sexta-feira, 28 de maio de 2021

UM CORNO PAI D’ÉGUA?


  

 

José Lima Santana*

 

 

Francisco d’Almeida dos Santos Rocha. Esse o nome do capitão. Capitão Chico Rocha, era como o chamavam na intimidade. Capitão, sim senhor. Patente conquistada por tempo de serventia na Marinha Mercante. Comandante de navios pelos mares do mundo. Esteve em países de todos os Continentes. Fluente em línguas.

Transportou milhares de toneladas de mercadorias para lá e para cá. Sobreviveu a procelas e até a um maremoto nas costas da Malásia. Granjeou o respeito dos marujos, seus subalternos. Arrastou a si a admiração de colegas e superiores. Dos navios que comandou, o Dragão do Mar foi o que mais lhe deu gosto. Foram doze anos no seu comando até a aposentadoria em 1959.

No tempo da Grande Guerra não se acovardou em arriscar-se nas travessias do Atlântico. Escapou de submarinos alemães. Mudou rotas. Alcançou portos de forma ilesa. Socorreu navios bombardeados. Viu o sofrimento de marinheiros transidos de frio, alguns em extrema hipotermia. Mortes, ele viu muitas.

Naquele tempo, o navio que ele comandava era o Cisne Voador. Em 1947 transferiu-se para o Dragão do Mar, assim por ele batizado. Uma deferência da Companhia a tão prestimoso capitão.

Em 1961, viúvo, os dois filhos casados morando no Rio de Janeiro, ele voltou para a terra natal, onde tinha duas irmãs. Adquiriu o antigo palacete dos Andrade, uma sólida construção do fim do século XIX, localizado numa chácara. Quando menino, ele admirava o palacete de longas janelas com sacadas.

E não se cansava de contemplar, quando a via, a face luminosa da filha mais nova de “seu” Aderaldo da Silva Montes e Andrade, antigo coronel da Guarda Nacional, talvez o sujeito mais rico da cidade, que nasceu, envelheceu e morreu no palacete. Os netos, insensíveis, se desfizeram do palacete, em 1956.

Falido, o novo proprietário viu o palacete ir a leilão judicial. O capitão Chico Rocha o arrematou por um lance abaixo do valor nominal. Uma aquisição e tanto!

A família do capitão não era desapatacada. O pai, “seu” Francino das Porteiras, fora bem estabelecido no comércio de secos e molhados. Portanto, abastado das patacas. O avô paterno, major Isidoro Afonso dos Santos Rocha esteve em Canudos, combatendo o Conselheiro.

Era homem de tutano nos ossos e pelos nos buracos das ventas. Capaz de beber veneno de cascavel e estalar a língua, para sentir o gosto. A mãe do capitão, dona Cassandra, era da família Dourado d’Almeida, proveniente do recôncavo baiano, mas com ramificações em Minas Gerais e Espírito Santo.

Menino, o capitão gostava de brincar com barcos de papel atirados na água da chuva, que escorria nas valetas. Fazia muitos e os seguia correnteza abaixo até os verem sumir nos bueiros. Era a intuição, a vocação. Acabou comandante de navios e ali estava ele, na terra natal, morando sozinho no palacete que tanto admirava.

Uma senhora de meia idade, dona Rosilda do finado Cândido Farias, cuidava da limpeza do palacete três dias por semana, terças, quintas e sábados. O café da manhã e da noite, ele mesmo o providenciava. O almoço era feito na Pensão Comercial de dona Celina. O mal assado de filé era o prato favorito do capitão, preparado na manteiga de garrafa com cebola roxa e servido com feijão de corda, arroz e farofa de banana. O capitão não dispensava o molho de malagueta. Sobremesa predileta era a cocada baba de moça, de coco verde. Um manjar dos deuses.

As irmãs e sobrinhas o visitavam. À tarde, geralmente, descansava e, por vezes, recebia visitas... À noite, proseava com amigos de infância: Dudé de Valter Pinto, Osmírio sacristão, Felipinho de Américo Fonseca, fazendeiro que introduziu o gado nelore nas redondezas, e, vez ou outra, Paulo Bomfim, o tabelião. Outros acorriam ao bate-papo, especialmente nas noites de segundas-feiras, dia da feira semanal da cidade.

Com o passar do tempo, uma moça de seus vinte e poucos anos passou a frequentar o palacete. Era novata na cidade. Professora do Grupo Escolar. Numa manhã de quarta-feira, feriado, Osmírio sacristão flagrou a professora beijando o capitão, no jardim. Ao sacristão bisbilhoteiro, de vista enfraquecida pela catarata, pareceu um beijo ternuroso. De logo, pensou que o capitão, enfim, estava se atirando para alguém, após seis anos de viuvez.

A notícia se espalhou entre os mais chegados, porém, ninguém tinha coragem de abordar o assunto com o capitão. Esperariam, os amigos, o convite para o especulado casamento. Da moça, os amigos só sabiam que era professora. Nada mais. Outras vezes, a moça seria vista despedindo-se do capitão, no palacete, sempre com um beijo.

Dudé, apelidado Boca de Sapo, tal eram os desvarios por ele criados ou alardeados, ciente, como os demais amigos do capitão, que este estava mesmo de xodó com a moça, deparou-se com ela de braços dados com um rapaz de boa postura, à saída do Grupo Escolar, no fim de uma tarde qualquer.

Alarmou-se. O capitão estava sendo chifrado. A professora deveria estar comendo os cobres do capitão e enganchando-se com outro. Não convinha a um homem tão ilustre, capitão, comandante de navios de grande calado, que driblou até os nazistas nas travessias atlânticas, levar galhas na testa. “O nosso amigo capitão está levando gaia”, disse a dois ou três. Armou-se um Conselho. O “Conselho dos Anciãos”. Quem se atreveria dizer ao capitão que ele era corno? Alguém teria que o fazer.

Depois de muito falatório, coube ao fazendeiro Felipinho dar a nova ao capitão. Cheio de dedos, no colóquio da segunda-feira, o palacete recebendo mais de dez amigos do capitão, todos ávidos para saber a reação dele em face da cornura descoberta, Felipinho, porém, não usou de meias palavras. “Amigo capitão Chico Rocha, sendo você um homem discreto, por isso mesmo, todos nós sempre nos mantivemos também discretos com relação ao assunto do seu relacionamento com a professora do Grupo Escolar. Ocorre que, há poucos dias, ela foi flagrada de braços dados com um rapaz, na saída da escola. Pois então, ela está fazendo o amigo de trouxa”. Sereno, o capitão respondeu: “Era um rapaz de boa estatura e bem apessoado?”. Todos, ansiosos, mexeram-se nas cadeiras. “Era, sim”, respondeu Dudé. “Meus amigos, esse rapaz é o Ferreira, sargento da Polícia que destaca em Morro Azul. Ele vem ver a esposa nos fins de semana, às vezes na sexta, outras vezes no sábado. Ela se chama Constância. Formada na Escola Normal, pretende cursar a faculdade. O seu pai foi meu camarada na Marinha Mercante, um bom imediato. Sou seu padrinho de batismo. Estou a lhe dar aulas de inglês, para o seu sucesso no vestibular”.

Depois da explicação do capitão, todos engoliram um seco. Entreolharam-se sem saber o que dizer. Que fiasco! Mas, o capitão, fidalguia em pessoa, levantou-se e foi servir o habitual licor de jenipapo. Riu de si para si mesmo e pensou: “Corno, eu? Que nada! Só se for um corno pai d’égua”. Os amigos não sabiam quem, de verdade e na surdina, alegrava muitas das tardes do capitão. Se soubessem... Ah, se soubessem!

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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