José Lima Santana*
O destino de Pituxa parecia estar
selado. A carta que sua mãe estava enviando à filha mais velha, em São Paulo,
acabara de ser entregue no balcão da agência dos Correios, em Matão de Dentro.
Pituxa nunca gostou da irmã mais velha como gostava das outras duas, todas mais
velhas do que ela.
Glorinha, a mais velha, agora
paulistana de moradia, costumava dar beliscões em Pituxa por qualquer coisa.
Ela era muito severa com as irmãs, e seis anos mais velha do que a segunda. Do
que Pituxa, dez anos. Morar com ela, logo em São Paulo? Nem pensar. “Vou não,
nem que a vaca tussa”.
O pai, Jerome, assim pronunciado por
quase todos, estava do lado da filha, apesar de tudo. Para ele, valia mais o
querer da filha, o que ela pensava da vida, o que ela cultivava no coração e no
juízo. Coração e juízo de gente eram temas para merecer estudos de grandolas do
saber. Quem?
Turcão da farmácia, leitor de
almanaques, Zé Bebelo zelador voluntário da biblioteca paroquial, o padre
Almiro Fontes, um erudito, as professoras Miralda e Maria das Graças, e mais
ninguém. Nem mesmo Dona Joquinha, antiga professora, mas, tão acanhada na
leitura...
A cidade era pobre em gente letrada,
capaz de desenganchar coisas grandes, como coração e juízo de gente. Os homens
só pensavam em bois e capim. As mulheres, no geral, em cuidar da casa. Poucas
eram as exceções.
Dona Carolina, mulher de Jerônimo de
Maneca Tortinho e mãe de Pituxa, estava de cabeça feita. Viraria céus e terras
para botar no quengo do marido atoleimado, fazedor dos gostos das filhas, que a
vida de Pituxa não tinha mais cabimento ali, em Matão de Dentro.
Ela, como mãe, não aguentaria os
desaforos da vizinhança, e, enfim, de toda a molecada da cidade. Pituxa, e, por
conseguinte, a família, estavam na boca do povo, no olho do mundo. Ali, era
assim: um deslize, por menor que fosse, era capaz de acabar com a honra e a
vida das pessoas.
Exatamente, por causa das línguas
ferinas, que aumentavam os fatos, fazendo de um graveto um trono de baraúna. A
imprudência de Pituxa a faria amargar o exílio forçado. Em São Paulo, no
cabresto da irmã Glorinha, Pituxa haveria de corrigir-se. Glorinha não tinha
piedade de ninguém. Era dura, seca como uma cacimba sem água, nos verões
tórridos daquela região sertaneja, onde o diabo se recusou a passar.
A patuleia rasgava o nome de Pituxa,
ladeira abaixo, ladeira acima. Até na zona, imaginem só, na zona, no Beco da
Vadiagem, onde mulher de bem jamais se atrevia a passar, falavam de Pituxa. E
quem? As rampeiras. Uma vergonha! Uma agonia a minar o coração de Dona Carolina,
igrejeira de xale e ladainhas.
Pituxa tinha dezoito anos. Faltavam,
então, três anos para obter a maioridade civil. Estava, assim, debaixo do tacão
do pátrio poder a ser exercido pelo pai, “seu” Jerome. Era ele quem deveria
decidir o destino da filha. Mas, a mãe era quem, deveras, mandava e desmandava
em casa.
Era a voz de galo. Imperiosa, retinha
em si todo o autoritarismo da família Souza Montes do agreste pernambucano.
Gente malvada que só! Como “seu” Jerome foi se arranchar naquela família é história
longa de se contar. Fica para outra ocasião, se der na telha ao sofrível autor.
Na tarde em que Dona Carolina postou
a carta para Glorinha, ali mesmo nos Correios, Demócrito de Joãozinho Olho de
Vidro, chefe da agência, fez uma pergunta descarada, envolta em mentirosa
inocência: “Dona Carolina, como vão “seu” Jerome e a menina Pituxa”? Então,
ela, a mulher e mãe que ali estava postando uma carta para a filha mais velha,
não compreendeu o alcance da maliciosa pergunta? Ela não era trouxa. Sabia
muito bem assuntar.
O maldito, que tinha uma filha
perdida dentro de casa, embuchada e tudo, cujo favo de mel fora lambido por
Teixeirinha de Sabino da Cobra D’Água, um perdido, desassossegador de famílias,
metido a valentão, mas que se cagou todo diante de Juarez Mulato, num leilão,
na porta da bodega de Ciro Corno, não perguntou pelas outras filhas. Perguntou
apenas por Pituxa, botando o pai no meio, para disfarçar. Cabra safado! A sua
filha não estava destampada como a dele. Era outra situação, bem diferente.
A mãe de Pituxa olhou bem no fundo
dos olhos do chefe dos Correios, encobertos por óculos do tipo fundo de
garrafa, e respondeu: “Na minha casa, “seu” Demócrito, não tem gente vadia.
Jerônimo e as minhas filhas estão na lide. Cada um no seu quê-fazer. Na nossa
família não se cria gente para a vadiagem, nem para enlamear a casa”.
O chefe dos Correios engoliu um seco.
Riu um risinho amarelo e passou o troco de Dona Carolina, que saiu sem
cumprimentos. “Sujeito safado!”, grunhiu, entre os dentes, a mãe de Pituxa, que
quase tropeçou ao descer os dois degraus que separavam a agência da calçada.
Passando na loja de Fulgêncio
Limoeiro, sujeitinho atarracado como um toco de amarrar jegue, mas gente da
maior finura, Dona Carolina deu uma olhada numas malas. Pituxa iria precisar de
uma, além da que tinha em casa. Perguntou o preço. Não estava caro. Voltaria
amanhã.
Fulgêncio insistiu para que ela
levasse a mala. Pagaria depois. “Não, ‘seu’ Fulgêncio! Carolina Souza Montes de
Alvarenga Costa não compra fiado, nem para pagar um dia depois. Amanhã, eu
voltarei para buscar a mala. Por favor, o senhor queira guardar para mim”.
Saiu.
O que uma filha de miolo frouxo não
era capaz de fazer! Antes tivesse fugido com um rapaz descompromissado, um que
se aproveitasse, se ali tivesse algum. Ao menos, seria possível fazer-se o
casamento, para que tudo se arrumasse. Era dolorido, mas podia acontecer com
qualquer uma. Mas, aquilo? Não, não e não!
Dona Carolina não suportava. Ainda
que Jerome botasse panos quentes, tentasse amaciar o problema, ela empurraria
Pituxa para o cabresto de Glorinha. Em São Paulo, nas garras da irmã mais
velha, ela arranjaria um emprego e, mais tarde, um casamento. Podia até fazer
um casamentão.
Afinal, de beleza Pituxa era bem
servida. Era, sem favor, a moça mais bonita dali. Mais do que as outras irmãs.
Mais do que qualquer outra da cidade. Indo embora, ela não acabaria servindo
para o bico de um dos rapazes mocorongos dali, pois eram todos iguais. Uns
brutos, que não mereciam colher tão bela flor.
Então, não se lembrava de Mocinha,
filha de ‘seu” Gomes da padaria? Pobre Dona Conceição! Teve que amargar ver a
filha Dodoca nos braços de um moleque de ponta de rua, como Sebinho de Maria
Rosa do finado Zé Cotia. Posses, a família dele tinha. Mas, Sebinho era um tipo
a ser vomitado. Bateu na boca três vezes. “Que Deus me perdoe”!
Pituxa, quisesse ou não, tomaria o
rumo de São Paulo. Os leitores, a essa altura, devem estar curiosos, para saber
qual foi o deslize de Pituxa. Gravíssimo, para Dona Carolina. Numa festinha
entre amigas, e somente entre amigas, Pituxa bebeu cerveja e fumou cigarros.
Dançou, sozinha, arrancando fora a blusa.
O fato vazou. Correu trecho. Um
escândalo, para uma moça de família, em pleno 1955. Matão de Dentro era Matão
de Dentro.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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