sábado, 19 de junho de 2021

AMOR QUE NÃO FINDA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Aquela tarde de março valia como a noite que não pôde ser celebrada. Ali estavam eles – ele e ela, as vozes trêmulas pela emoção. Se uma lágrima rolou dos olhos dela, duas ou mais rolaram dos olhos dele. Eram passados sessenta e dois anos. O mundo girou muitas vezes desde então.

Pessoas encontraram-se e desencontraram-se. Foram felizes ou infelizes. Prosperaram ou fracassaram. Muitas já tinham morrido. Muitas, aliás, que eles conheceram. Algumas impediram que eles caminhassem juntos. Ao longo daquele tempo decorrido, muitas flores desabrocharam. Algumas enfeitaram casas e igrejas, adornaram cabelos e lapelas. Todas se despetalaram ou murcharam. Todas feneceram. As flores não eram eternas. Que pena! Mas, o amor, mesmo sangrando por mãos alheias, mesmo impedido de fazer dois corações baterem no mesmo compasso, podia, sim, ser para sempre.

O amor é vaso santo. É vaso inquebrantável quando um desce ao sacrário da alma do outro, e vice-versa, e ali encontram o bálsamo da vida a dois. Vidas que se partilham. Que se completam, embora cada um andando com os próprios pés. Afinal, o amor é livre como o voo de um colibri ou de uma borboleta diáfana, em manhã de céu azul ou em tarde crepuscular.

Foi uma amiga de infância dela, quem o reencontrou primeiro. Igualmente numa tarde, mas de novembro. O calor do verão nordestino, que sempre engolia uma fatia da primavera e outra do outono, conduziu a amiga a uma sorveteria. Um sorvete de tapioca. Sorveteria nova, de fino gosto.

Ele a veio servir. E a reconheceu. “Você não é Doriana, amiga de Silvinha de “seu” Durval Pinheiro, lá do Gravatá? Se não for, desculpe-me. Parece muito, apesar de tantos anos passados”. Depois do falatório, ela o reconheceu. “Ah, João de Dona Raimunda, da Rua do Alecrim! Estou lhe reconhecendo. Quantos anos, meu Deus!”.

Foi o bastante. Ele sentou-se na mesa ao lado da mais nova freguesa. Tempos, tempos, tempos. O tempo não envelhece. As pessoas, sim. Estavam para ser completados sessenta e dois anos. Removeram as cinzas do tempo passado, foram ao mais longínquo que puderam e que precisaram ir.

Gravatá era uma cidade pequena. Cresceu um pouco. O tempo... Os preconceitos. Os modos absurdos de vida. As divisões sociais e familiares. Gente da Praça da Matriz. Gente das ruas próximas. Gente dos subúrbios enlameados e empoeirados. Pessoas diferentes, que deveriam ser iguais no ser, mas não eram no ter.

Aquele reencontro foi uma dádiva de Deus. Ela prometeu que haveria outros. O marido a esperava. A conterrânea deixou a saudade revolvida. Deixou um fio de esperança. Deu notícias da amiga de outrora. Animadoras.

Silvinha, a amiga da nova freguesa tinha saído de Gravatá, depois que ele, desencantado, saíra. Na manhã chuvosa de sábado, ele tomou o rumo da capital, para nunca mais voltar ao seu berço. Dentro de um ano, mandou buscar a mãe e a irmã. O pai tinha ganhado o mundo, anos antes, para as terras do Sul e para nunca mais voltar. Mandou umas poucas cartas, algum dinheiro, e nada mais.

Desde pequeno, ele ajudou a mãe no sustento da casa. Primeiro, como engraxate. A seguir, ajudando a carregar e descarregar fardos e sacos no armazém de “seu” Lió, que foi o seu segundo pai. Inclusive, foi quem lhe deu as condições de, aos dezenove anos, procurar meios de vida na capital.

Ele soube fazer-se na vida, apesar dos muitos sacrifícios enfrentados. Assentou parça na Polícia Militar. Concluiu o curso científico. Passou noites em claro. Aos vinte e um anos foi o sexto colocado no vestibular para Administração. O sonho de sua vida. Administrar um negócio próprio. Mas, ao formar-se, prestou concurso público. Aposentou-se como fiscal de rendas.

Resolveu, então, investir em um negócio, enfrentando nova vida, após os sessenta anos. Idade com saúde nunca foi empecilho para trabalhar, para ousar. Entrou no ramo de panificação. Chegou a possuir quatro delas. Uma rede conhecida e respeitada. Depois, uma rede de sorveterias. A melhor da capital.

Atiçado por muitas mulheres ao longo do tempo, o seu coração manteve-se inconquistado. Quantas vozes se ergueram para indagar: “João não namora? Não costuma estar com mulheres? Tem tantas pretendentes... Moças formadas das melhores famílias”. Ele desconversa. Não dava ouvidos. Coração amarrado no passado. Um nó górdio o prendia. Nó jamais desatado.

Pois, enfim, naquela tarde de novembro, a freguesa, conhecida dos tempos idos, deu-lhe um sopro de alento. Os dois, ele e ela, João e Silvinha, mantiveram-se solteiros. Ela também se mudou para a capital e, logo depois, tomou o rumo de Curitiba, onde morava uma tia.

Tornou-se advogada e juíza de direito. Desembargadora. Aposentou-se na compulsória. Voltou para a capital do Estado natal, onde moravam as duas irmãs viúvas. Ao menos, estaria perto da família, passada a desventura do amor impedido.

Dra. Sílvia de Arruda Pinheiro. De volta ao sol nordestino. Fazia um ano que ela tinha regressado. Morava bem pertinho das irmãs, que estavam bem de saúde. Ela, pela mesma forma. As irmãs mantinham a amizade com a amiga de infância, Doriana.

Doriana fez-se o elo entre dois pontos que se perderam nos desvãos da vida. E ali estavam eles, João e Silvinha. Sessenta e dois anos depois, ele aos 81, e ela aos 79 anos. Os pais dela impediram o namoro, iniciado na escola. Uma filha de Durval Pinheiro, o maior fazendeiro de Gravatá e das redondezas, quatro vezes prefeito e duas vezes deputado, andar de namoro com um pé-rapado, um joão-ninguém, que não tinha onde cair morto, carregador de fardos e sacos num armazém? Nem pensar.

Não adiantou choro, nem emagrecimento a olhos vistos, nem mesmo a proposta do avô, “seu” Olívio Pinheiro, que amava por demais a neta Silvinha: “Por que não adjutorar o moço a ter um meio de vida decente, para ver se ele prospera e, daí, casar com a menina?”. Resposta: “Não. Com todo respeito, meu pai. Já fiz isso com um aparentado e deu certo. Mas, com esse aí, não enxergo sinal de que possa prosperar”.

Namoro desfeito, sob pena de surra e sabia-se mais o quê. Tinham sido oito meses de namoro às escondidas. Bilhetes, sorrisos e encontros furtivos. Mas, dois corações balançados um pelo outro, prometendo amor eterno.

Naquela tarde de março, João e Silvinha se reencontraram. Viram-se um ao outro como nos tempos de namoro, em Gravatá. Ele, o rapaz mais bonito que ela já tinha visto. O de olhar mais terno que uma moça poderia conhecer e almejar. Ela, a mesma flor em permanente estado de desabrochamento. Em cada olho azul, uma estrela cintilante.

Era mesmo assim que eles se viam naquela tarde, após seis décadas. Guardaram-se um para o outro. E ali estavam, lacrimejantes. Livres. Ninguém mais a lhes impedir. Teriam dias, semanas, meses, anos, para viver o que não lhes deixaram viver por toda uma vida. Partilharam um sorvete. Misto de morango e amora. Sessenta e dois anos depois...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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