sexta-feira, 4 de junho de 2021

SEGREDO DE CONFESSIONÁRIO


  

 

José Lima Santana*

 

 

O padre Toucinho apeou do cavalo ruço. A duras penas. Pesadão, meio alquebrado, puxou a montaria até a direção de uns meninos e pediu que um deles tirasse a sela e soltasse o animal. Enxugou o rosto com um lenço. Tirou o chapéu e dirigiu-se à capela cheia de fiéis.

Um homem calvo, arrastando uma perna veio ao seu encontro. “Boa tarde, padre Gregório. Sua bênção!”. Era Bernardo Guedes, antigo tropeiro, líder da comunidade. “Deus lhe abençoe, meu filho. Tem batizados ou somente a santa missa?”, indagou o padre Gregório Canuto Toucinho de Alencastro e Gueiros, português que veio ao Brasil em 1916, para nunca mais voltar à terra natal. “Portugal é uma maravilha, mas o Brasil é o lugar da minha obra. Daqui não saio”, dizia o velho servidor de Cristo.

Havia, sim, batizados. Cinco deles. Dona Mocinha já tinha preparado tudo nos conformes. Os documentos, as anotações, as espórtulas de quem podia doar e os elementos necessários ao rito sacramental. Batizados após a missa. Uma mocinha queria confessar-se.

Por trás do pequeno presbitério, havia uma minúscula sacristia. Ali, o padre atendia confissões, que eram raras nas comunidades rurais. Confissão atendida, absolvição proferida, penitência dada. O velho padre ficou matutando por uns instantes. O pecado confessado poderia gerar graves consequências.

Segredo de confessionário era indevassável. Mas, ele teria que tomar uma providência antes que a situação se agravasse. “Dai-me tirocínio, Senhor! Dai-me sabedoria e discernimento, para evitar uma tragédia sem quebrar o segredo da confissão!”.

A celebração do santo sacrifício da missa transcorreu o mais acelerado possível. Teria os batizados. O jantar. O pernoite. E a providência a ser tomada quanto ao que foi confessado pela mocinha. Ali estava um padre das antigas, que não media sacrifício para atender as comunidades a si confiadas.

A Paróquia era grande em extensão. Quase mil quilômetros quadrados. Vinte e sete comunidades rurais. A cidade não era grande, nem populosa. A maior parte da população se esparramava pelos povoados. No inverno ou nas trovoadas, o atendimento aos fiéis era drasticamente reduzido. Estradas intransitáveis, riachos transbordantes. O tempo das chuvas era o tempo da riqueza no sertão, mas dificultava o cultivo das almas. “Deus põe e Deus dispõe”, vivia a repetir.

O padre Toucinho quase não comeu. Um pedaço de beiju misturado, massa com tapioca, mergulhado no leite. Um ovo cozido. Meia xícara de café sem açúcar. Dona Mocinha estranhou. O padre era um bom garfo. Estava de fastio. Biqueiro. No alpendre avarandado, tirou um dedo de prosa com dois ou três. Recolheu-se logo depois.

A casa de Bernardo era confortável. Homem de posses. Tinha rompido veredas e picadas nos tempos de tropeiro, conduzindo tropas de burros carregados dos mais diversos materiais e mantimentos. Por algumas vezes, foi atormentado por cangaceiros e volantes. Todos queriam as mesmas coisas: informações, mantimentos e dinheiro.

Informações, mesmo que as tivesse, não as dava. Mantinha a boca fechada. Era o sinal do bom viver naqueles tempos, naqueles confins. Mantimentos, até que ele os arranjava, um pouco. Dinheiro, ele nunca o tinha salvo algum para as compras, mas muito bem escondido, no enchimento de alguma cangalha. “Sou um homem pobre, sofrendo por esses ermos, meu capitão”. Deixavam-no seguir.

Só uma vez, um sargento de nome Aniceto, quis dar nele de pano de sabre, porque queria informação sobre os cangaceiros. “Sou um homem do meu trabalho e da minha casa. Respeitado pelas volantes que topei por aí. Nunca fui maltratado e espero não ser agora. A não ser que o senhor queira se entender com o coronel Afonso Guedes, meu tio”.

O sargento tinha fama de brabo. Pior do que os cangaceiros em suas perversidades. Afonso Guedes era o comandante da Polícia. O sargento sabia que ele era daquelas bandas. Amofinou.

Dormir? O padre demorou muito a conseguir fechar os olhos. Um segredo terrível que ele tinha que guardar. Porém, assim que fosse descoberto, e, por certo, o seria, ele não sabia a tragédia que poderia suceder. Aquele pedaço de chão seria virado e revirado. Mortes. De um pouco tempo para cá, as duas famílias das redondezas, que, no passado, se mataram à vontade, tinham serenado os ânimos. Ele foi o intermediário para a pacificação. Teria que agir novamente.

Todavia, era preciso uma iluminação para evitar o pior. Nem ao senhor bispo ele poderia expor o teor da confissão. Poderia até inventar uma história para ver se sua excelência reverendíssima lhe daria uma luz. O medo era de que o segredo oriundo do pecado confessado viesse à tona o mais rápido possível.

Manhã a prometer sol abrasador. Após um café ligeiro, o padre retornou à cidade. Andava sozinho. “Ando bem acompanhado por três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. Foi matutando pelo caminho. Aqui e acolá, um transeunte lhe cumprimentava e lhe tomava a bênção. Os miolos ferviam. A miséria estava para acontecer. A explosão da violência voltaria às duas famílias. Agora, bem mais ampliada.

O pecado confessado pela mocinha envolvia outras pessoas. Só ela tivera a coragem e a dignidade de confessá-lo. Descoberto o problema, seria um clamor. Ir à capital, consultar o bispo, era o que tinha em mente, embora soubesse que poderia ser tarde demais. A qualquer hora, a garapa azedaria.

Na chegada à cidade, outro problema para resolver, grave, mas, aparentemente, não tanto. O telhado da cúpula da velha igreja ameaçava cair. Uma travessa de madeira estalou e selou na noite anterior. As mulheres que rezavam o terço se assustaram e chamaram o sacristão, que também era carpinteiro. “Serviço feio. Pode desabar a qualquer momento”. Logo cedo, o sacristão e alguns voluntários colocaram umas escoras. Um paliativo. Bem. Que Deus segurasse o telhado da cúpula. Primeiro, seria atinar para o caso que a mocinha depositara no confessionário.

Às dez horas, como de costume, o padre Toucinho fez suas orações. Dobrou os joelhos diante do Santíssimo. Implorou ao Pai. Faria penitência e jejum em favor do sossego naquela comunidade. A situação teria que se arranjar. O diabo andava rondando por ali, levando pessoas a fazerem terríveis travessuras. Tentando-as, fazendo-as cair no precipício de pecados mortais.

Mas, o sangue de Jesus tinha poder. “Senhor Deus, se preciso for, tomai a minha vida, mas fazei que as vidas daquelas pessoas encontrem o caminho da correção, do modo que for possível”. Ofereceu-se em holocausto. Um santo homem.

P.S.: Termino aqui. Afinal, um segredo de confissão não pode ser desvendado. O Direito Canônico não o permite. Eu bem sei da curiosidade dos leitores. Mas, calma! Eu os peguei. Até mais ver.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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