José Lima Santana*
O quintal da mãe de Zé de Tonho Brito
era amplo e cheio de árvores frutíferas. Tinha quase de um-tudo. De jambo a
jaboticaba. De manga – rosa, espada, maria, coco e manguita – a caju, de jaca a
carambola, de pitanga a graviola, de coco a pinha. Laranja, limão, tangerina,
mamão de cheiro, tinha tudo isso, sim. Até araticum e jamelão.
Devia ter muito mais frutas. Quintal
porreta. E a mãe de Zé de Tonho Brito, Mariazinha, se fazia nos cobres,
vendendo de tudo. Viúva aos vinte e poucos anos de idade, com apenas cinco de
casamento, perdeu o marido afogado na lagoa do Brejão. Desde a morte de Tonho
Brito, Mariazinha labutou no quintal, para criar os dois filhos, Zé e Tininha,
que se fizeram rapaz e moça, dando gosto à mãe.
Mariazinha contava com a ajuda de
Chico de Bartolomeu, antigo empregado numa fábrica de produtos químicos, em São
Paulo, da qual saiu por aposentadoria especial, dada a periculosidade da
atividade, e voltou para a terra natal. Proventos minguados, o ganho com o
trabalho no quintal Mariazinha o adjutorava.
Zé de Tonho Brito pegou namoro com
Duquinha, filha de “seu” Raimundo Costa e dona Margarida, tesoureira da
Prefeitura. Descambava o namoro para três anos. Namorinho grudento. O
casalzinho parecia mesmo dois pombinhos em doces arrulhos. Uma beleza de casal,
eles formavam.
Casamento? Eles ainda não atinavam.
Eram jovens demais, pensavam. Vinte anos, ele, e dezoito, ela. Começaram o
namoro ainda na escola, quando dançaram, de par, a quadrilha de São João.
Duquinha recebia mimos de Zé, inclusive em forma de cestas de frutas. De todas,
a que ela mais apreciava era a pinha. Fruta da qual Zé não fazia gosto.
Das pinhas, Duquinha devorava uma
cesta inteira, se possível. Antes de namorar com Zé, ela as comprava, no
tabuleiro de dona Mariazinha, posto na calçada. Às vezes, o próprio Zé as
vendia, mas, então, crianças, entrando na adolescência, eles nem davam fé um do
outro, nem ele, dela, nem ela, dele.
Ali na vizinhança, outra moça gostava
de pinhas. Rachel de Júlia de Tibúrcio. Mesma idade de Duquinha. Mesma turma,
na escola. Mas, Duquinha e Rachel pouco se davam. Um desentendimento durante
uma aula de Geografia. E, um ano antes do desentendimento, Rachel tinha perdido
Zé para Duquinha, na quadrilha junina. Ela tinha namorado Zé por duas semanas,
se aquilo podia ser chamado de namoro. Uma faísca.
Mais uma vez, chegou o tempo da safra
de pinhas. Eram seis pés. Botavam à vontade. Mariazinha e Chico colhiam dezenas
de pinhas todos os dias. O ajudante tinha o encargo de lavar toda fruta
colhida. Disso, dona Mariazinha não abria mão. Higiene.
Beirava o meio-dia, quando Chico,
naquela terça-feira, lavou umas pinhas há pouco colhidas e guardou-as para Zé
mimar a namorada. “Estas aqui, dona Mariazinha, são especiais”, disse. À tarde,
sol a pino, Zé de Tonho Brito levou as pinhas para a namorada, que as recebeu
com alegria e um agradecimento próprio de namorada.
Dona Margarida, futura sogra de Zé,
assim que retornou da jornada na Prefeitura, após as dezesseis horas, sentou-se
no alpendre do fundo da casa e comeu uma das pinhas. Deliciosa, como sempre.
Acendeu o fogão. Deu vontade de comer mais uma. Comeu. Bebeu um copo d’água
fresquinha, da moringa que esfriava a água na janela do oitão, o vento soprando
e fazendo música na boca da moringa, aberta. Sentiu uma tontura.
A tarde foi caindo, as galinhas
ciscando no quintal, alertadas pelo galo de que estava chegando a hora de
tomarem lugar no poleiro. Duquinha estava na aula de bordado, na casa de
Manoela do finado João Turco. E “seu” Raimundo, na lide com o gadinho que
criava não muito longe da cidade. Duquinha era filha única.
Eram quase seis horas quando Duquinha
chegou em casa. O lusco-fusco da casa deu lugar à claridade da lâmpada acesa
por ela, na sala de jantar. “Mãe, ô mãe!”, ela gritou. Silêncio. Tornou a chamar.
Nada. Na cozinha, o fogão estava aceso. Uma panela no fogo. A chaleira estava
sobre a mesa. Estranho. “Mãe, cadê a senhora?”, chamou mais uma vez. Nada. De
chofre, um grito. “Meu Deus! Mãe...!”.
Dona Margarida estava caída. Uma
gosma escorrendo da boca. Duquinha gritou pela vizinhança. A aflição na voz de
Duquinha chamou a atenção de duas vizinhas. Gritaria. “Santo Deus!”, exclamou
uma. “O que foi isso?”, indagou a outra. Logo, muitas pessoas acorreram à
aflição das três, Duquinha e as duas vizinhas. O médico foi chamado.
Dr. Darcy era novato na cidade.
Médico da Fundação SESP. Alguém da Prefeitura o trouxe. Já dona Margarida,
inerte, posta na cama. Exames ligeiros. Dona Margarida estava morta. “Parece um
caso de envenenamento. É preciso encaminhar o corpo ao IML, na capital. E
chamar a polícia”. Como seria possível? Suicídio?
Àquela altura, rolavam as conversas.
Dona Margarida descobriu que “seu” Raimundo estava de caso com alguma zinha?
Seria isso? Teria ela dado um desfalque na Prefeitura e o prefeito estava
prestes a descobrir? Suposições. Maldosas ou não, eram suposições. Alguém foi
chamar “seu” Raimundo.
O delegado tomou as providências que
lhe cabiam tomar. Isolou a cozinha e o alpendre. Preparou o encaminhamento do
corpo para o IML. Quando possível, o rabecão chegaria. A cidade entrou em
alvoroço. As conversas rolavam.
Enfim, no dia seguinte, o veredicto
do IML. Envenenamento por cianureto de potássio. Na quinta-feira, o corpo foi
liberado para sepultamento. Comoção na cidade. Duquinha e “seu” Raimundo
arriados. Zé de Tonho Brito, a mãe e a irmã não largaram Duquinha. Tudo era uma
tristeza só. As más línguas ainda tricotavam.
O delegado tinha feito algumas
investigações. Dentre elas, recolheu as cascas das pinhas, encontradas no
alpendre. Pediu exame toxicológico. Não deu outra. Foi encontrada a presença do
cianureto. Dona Margarida envenenou-se ou foi envenenada? O delegado ouviu
Mariazinha, Zé e Chico, o ajudante. Ouviu Duquinha e “seu” Raimundo.
Ora, o crime não foi perfeito. E não
durou muito para se chegar aos culpados. Chico, o ajudante de Mariazinha, não
aguentou o repuxado das perguntas do delegado, no segundo interrogatório. Crime
premeditado. Concurso de agentes. Descobertos o autor material e o mandante. Ou
a mandante.
Rachel, a colega com quem Duquinha
não se dava, tinha ciúmes dela com Zé de Tonho Brito, embora fosse discreta.
Chico era seu primo em segundo grau. Inclusive, antes de arribar para São
Paulo, ele tivera um desentendimento com “seu” Raimundo, ainda moço, mas bem
taludo, de quem tinha apanhado de rebenque.
Rachel acercou-se dele. Foi-se
chegando mais e mais. Proposta macabra feita, mas, de início, recusada. Novas
investidas. Acerto firmado. Ele, conhecedor das químicas, serviu-se de uma
seringa para injetar o veneno nas pinhas, naquele quase meio-dia de
terça-feira. O alvo, claro, era Duquinha. Dona Margarida comeu as pinhas, antes
da filha.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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