sexta-feira, 16 de abril de 2021

AS PINHAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

O quintal da mãe de Zé de Tonho Brito era amplo e cheio de árvores frutíferas. Tinha quase de um-tudo. De jambo a jaboticaba. De manga – rosa, espada, maria, coco e manguita – a caju, de jaca a carambola, de pitanga a graviola, de coco a pinha. Laranja, limão, tangerina, mamão de cheiro, tinha tudo isso, sim. Até araticum e jamelão.

Devia ter muito mais frutas. Quintal porreta. E a mãe de Zé de Tonho Brito, Mariazinha, se fazia nos cobres, vendendo de tudo. Viúva aos vinte e poucos anos de idade, com apenas cinco de casamento, perdeu o marido afogado na lagoa do Brejão. Desde a morte de Tonho Brito, Mariazinha labutou no quintal, para criar os dois filhos, Zé e Tininha, que se fizeram rapaz e moça, dando gosto à mãe.

Mariazinha contava com a ajuda de Chico de Bartolomeu, antigo empregado numa fábrica de produtos químicos, em São Paulo, da qual saiu por aposentadoria especial, dada a periculosidade da atividade, e voltou para a terra natal. Proventos minguados, o ganho com o trabalho no quintal Mariazinha o adjutorava.

Zé de Tonho Brito pegou namoro com Duquinha, filha de “seu” Raimundo Costa e dona Margarida, tesoureira da Prefeitura. Descambava o namoro para três anos. Namorinho grudento. O casalzinho parecia mesmo dois pombinhos em doces arrulhos. Uma beleza de casal, eles formavam.

Casamento? Eles ainda não atinavam. Eram jovens demais, pensavam. Vinte anos, ele, e dezoito, ela. Começaram o namoro ainda na escola, quando dançaram, de par, a quadrilha de São João. Duquinha recebia mimos de Zé, inclusive em forma de cestas de frutas. De todas, a que ela mais apreciava era a pinha. Fruta da qual Zé não fazia gosto.

Das pinhas, Duquinha devorava uma cesta inteira, se possível. Antes de namorar com Zé, ela as comprava, no tabuleiro de dona Mariazinha, posto na calçada. Às vezes, o próprio Zé as vendia, mas, então, crianças, entrando na adolescência, eles nem davam fé um do outro, nem ele, dela, nem ela, dele.

Ali na vizinhança, outra moça gostava de pinhas. Rachel de Júlia de Tibúrcio. Mesma idade de Duquinha. Mesma turma, na escola. Mas, Duquinha e Rachel pouco se davam. Um desentendimento durante uma aula de Geografia. E, um ano antes do desentendimento, Rachel tinha perdido Zé para Duquinha, na quadrilha junina. Ela tinha namorado Zé por duas semanas, se aquilo podia ser chamado de namoro. Uma faísca.

Mais uma vez, chegou o tempo da safra de pinhas. Eram seis pés. Botavam à vontade. Mariazinha e Chico colhiam dezenas de pinhas todos os dias. O ajudante tinha o encargo de lavar toda fruta colhida. Disso, dona Mariazinha não abria mão. Higiene.

Beirava o meio-dia, quando Chico, naquela terça-feira, lavou umas pinhas há pouco colhidas e guardou-as para Zé mimar a namorada. “Estas aqui, dona Mariazinha, são especiais”, disse. À tarde, sol a pino, Zé de Tonho Brito levou as pinhas para a namorada, que as recebeu com alegria e um agradecimento próprio de namorada.

Dona Margarida, futura sogra de Zé, assim que retornou da jornada na Prefeitura, após as dezesseis horas, sentou-se no alpendre do fundo da casa e comeu uma das pinhas. Deliciosa, como sempre. Acendeu o fogão. Deu vontade de comer mais uma. Comeu. Bebeu um copo d’água fresquinha, da moringa que esfriava a água na janela do oitão, o vento soprando e fazendo música na boca da moringa, aberta. Sentiu uma tontura.

A tarde foi caindo, as galinhas ciscando no quintal, alertadas pelo galo de que estava chegando a hora de tomarem lugar no poleiro. Duquinha estava na aula de bordado, na casa de Manoela do finado João Turco. E “seu” Raimundo, na lide com o gadinho que criava não muito longe da cidade. Duquinha era filha única.

Eram quase seis horas quando Duquinha chegou em casa. O lusco-fusco da casa deu lugar à claridade da lâmpada acesa por ela, na sala de jantar. “Mãe, ô mãe!”, ela gritou. Silêncio. Tornou a chamar. Nada. Na cozinha, o fogão estava aceso. Uma panela no fogo. A chaleira estava sobre a mesa. Estranho. “Mãe, cadê a senhora?”, chamou mais uma vez. Nada. De chofre, um grito. “Meu Deus! Mãe...!”.

Dona Margarida estava caída. Uma gosma escorrendo da boca. Duquinha gritou pela vizinhança. A aflição na voz de Duquinha chamou a atenção de duas vizinhas. Gritaria. “Santo Deus!”, exclamou uma. “O que foi isso?”, indagou a outra. Logo, muitas pessoas acorreram à aflição das três, Duquinha e as duas vizinhas. O médico foi chamado.

Dr. Darcy era novato na cidade. Médico da Fundação SESP. Alguém da Prefeitura o trouxe. Já dona Margarida, inerte, posta na cama. Exames ligeiros. Dona Margarida estava morta. “Parece um caso de envenenamento. É preciso encaminhar o corpo ao IML, na capital. E chamar a polícia”. Como seria possível? Suicídio?

Àquela altura, rolavam as conversas. Dona Margarida descobriu que “seu” Raimundo estava de caso com alguma zinha? Seria isso? Teria ela dado um desfalque na Prefeitura e o prefeito estava prestes a descobrir? Suposições. Maldosas ou não, eram suposições. Alguém foi chamar “seu” Raimundo.

O delegado tomou as providências que lhe cabiam tomar. Isolou a cozinha e o alpendre. Preparou o encaminhamento do corpo para o IML. Quando possível, o rabecão chegaria. A cidade entrou em alvoroço. As conversas rolavam.

Enfim, no dia seguinte, o veredicto do IML. Envenenamento por cianureto de potássio. Na quinta-feira, o corpo foi liberado para sepultamento. Comoção na cidade. Duquinha e “seu” Raimundo arriados. Zé de Tonho Brito, a mãe e a irmã não largaram Duquinha. Tudo era uma tristeza só. As más línguas ainda tricotavam.

O delegado tinha feito algumas investigações. Dentre elas, recolheu as cascas das pinhas, encontradas no alpendre. Pediu exame toxicológico. Não deu outra. Foi encontrada a presença do cianureto. Dona Margarida envenenou-se ou foi envenenada? O delegado ouviu Mariazinha, Zé e Chico, o ajudante. Ouviu Duquinha e “seu” Raimundo.

Ora, o crime não foi perfeito. E não durou muito para se chegar aos culpados. Chico, o ajudante de Mariazinha, não aguentou o repuxado das perguntas do delegado, no segundo interrogatório. Crime premeditado. Concurso de agentes. Descobertos o autor material e o mandante. Ou a mandante.

Rachel, a colega com quem Duquinha não se dava, tinha ciúmes dela com Zé de Tonho Brito, embora fosse discreta. Chico era seu primo em segundo grau. Inclusive, antes de arribar para São Paulo, ele tivera um desentendimento com “seu” Raimundo, ainda moço, mas bem taludo, de quem tinha apanhado de rebenque.

Rachel acercou-se dele. Foi-se chegando mais e mais. Proposta macabra feita, mas, de início, recusada. Novas investidas. Acerto firmado. Ele, conhecedor das químicas, serviu-se de uma seringa para injetar o veneno nas pinhas, naquele quase meio-dia de terça-feira. O alvo, claro, era Duquinha. Dona Margarida comeu as pinhas, antes da filha.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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