro, uns tamboeiros, um quase nada, barrufo que mal deu para pagar a poeira. O inverno não tinha sido bom. Chuvas esparsas de maio a julho. O juiz, Dr. Armando Fonseca Pires, pouco trabalhara no ano findo.

A comarca estava sem promotor de justiça há quase dois anos. Um promotor substituto aparecia, quando aparecia, uma vez a cada quinze dias. Audiências criminais na pauta, com réus presos, que eram poucos, outras audiências de família, questões de alimentos, e só. O juiz roncava mais do que motor de caminhão velho a subir uma ladeira bastante íngreme. A pança subia e descia como um fole resfolegando.

Chica Preta, cozinheira da pensão, achegou-se com um pirex de doce de goiaba batido. Chamou o juiz. Uma mosca lambia seus beiços. O magistrado espantou o inseto intruso com a mão esquerda. Ajeitou-se na cadeira. Olhou para a cozinheira. “Seu docinho, doutor. Acabou de esfriar”. Ele sorriu: “Obrigado, Chica!”.

Depois de bater o pirex cheio de doce, deu mão da moringa ao seu lado. Bebeu dois copos. Água de moringa era uma delícia. E a água de beber da cidade, da fonte de Aristides da Furna da Onça, era quase mineral. Água leve, que descia limpando a goela, coisa de dar gosto.

O juiz tirou o sapato do pé direito. Uma coceirinha no dedão do pé, que vinha lhe incomodando há dias. O local estava até inflamado e avermelhado. Ao chegar em casa, teria que ver aquilo. Tentou levantar-se, enquanto Chica Preta sumia no interior do quintal, no qual o juiz tanto gostava de caminhar, de manhã cedo.

Chica foi alimentar os seis bacorinhos, que já, já, seriam vendidos por Dona Carminha. A pança do juiz o impediu no primeiro tanjo. Então, ele apoiou os dois braços nos braços da cadeira e, a custo, levantou-se com um gemido. Olhou o relógio. Faltavam quinze para as quatro.

Dali a pouco, a marinete de Pedro Moreira passaria, no rumo da capital, para enfrentar oitenta e cinco quilômetros de terra batida até alcançar o asfalto da rodovia federal. Quinta-feira. Dia de retornar para casa. As tarefas judicantes semanais estendiam-se da terça à quinta-feira.

Despachos no Fórum improvisado, que funcionava na Câmara Municipal, e que só tinha sessão à noite, duas por semana. Raras audiências. Um ou outro despacho no Eleitoral. As fofocas de sempre, alardeadas pelo tabelião Maneca Mãozinha e pela escrivã, Dona Helenita de Tavarinho. Sem contar com os préstimos noticiosos do oficial de justiça, Paulo Timboco, o maior raparigueiro do sertão. Mais de quinze filhos.

O Dr. Armando estava na comarca há seis anos. Viu três colegas seus, mais novos na função, serem promovidos, passando à sua frente. Um deles, era sobrinho do vice-presidente do Tribunal. O outro era genro do governador. O terceiro, neto de um general de pijama. E ele não tinha pistolão.

Naquela época, o Tribunal não seguia regras para as promoções. Era, pura e simplesmente, a veneta dos doutos desembargadores. Tempos brabos. Para complicar, a família dele era do PSD, enquanto o presidente do Tribunal, desembargador Cardoso, e o governador eram da UDN.

Ele estava metido num atoleiro. A sua esperança era que o noivado com a neta do velho deputado Fulgêncio Amado Porto, udenista, prosperasse, como prometia. Quarentão, corpulento, pouco tinha se dado em namoro depois da morte prematura da primeira namorada, sua colega de turma, que falecera um mês antes da formatura. Câncer. Um desgosto profundo.

Dez anos depois da morte da namorada, duas tentativas de namoro foram por água abaixo. Há um ano, namorava com Estelinha, viúva sem filhos, dois anos mais velha do que ele, mas, parecendo uns cinco ou seis anos mais nova. Ela era diretora de uma escola pública noturna, na capital. Uma mulher prendada, inteligente, que escrevia poemas para um jornal. Estava preparando-se para publicar o primeiro livro.

Uma buzina estridente soou e ressoou. Era a marinete. O juiz comprava dois bilhetes, pois ocupava dois assentos no ônibus. O filho de Dona Carminha era o agente da Viação Eldorado, empresa de uma marinete só. Os bilhetes do doutor já eram permanentemente reservados, no primeiro banco.

Mala na mão, o juiz desceu os seis degraus da pensão para a rua. O motorista da marinete, Vavá Curiboca, pegou a mala do doutor, cumprimentando-o: “Boa tarde, doutor. Vamos seguir viagem com a graça de Nosso Senhor!”. Segurando no corrimão da marinete, o juiz subiu com certo esforço.

Três horas e meia de uma viagem cansativa e empoeirada, com uma parada em Córrego Largo, à meia distância entre a comarca e a capital. Enfim, em casa. A irmã, Dona Almerinda, dez anos mais velha, solteirona, com quem ele morava, o recebeu com o jantar em ponto de bala.

O juiz tomou banho, vestiu a roupa de dormir e foi à mesa. O jantar foi um regalo: salada de bacalhau com frios, robalo ao molho de camarão, arroz à grega, purê de maças. Dispensou a sobremesa. Tomaria uns dois cálices de vinho do Porto.

Na manhã seguinte, o juiz pediu o parecer da irmã sobre a inflamação no dedão do pé direito. Ela o apalpou e não teve dúvida no diagnóstico: “Meu querido irmão, você está com tungíase ou tunguíase”. Professora aposentada de Ciências, ela deu uma ligeira aula: “A Tunga penetrans é a menor das pulgas e tem como característica ser hematófaga. Ela pertence ao gênero Tunga, família Tungidae, classe dos insetos, ordem dos Sinfonápteros, ramo dos Artrópodes. Tem como hospedeiro preferencial o porco, mas também o homem e outros animais”. E emendou, no seu jeito debochado, herdado do pai, que Deus o tivesse: “Desse jeito, senhor juiz, vossa excelência jamais será promovido para a tão sonhada segunda entrância. Além da barreira da UDN, o senhor tem como sócio um bicho-de-porco. Um juiz assim nunca será promovido”.

Colhido de surpresa, ele franziu a testa e disse: “O seu veredicto é terrível. Aliás, mais terrível do que a caneta do presidente do Tribunal, que me ignora”. Então, o jeito foi os dois caírem na gargalhada. Depois, com uma agulha esquentada numa vela, para matar germes, Dona Almerinda extirpou o bicho-de-porco.

O olhinho preto, ou seja, o próprio parasita, nadando numa massa espumosa, as larvas, que o povo chamava de lêndeas, como as de piolhos. Aliviado, disse o irmão: “Bem, um empecilho eu já não o tenho. Quanto à UDN, essa praga você não pode retirar do meu caminho”.

O magistrado que esperasse por melhores dias, para ser promovido. Por ora, iria encontrar-se com a namorada. Ouviria versos.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...