José Lima Santana*
Correr,
não corro. Corro não, meu amo. Barbaridades eu vi. Onça comendo menino de
descuidosa mãe, a lavar roupa no córrego. Vi. Índio velho, bugre em gruta
entocado, botando demônios para correr. Bugre velho sabido nas coisas sem
compreensão de homens brutos como eu. Sabedoria dos espíritos. Vi.
Boi
marrento, metendo medo em peões, desafiando meio mundo da peonada. Também vi.
Padre Firmino, batina preta, surrada, curando doença muita da caboclada
ribeirinha, nos Morrões do Antero, eu vi. Homens malvados a mando de coronéis
poderosos e sanguinários, vi aos montes. Lutei contra eles. Ferido fui. Perdi
as contas de vezes quantas. Rios de sangue. Carcaças humanas em decomposta
fedentina. Vi.
Andar por
mundos virados e revidados, andei. Fome muita passei. Mão cheia de farinha para
semana de fome. Até cobra comi. Um naco de palmo cabeça abaixo e outro de rabo
acima, retira-se. O resto, tirada a pele, é como peixe. Cuidado só para não
ferir mão e boca com espinhas. Veneno. Mata não. Deixa só engangrujado, Mão ou cara.
Pior de todas, urutu cruzeiro. Bicha desalmada. Criação de Nosso Senhor pode
ser não. Coisa do demo.
Pois,
então, amo meu, corri estradas e veredas. Tempo passei escondido nos sertões.
Noutros sertões. Morte causei. Sujeito rico. Desgraçador de donzelas. Sumiu com
a honra de prima minha, Zelinha da tia Maria Romana. Sem pai e sem irmão que
lhe valessem, fiz-me no mundo e nas armas. Rico também morre.
Deitei
punhal lubrificado com veneno de sapo-ponta-de-flecha. Mortal. Bucho rasguei em
cruz. Vinte ou mais homens no meu encalço. Caí nos sertões. Matei dois ou três.
Matar para não morrer será pecado, meu amo? Acho que não. Lá sei! Nosso Senhor
misericórdia tem. Esperança minha.
Fui a
júri. Sorte minha, sargento primo falecida mãe minha me prendeu. Se jagunçada
fosse, eu morto estaria. Doutor Rábula fez caprichosa defesa. 4 a 3 favor meu.
O outro homem de saia preta recorreu. Ganhei. Disseram que foi primeira vez que
homem rico foi morto e matador se livrou. Sei não. Tempos mudando?
Ruim de
todo sou não. Misérias fiz. Bondades também. Entre abismos e retidões, a meio
caminho eu tô. Madurando. Se não tô em falseado erro, fiz trinta janeiros, mês
passado, mês Senhora Santana, santinha devoção mãe querida minha, que Nosso
Senhor a tenha. Sem mãe, já morta, e sem pai conhecido. Irmãos tive. Morreram
de doenças. Meninos ainda.
Estou só.
Família necessito formar. Mas, como? Vida minha desgraçada. Terei jeito? Amo
meu, de sabedoria livresca, me diga. Terei jeito nessa vida? Querer, eu quero.
Mudança de vida é coisa das vontades. Não sou desprovido de tino. Escola nunca
tive. Nunca. Nunca. Desalfabetizado sou. Como tronco de pau, de baraúna sou.
Bruto, rijo, nem medo de raio eu tenho. Tenho não. Do mundo sei buscar defesa.
Tô vivo.
Amo meu,
brigas nunca criei. Muitas enfrentei por precisas precisões. Se posso, passo ao
largo. Se não posso, não corro. Enfrento. Abençoada hora que amo meu me botou
contrato pra guia. De tudo conheço nestes sertões. De tudo. Se amo quiser, pode
anotar nos cadernos aí, virações triste vida minha. Se prestar pra alguma
coisa. Talvez preste não. Vida doida. Perdida.
Ali
adiante, bifurcação dos Ferreiros. Tempos do imperador, dizem antigos, um
capitão e cinco soldados deram conta de muitos bugres. Homens maus. Matar índio
é perversidade. Índios donos antigos, primeiros, de tudo isso. Bons sentimentos
merecem. Eu mesmo nunca pelejei contra bugres. Respeito por eles tenho em
grande conta.
Para
adiante da bifurcação, seis léguas adentro, fica arraial da Aparecida. Não se
trata da santa dos paulistas. Era uma velha benzedeira. Dizem que se evaporou
numa luta com o diabo. Histórias são muitas nestes sertões. Tem até uma da moça
que virou flor d’água. Perdeu moço bonito pra cobra grande, sucuri. Chorou na
beirada do rio. Um ano inteirinho de choro. Enchente a engoliu. Virou flor. Uns
acreditam, outros não. De nada desacredito. Melhor assim. Corre-se menos
riscos.
Olhe o
céu, amo meu. Sol turvando, perdendo cor. Nuvens fortes estão por vir.
Aguaceiro, na certa. Bifurcação dos Ferreiros tem abrigo. Casa de pouso. Comida
e bebida lá têm. “Seu” Alonso é dono. Preto velho, filho de antigos escravos do
Barão do Alto da Cascata. Barão não quis libertar escravos na Lei da Alforria.
Escravos deram cabo dele.
Carnificina
autoridade mandou fazer. Morreram pra mais de trinta negros. Bugres e negros
sofreram da banda podre da peste, meu amo. Com licença da palavra ruim. ‘Seu”
Alonso feliz com gente passando. Ele faz boa bebida de milho e frutas do mato.
Gosto bom. Quem não tem costume, dizendo besteiras fica. Visões tem. Acostumei.
Comida é
de terreiro, galinha e pato. E do mato. Boas caças. Podemos pernoitar ali.
Deixar chuva passar. Olhe o céu. Vai ser da grossa. Tempo de aguaceiro é. Rios
vão botar cheia. Renovação da vida.
Amo meu,
de pouco conversar. Vejo riscar cadernos. Anota o que pode. E quer. Nomes de
bichos e plantas. Causos. Páginas muitas. Já se vão seis meses nesse batido.
Contrato bom. Só na palavra. Pagamento certo. Por estes sertões de agora,
sobrosso não tenho. Por aqui andei em paz, faz tempo. Porém, se imprevistas
tempestades vierem, não vou correr. Corro não.
Preciso
criar raiz. Como pé-de-pau. Como baraúna. Uma mulher. Família. Terá jeito vida
minha? Vida doida, perdida. D’eu, Nosso Senhor misericórdia tenha.
*Padre, advogado, professor do Departamento de /direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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