José Lima Santana*
Julho. Sétimo mês do ano, no
calendário gregoriano, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582, substituindo
o calendário juliano implantado por Júlio César em 46 a.C. Tempo houve, em
Sergipe, que o mês de julho era o mais chuvoso do inverno. Há tempos, contudo,
o inverno se tornou a estação do ano mais destrambelhada.
Nem sempre chove, em julho, como em
anos pretéritos. Aliás, o mundo parece estar destrambelhado em muitas
situações. Destrambelhadas também muitas cabeças. Que o diga o escritor e
acadêmico Jorge Carvalho do Nascimento, intelectual que, ultimamente, tem
deixado de prender-se tão somente às amarras do academicismo, onde tem pontuado
com obras referenciais, para ingressar no mundo da ficção. Antes, em crônicas e
contos, com “O Carvalho” (2020), e, agora, na novela “Julho”.
Não sou crítico literário, mas um
mero leitor, diga-se, de sofrível entendimento. Por isso, quero desdiagnosticar
(um desaforado neologismo, talvez) que o novo livro de Jorge Carvalho se situe
no gênero da novela policial. Para mim, não. É bem mais do que isso. Novela
existencial. Ao avesso.
Historicamente, julho é um mês
emblemático. Data magna da Bahia (terra natal de Jorge, embora sergipano desde
criança), dia 2. Data maior dos Estados Unidos, dia 4. Data do início da
Revolta Constitucionalista de São Paulo, dia 9. Queda da Bastilha, na França,
dia 14, aliás, o dia em que o pai de Vera Lúcia, personagem/narradora,
completaria 90 anos. Julho, o mês das tragédias na família: “Apenas três anos
depois da morte da minha mãe, o mês de julho me aprontou outra tragédia” (p.
75).
“Julho” levou-me, inicialmente, como
professor de Direito, a rememorar as aulas de Direito Penal ministradas pela
mestra Jussara Fernandes Leal, em 1978. Levou-me a Tobias Barreto e ao seu
“Menores e Loucos”. Levou-me ao hebreu-italiano Cesare Lombroso e ao seu
“L’Uomo Delinquente”. Levou-me a tantos pensamentos, a tantos devaneios. É no
que dá ser desprovido de maior acuidade, para compreender uma trama bem urdida,
como essa de JCN.
A novela jorgiana começa com uma
pergunta: “Quem matou meu pai?”. E termina com a mesma indagação, acrescida do
artigo definido “o”. O autor penetra na mente esquizofrênica de Vera Lúcia,
para trazer a lume as digressões produzidas pelas anomalias que sobre ela se
abatem.
Mas, nesse penetrar, Jorge Carvalho
não se fixou no ambiente policial, nas perseguições, nas linhas investigativas,
nos entremeios do suspense. Mergulhou em aspectos antropológicos, sociológicos,
psicológicos e psiquiátricos. Nos tormentos de uma mente degradada. Os
assassinatos do pai e da irmã. Uma tragédia digna de Sófocles, como se lê em
Antígona, a filha do rei Édipo, guardadas as diferentes situações. Tragédia
urbana, familiar. Edipiana.
A trama faz-me, sim, evocar a obra
tobiática: “Como é fácil, pois, de compreender, os progressos da psiquiatria,
cultivada por tantos espíritos superiores, principalmente na parte que
designamos por psicologia criminal, são incontestáveis” (Menores e Loucos, in
Estudos de Direito II. Rio de Janeiro: Editora Record/Governo de Sergipe, 1991,
p. 63). Embora a polícia na trama seja incompetente, como rumina Vera Lúcia.
Ela fora tocada por uma noite trevosa,
advinda das profundezas do mar salgado, como cantou Hesíodo? “... os que
nasceram da Terra e do Céu constelado, / os da Noite trevosa, os que o salgado
Mar criou” (Teogonia – A Origem dos Deuses. Trad. Jaa Torrano. 3 ed. São Paulo:
Iluminuras, 1995, p. 111). O mar salgado da saúde mental a desfazer-se.
Apropriando-se da mente da personagem
central, decomposta pela esquizofrenia, o autor não deixa escapar o desenrolar
de fatos importantes da vida brasileira, como a repressão política no tempo do
regime militar. O delegado Benigno Augusto (nome sugestivo!), que investigou os
assassinatos do pai e da irmã de Vera Lúcia, era amigo pessoal do famigerado
delegado paulista Sérgio Fernando Paranhos Fleury (p. 85), um destacado
torturador que no fim da década de 1960 atuava no Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS), em São Paulo, e esteve à frente do grupo paramilitar
conhecido como Esquadrão da Morte.
Preso como homicida e traficante, o
governo correu em seu auxílio, com a edição da “Lei Fleury”, como ficou
conhecida a mudança na legislação processual penal, em 1973, para livrar o
delegado/bandido da prisão. O autor também toca na ferida da questão racial tão
em voga, sempre. Até a Ku Klux Kan está presente (p. 39). E a questão do
armamento das pessoas (p. 55), que por aqui povoa muitas cabeças.
A perversão mental pode acometer
qualquer um ou qualquer uma. Vera Lúcia é orientada por vozes de espíritos. “A
minha sensação é a de ser vítima de uma espécie de espionagem espiritual” (p.
97). Perseguida, como sói ocorrer com os esquizofrênicos, visitada pelo “Capa”,
na clínica onde a internaram.
“Capa” é personagem “real”. Várias
vezes, lá estava ele: “Na Clínica São Thiago, frequentemente eu recebia a
visita do Capa” (p. 95). A mente doentia sendo minada cada vez mais: “É grande
o sofrimento interior. Eu vivo perseguida, sofro ataques mentais, sou torturada
internamente” (p. 97).
Verinha, como a mãe a chamava, jamais
poderia ser comparada à cunhada de Licurgo, que, grávida, mas tendo o marido,
rei, falecido, e o filho no ventre a ser, mais tarde, proclamado rei, propôs ao
cunhado matar o filho: “mataria no ventre o nascituro, com a condição de ser
ela sua esposa e ele rei de Esparta. Licurgo sentiu desprezo por seu caráter”
(Plutarco. Vidas. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 14).
Não se pode fazer tal comparação. A
cunhada de Licurgo não tinha caráter, o poder a seduzia. Vera Lúcia está
inserida na classificação das doenças mentais aprovada pelo V Congresso
Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, de 1946, inserida,
segundo constatação médica, nas Esquizofrenias, que foram avaliadas de três
tipos (Delton Croce e Delton C. Júnior. Manual de Medicina Legal. São Paulo:
Editora Saraiva, 1995, p. 513).
A personagem central de “Julho” gozaria
de “uma psicose endógena, caracterizada essencialmente por um enfraquecimento
psíquico especial, de marcha progressiva, sobrevindo em geral na adolescência,
sem nunca comprometer a saúde física do doente”, como Hélio Gomes descreve as
esquizofrenias (Medicina Legal. 30 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p.
157).
Nesse caso, o professor Henrique
Roxo, citado por Gomes, “sintetiza a sintomatologia dos esquizofrênicos numa
tríade essencial: perda da afetividade, perda da iniciativa e associação extravagante
de ideias” (Op. Cit. p. 158). Essa tríade se nota no desenrolar da trama. Jorge
Carvalho tinha, com “O Carvalho”, fincado um pé na ficção. Agora, com “Julho”,
fincou os dois pés, para não mais sair.
Considero que o novo livro de Jorge
Carvalho atende ao que diz o Abade Dinouart, em “A Arte de Calar”: “O primeiro
grau da sabedoria é saber calar; o segundo, saber falar pouco e moderar-se no
discurso; o terceiro é saber falar muito sem falar mal e sem falar demais”
(Trad. Luís Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 11). O autor
disse o necessário e o disse muito bem.
Finalizo estas parcas notas evocando
Hipócrates, citado por Sêneca, em “Sobre a brevidade da vida”: “A vida é breve,
longa a arte” (Trad. William Li. São Paulo: Nova Alexandria, 1993, p. 25). É
preciso ler “Julho”. Recomendo. Vida longa à arte jorgiana de bem escrever!
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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