José Lima Santana*
O padre Toucinho apeou do cavalo
ruço. A duras penas. Pesadão, meio alquebrado, puxou a montaria até a direção
de uns meninos e pediu que um deles tirasse a sela e soltasse o animal. Enxugou
o rosto com um lenço. Tirou o chapéu e dirigiu-se à capela cheia de fiéis.
Um homem calvo, arrastando uma perna
veio ao seu encontro. “Boa tarde, padre Gregório. Sua bênção!”. Era Bernardo
Guedes, antigo tropeiro, líder da comunidade. “Deus lhe abençoe, meu filho. Tem
batizados ou somente a santa missa?”, indagou o padre Gregório Canuto Toucinho
de Alencastro e Gueiros, português que veio ao Brasil em 1916, para nunca mais
voltar à terra natal. “Portugal é uma maravilha, mas o Brasil é o lugar da
minha obra. Daqui não saio”, dizia o velho servidor de Cristo.
Havia, sim, batizados. Cinco deles.
Dona Mocinha já tinha preparado tudo nos conformes. Os documentos, as
anotações, as espórtulas de quem podia doar e os elementos necessários ao rito
sacramental. Batizados após a missa. Uma mocinha queria confessar-se.
Por trás do pequeno presbitério,
havia uma minúscula sacristia. Ali, o padre atendia confissões, que eram raras
nas comunidades rurais. Confissão atendida, absolvição proferida, penitência
dada. O velho padre ficou matutando por uns instantes. O pecado confessado poderia
gerar graves consequências.
Segredo de confessionário era
indevassável. Mas, ele teria que tomar uma providência antes que a situação se
agravasse. “Dai-me tirocínio, Senhor! Dai-me sabedoria e discernimento, para
evitar uma tragédia sem quebrar o segredo da confissão!”.
A celebração do santo sacrifício da
missa transcorreu o mais acelerado possível. Teria os batizados. O jantar. O
pernoite. E a providência a ser tomada quanto ao que foi confessado pela
mocinha. Ali estava um padre das antigas, que não media sacrifício para atender
as comunidades a si confiadas.
A Paróquia era grande em extensão.
Quase mil quilômetros quadrados. Vinte e sete comunidades rurais. A cidade não
era grande, nem populosa. A maior parte da população se esparramava pelos
povoados. No inverno ou nas trovoadas, o atendimento aos fiéis era
drasticamente reduzido. Estradas intransitáveis, riachos transbordantes. O
tempo das chuvas era o tempo da riqueza no sertão, mas dificultava o cultivo
das almas. “Deus põe e Deus dispõe”, vivia a repetir.
O padre Toucinho quase não comeu. Um
pedaço de beiju misturado, massa com tapioca, mergulhado no leite. Um ovo
cozido. Meia xícara de café sem açúcar. Dona Mocinha estranhou. O padre era um
bom garfo. Estava de fastio. Biqueiro. No alpendre avarandado, tirou um dedo de
prosa com dois ou três. Recolheu-se logo depois.
A casa de Bernardo era confortável.
Homem de posses. Tinha rompido veredas e picadas nos tempos de tropeiro,
conduzindo tropas de burros carregados dos mais diversos materiais e mantimentos.
Por algumas vezes, foi atormentado por cangaceiros e volantes. Todos queriam as
mesmas coisas: informações, mantimentos e dinheiro.
Informações, mesmo que as tivesse,
não as dava. Mantinha a boca fechada. Era o sinal do bom viver naqueles tempos,
naqueles confins. Mantimentos, até que ele os arranjava, um pouco. Dinheiro,
ele nunca o tinha salvo algum para as compras, mas muito bem escondido, no
enchimento de alguma cangalha. “Sou um homem pobre, sofrendo por esses ermos,
meu capitão”. Deixavam-no seguir.
Só uma vez, um sargento de nome
Aniceto, quis dar nele de pano de sabre, porque queria informação sobre os
cangaceiros. “Sou um homem do meu trabalho e da minha casa. Respeitado pelas
volantes que topei por aí. Nunca fui maltratado e espero não ser agora. A não
ser que o senhor queira se entender com o coronel Afonso Guedes, meu tio”.
O sargento tinha fama de brabo. Pior
do que os cangaceiros em suas perversidades. Afonso Guedes era o comandante da
Polícia. O sargento sabia que ele era daquelas bandas. Amofinou.
Dormir? O padre demorou muito a
conseguir fechar os olhos. Um segredo terrível que ele tinha que guardar.
Porém, assim que fosse descoberto, e, por certo, o seria, ele não sabia a
tragédia que poderia suceder. Aquele pedaço de chão seria virado e revirado.
Mortes. De um pouco tempo para cá, as duas famílias das redondezas, que, no
passado, se mataram à vontade, tinham serenado os ânimos. Ele foi o
intermediário para a pacificação. Teria que agir novamente.
Todavia, era preciso uma iluminação
para evitar o pior. Nem ao senhor bispo ele poderia expor o teor da confissão.
Poderia até inventar uma história para ver se sua excelência reverendíssima lhe
daria uma luz. O medo era de que o segredo oriundo do pecado confessado viesse
à tona o mais rápido possível.
Manhã a prometer sol abrasador. Após
um café ligeiro, o padre retornou à cidade. Andava sozinho. “Ando bem
acompanhado por três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. Foi matutando
pelo caminho. Aqui e acolá, um transeunte lhe cumprimentava e lhe tomava a
bênção. Os miolos ferviam. A miséria estava para acontecer. A explosão da
violência voltaria às duas famílias. Agora, bem mais ampliada.
O pecado confessado pela mocinha
envolvia outras pessoas. Só ela tivera a coragem e a dignidade de confessá-lo.
Descoberto o problema, seria um clamor. Ir à capital, consultar o bispo, era o
que tinha em mente, embora soubesse que poderia ser tarde demais. A qualquer
hora, a garapa azedaria.
Na chegada à cidade, outro problema
para resolver, grave, mas, aparentemente, não tanto. O telhado da cúpula da
velha igreja ameaçava cair. Uma travessa de madeira estalou e selou na noite
anterior. As mulheres que rezavam o terço se assustaram e chamaram o sacristão,
que também era carpinteiro. “Serviço feio. Pode desabar a qualquer momento”.
Logo cedo, o sacristão e alguns voluntários colocaram umas escoras. Um
paliativo. Bem. Que Deus segurasse o telhado da cúpula. Primeiro, seria atinar
para o caso que a mocinha depositara no confessionário.
Às dez horas, como de costume, o
padre Toucinho fez suas orações. Dobrou os joelhos diante do Santíssimo.
Implorou ao Pai. Faria penitência e jejum em favor do sossego naquela
comunidade. A situação teria que se arranjar. O diabo andava rondando por ali,
levando pessoas a fazerem terríveis travessuras. Tentando-as, fazendo-as cair
no precipício de pecados mortais.
Mas, o sangue de Jesus tinha poder.
“Senhor Deus, se preciso for, tomai a minha vida, mas fazei que as vidas
daquelas pessoas encontrem o caminho da correção, do modo que for possível”.
Ofereceu-se em holocausto. Um santo homem.
P.S.: Termino aqui. Afinal, um
segredo de confissão não pode ser desvendado. O Direito Canônico não o permite.
Eu bem sei da curiosidade dos leitores. Mas, calma! Eu os peguei. Até mais ver.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário