sexta-feira, 19 de março de 2021

O DESTINO DE PITUXA


  

 

José Lima Santana*

 

 

O destino de Pituxa parecia estar selado. A carta que sua mãe estava enviando à filha mais velha, em São Paulo, acabara de ser entregue no balcão da agência dos Correios, em Matão de Dentro. Pituxa nunca gostou da irmã mais velha como gostava das outras duas, todas mais velhas do que ela.

Glorinha, a mais velha, agora paulistana de moradia, costumava dar beliscões em Pituxa por qualquer coisa. Ela era muito severa com as irmãs, e seis anos mais velha do que a segunda. Do que Pituxa, dez anos. Morar com ela, logo em São Paulo? Nem pensar. “Vou não, nem que a vaca tussa”.

O pai, Jerome, assim pronunciado por quase todos, estava do lado da filha, apesar de tudo. Para ele, valia mais o querer da filha, o que ela pensava da vida, o que ela cultivava no coração e no juízo. Coração e juízo de gente eram temas para merecer estudos de grandolas do saber. Quem?

Turcão da farmácia, leitor de almanaques, Zé Bebelo zelador voluntário da biblioteca paroquial, o padre Almiro Fontes, um erudito, as professoras Miralda e Maria das Graças, e mais ninguém. Nem mesmo Dona Joquinha, antiga professora, mas, tão acanhada na leitura...

A cidade era pobre em gente letrada, capaz de desenganchar coisas grandes, como coração e juízo de gente. Os homens só pensavam em bois e capim. As mulheres, no geral, em cuidar da casa. Poucas eram as exceções.

Dona Carolina, mulher de Jerônimo de Maneca Tortinho e mãe de Pituxa, estava de cabeça feita. Viraria céus e terras para botar no quengo do marido atoleimado, fazedor dos gostos das filhas, que a vida de Pituxa não tinha mais cabimento ali, em Matão de Dentro.

Ela, como mãe, não aguentaria os desaforos da vizinhança, e, enfim, de toda a molecada da cidade. Pituxa, e, por conseguinte, a família, estavam na boca do povo, no olho do mundo. Ali, era assim: um deslize, por menor que fosse, era capaz de acabar com a honra e a vida das pessoas.

Exatamente, por causa das línguas ferinas, que aumentavam os fatos, fazendo de um graveto um trono de baraúna. A imprudência de Pituxa a faria amargar o exílio forçado. Em São Paulo, no cabresto da irmã Glorinha, Pituxa haveria de corrigir-se. Glorinha não tinha piedade de ninguém. Era dura, seca como uma cacimba sem água, nos verões tórridos daquela região sertaneja, onde o diabo se recusou a passar.

A patuleia rasgava o nome de Pituxa, ladeira abaixo, ladeira acima. Até na zona, imaginem só, na zona, no Beco da Vadiagem, onde mulher de bem jamais se atrevia a passar, falavam de Pituxa. E quem? As rampeiras. Uma vergonha! Uma agonia a minar o coração de Dona Carolina, igrejeira de xale e ladainhas.

Pituxa tinha dezoito anos. Faltavam, então, três anos para obter a maioridade civil. Estava, assim, debaixo do tacão do pátrio poder a ser exercido pelo pai, “seu” Jerome. Era ele quem deveria decidir o destino da filha. Mas, a mãe era quem, deveras, mandava e desmandava em casa.

Era a voz de galo. Imperiosa, retinha em si todo o autoritarismo da família Souza Montes do agreste pernambucano. Gente malvada que só! Como “seu” Jerome foi se arranchar naquela família é história longa de se contar. Fica para outra ocasião, se der na telha ao sofrível autor.

Na tarde em que Dona Carolina postou a carta para Glorinha, ali mesmo nos Correios, Demócrito de Joãozinho Olho de Vidro, chefe da agência, fez uma pergunta descarada, envolta em mentirosa inocência: “Dona Carolina, como vão “seu” Jerome e a menina Pituxa”? Então, ela, a mulher e mãe que ali estava postando uma carta para a filha mais velha, não compreendeu o alcance da maliciosa pergunta? Ela não era trouxa. Sabia muito bem assuntar.

O maldito, que tinha uma filha perdida dentro de casa, embuchada e tudo, cujo favo de mel fora lambido por Teixeirinha de Sabino da Cobra D’Água, um perdido, desassossegador de famílias, metido a valentão, mas que se cagou todo diante de Juarez Mulato, num leilão, na porta da bodega de Ciro Corno, não perguntou pelas outras filhas. Perguntou apenas por Pituxa, botando o pai no meio, para disfarçar. Cabra safado! A sua filha não estava destampada como a dele. Era outra situação, bem diferente.

A mãe de Pituxa olhou bem no fundo dos olhos do chefe dos Correios, encobertos por óculos do tipo fundo de garrafa, e respondeu: “Na minha casa, “seu” Demócrito, não tem gente vadia. Jerônimo e as minhas filhas estão na lide. Cada um no seu quê-fazer. Na nossa família não se cria gente para a vadiagem, nem para enlamear a casa”.

O chefe dos Correios engoliu um seco. Riu um risinho amarelo e passou o troco de Dona Carolina, que saiu sem cumprimentos. “Sujeito safado!”, grunhiu, entre os dentes, a mãe de Pituxa, que quase tropeçou ao descer os dois degraus que separavam a agência da calçada.

Passando na loja de Fulgêncio Limoeiro, sujeitinho atarracado como um toco de amarrar jegue, mas gente da maior finura, Dona Carolina deu uma olhada numas malas. Pituxa iria precisar de uma, além da que tinha em casa. Perguntou o preço. Não estava caro. Voltaria amanhã.

Fulgêncio insistiu para que ela levasse a mala. Pagaria depois. “Não, ‘seu’ Fulgêncio! Carolina Souza Montes de Alvarenga Costa não compra fiado, nem para pagar um dia depois. Amanhã, eu voltarei para buscar a mala. Por favor, o senhor queira guardar para mim”. Saiu.

O que uma filha de miolo frouxo não era capaz de fazer! Antes tivesse fugido com um rapaz descompromissado, um que se aproveitasse, se ali tivesse algum. Ao menos, seria possível fazer-se o casamento, para que tudo se arrumasse. Era dolorido, mas podia acontecer com qualquer uma. Mas, aquilo? Não, não e não!

Dona Carolina não suportava. Ainda que Jerome botasse panos quentes, tentasse amaciar o problema, ela empurraria Pituxa para o cabresto de Glorinha. Em São Paulo, nas garras da irmã mais velha, ela arranjaria um emprego e, mais tarde, um casamento. Podia até fazer um casamentão.

Afinal, de beleza Pituxa era bem servida. Era, sem favor, a moça mais bonita dali. Mais do que as outras irmãs. Mais do que qualquer outra da cidade. Indo embora, ela não acabaria servindo para o bico de um dos rapazes mocorongos dali, pois eram todos iguais. Uns brutos, que não mereciam colher tão bela flor.

Então, não se lembrava de Mocinha, filha de ‘seu” Gomes da padaria? Pobre Dona Conceição! Teve que amargar ver a filha Dodoca nos braços de um moleque de ponta de rua, como Sebinho de Maria Rosa do finado Zé Cotia. Posses, a família dele tinha. Mas, Sebinho era um tipo a ser vomitado. Bateu na boca três vezes. “Que Deus me perdoe”!

Pituxa, quisesse ou não, tomaria o rumo de São Paulo. Os leitores, a essa altura, devem estar curiosos, para saber qual foi o deslize de Pituxa. Gravíssimo, para Dona Carolina. Numa festinha entre amigas, e somente entre amigas, Pituxa bebeu cerveja e fumou cigarros. Dançou, sozinha, arrancando fora a blusa.

O fato vazou. Correu trecho. Um escândalo, para uma moça de família, em pleno 1955. Matão de Dentro era Matão de Dentro.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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