José Lima Santana*
Desde quando vidas negras importam?
Ora, desde que importam vidas brancas ou quaisquer outras vidas humanas. Muito
antes do assassinato de George “Perry” Floyd Jr., em Minneapolis, Estado de
Minnesota, no dia 25 de maio do ano passado, a luta dos negros norte-americanos
sempre teve lances memoráveis, decorrentes da condição sub-humana com que os
negros dos Estados Unidos da América sempre foram tratados.
O racismo estrutural é algo abjeto,
mas que está presente em muitas sociedades ditas civilizadas. Mas, no país do
Tio Sam ele se mostra sob formas estúpidas em fatos isolados ou não. Os
supremacistas brancos de “almas enlameadas” não haverão de se ajustar
facilmente. Sim, são desajustados.
Muitos norte-americanos jamais
aceitaram a abolição da escravatura, em 1865, inclusive causando o assassinato
do homem que fez de tudo para acabar com a mancha nefasta da sujeição dos
negros, Abraham Lincoln.
A maldita Ku Klus Klan amedrontou,
perseguiu e matou muitos negros. A segregação oficial só foi contida na década
de 1960, com a Lei dos Direitos Civis assinada pelo presidente Lyndon Johnson,
depois das lutas dos negros a partir da recusa da costureira Rosa Parks em
ceder o lugar num ônibus a um branco, no Alabama, em 1955.
Uma vergonha, por ter demorado tanto.
Dentre outros líderes, Martin Luther King Jr. teve a vida ceifada no auge da
luta dos negros naquela década (04/04/68). Para mim, duas estrelas de
primeiríssima grandeza brilham no firmamento universal da luta dos negros: King
e Mandela. Duas vidas dignas. Duas lutas cujas chamas jamais se apagarão.
Qual o país escravocrata das Américas
que não tem os seus líderes e mártires negros? Homens e mulheres que sofreram e
morreram sem nunca renunciar ao direito de serem respeitados (as) como seres
humanos e negros (as). Todos os países os têm. Nesses países, líderes e
mártires negros (as) continuam a existir. Que os líderes continuem a brotar,
mas que os mártires cessem de os ser. Urgentemente.
No ato da detenção de Floyd, o então
policial Derek Chauvin ajoelhou-se no pescoço e nas suas costas por 8 minutos e
46 segundos, ocasionando o assassinato. Sua morte e as ações da polícia levaram
a protestos em todo o mundo do movimento ativista antirracista Black Lives
Matter, pedindo a reforma da polícia e a legislação para lidar com as
desigualdades raciais.
No Brasil, ações policiais também têm
levado muitos negros, em sua maioria jovens, à morte. Aliás, tanto nos Estados
Unidos quanto aqui, o fato de ser negro e pobre já é suficiente para
desconfianças, no mínimo. Mas, aqui, a polícia mata muito mais do que lá. E
mata muito, muito mais negros do que lá.
Por que os negros daqui não reagem
como os de lá? É porque não somos devidamente organizados? É porque somos
individualistas? Covardes? É porque somos assim mesmo? É porque nos dizem que
aqui não há racismo como lá? Não há? Já houve, inclusive, quem dissesse – e não
foram poucos – que a miscigenação brasileira apagava o racismo. Mentira.
Outra mentira é a de que o racismo
daqui é velado. Não é. Pelo contrário, é muito explícito. Ele está nas piadas
de mau gosto, em expressões racistas como “negro de alma branca”, e explode de
vez em quando, como no domingo, 18, em que um homem, em Goiânia, praticou
injúria racial e ameaças contra uma moça da portaria do prédio onde ele mora.
Segundo a moça, a discussão começou
porque o morador chegou de carro em frente ao portão da garagem e piscou os
faróis, querendo entrar sem se identificar. A funcionária explicou que não
poderia abrir para qualquer um que fizesse um sinal e que precisava que o homem
se identificasse, como são as regras condominiais, o que irritou o morador.
“Grava, macaca! Chimpanzé! Chipanga! Me encara, desgraça”, disse o homem
pessoalmente à vítima, que estava filmando a cena. Fatos como esse ocorrem com
certa frequência pelo país afora. Enfim, matar negros nas favelas ou subúrbios
é como se livrar de um empecilho, para a polícia. Isso beira a uma “faxina
étnica”.
Aqui, como noutros países, há pessoas
que, ao seu modo, enfrentam obstáculos para vencer o racismo. Em 1925, por
exemplo, uma mulher que eu conheci, em Nossa Senhora das Dores, branca, filha
de um pequeno proprietário rural e senhor de escravos (na verdade, o seu pai só
tinha uma escrava, de nome Rita) ousou casar com um negro, neto de escravos,
isso 37 anos depois da abolição.
O casal conviveu durante 68 anos,
quando o homem morreu, aos 91 anos. O casal teve seis filhos, muitos netos e
bisnetos. A diferença de cor não impediu a vida harmoniosa e respeitosa do
casal, do qual eu sou, com muita honra e gosto, um dos netos. Minha avó branca
e meu avô negro foram um exemplo de dignidade e honradez para toda a família.
Muitos casais viveram ou vivem assim, enfrentando, ao seu modo, o racismo.
Voltando a George Floyd, o policial
que o asfixiou foi expulso da polícia. Na tarde da última terça-feira, 20, o
ex-policial Derek Chauvin foi condenado por decisão unânime do júri popular que
analisou o caso. Chauvin foi condenado por assassinato não intencional em
segundo grau, assassinato em terceiro grau e homicídio culposo.
A promotoria decidiu revogar a fiança
para o crime de homicídio culposo. E a fiança paga foi de um milhão de dólares,
quantia provavelmente levantada por defensores da supremacia branca. O
ex-policial saiu do tribunal algemado. Foi um momento histórico na luta contra
o racismo, naquele país.
O presidente Joe Biden disse que a
condenação do ex-policial Chauvin pelo assassinato de Floyd "é um passo
adiante" na luta contra o "racismo sistêmico" que "mancha a
alma da nossa nação". Segundo o ex-presidente Barack Obama, primeiro negro
a presidir o seu país, “a verdadeira justiça exige que se admita o fato de que
negros americanos são tratados de maneira diferente todos os dias”.
A vice-presidente Kamala Harris,
descendente de negros e asiáticos, sublinhou as difíceis condições de pessoas
negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido
tratados como se fossem menos que humanos”. E acrescentou: “Suas vidas precisam
ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa
nação”.
Nesses dias, nos EUA, Estados
governados por republicanos estão mudando suas leis para proteger a Polícia e
para coibir as manifestações livres, como os protestos dos negros. Atitudes
repudiáveis. Na tarde da condenação de Chauvin, a polícia matou uma jovem de 16
anos, ali perto. Mais protestos. Mais um caso a resolver.
Após a morte de Floyd, a North
Central University, em Minneapolis, anunciou uma bolsa de estudos com o nome de
Floyd e conclamou outras faculdades e universidades a seguirem o exemplo. A
Alabama State University também anunciou uma bolsa de estudos em homenagem a
Floyd. George Floyd nunca estará só. E que sós nunca estejam os negros
brasileiros que são mortos como uma coisa qualquer.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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