domingo, 29 de agosto de 2021

VIDA PERDIDA?


  

 

José Lima Santana*

 

 

Correr, não corro. Corro não, meu amo. Barbaridades eu vi. Onça comendo menino de descuidosa mãe, a lavar roupa no córrego. Vi. Índio velho, bugre em gruta entocado, botando demônios para correr. Bugre velho sabido nas coisas sem compreensão de homens brutos como eu. Sabedoria dos espíritos. Vi.

Boi marrento, metendo medo em peões, desafiando meio mundo da peonada. Também vi. Padre Firmino, batina preta, surrada, curando doença muita da caboclada ribeirinha, nos Morrões do Antero, eu vi. Homens malvados a mando de coronéis poderosos e sanguinários, vi aos montes. Lutei contra eles. Ferido fui. Perdi as contas de vezes quantas. Rios de sangue. Carcaças humanas em decomposta fedentina. Vi.

Andar por mundos virados e revidados, andei. Fome muita passei. Mão cheia de farinha para semana de fome. Até cobra comi. Um naco de palmo cabeça abaixo e outro de rabo acima, retira-se. O resto, tirada a pele, é como peixe. Cuidado só para não ferir mão e boca com espinhas. Veneno. Mata não. Deixa só engangrujado, Mão ou cara. Pior de todas, urutu cruzeiro. Bicha desalmada. Criação de Nosso Senhor pode ser não. Coisa do demo.

Pois, então, amo meu, corri estradas e veredas. Tempo passei escondido nos sertões. Noutros sertões. Morte causei. Sujeito rico. Desgraçador de donzelas. Sumiu com a honra de prima minha, Zelinha da tia Maria Romana. Sem pai e sem irmão que lhe valessem, fiz-me no mundo e nas armas. Rico também morre.

Deitei punhal lubrificado com veneno de sapo-ponta-de-flecha. Mortal. Bucho rasguei em cruz. Vinte ou mais homens no meu encalço. Caí nos sertões. Matei dois ou três. Matar para não morrer será pecado, meu amo? Acho que não. Lá sei! Nosso Senhor misericórdia tem. Esperança minha.

Fui a júri. Sorte minha, sargento primo falecida mãe minha me prendeu. Se jagunçada fosse, eu morto estaria. Doutor Rábula fez caprichosa defesa. 4 a 3 favor meu. O outro homem de saia preta recorreu. Ganhei. Disseram que foi primeira vez que homem rico foi morto e matador se livrou. Sei não. Tempos mudando?

Ruim de todo sou não. Misérias fiz. Bondades também. Entre abismos e retidões, a meio caminho eu tô. Madurando. Se não tô em falseado erro, fiz trinta janeiros, mês passado, mês Senhora Santana, santinha devoção mãe querida minha, que Nosso Senhor a tenha. Sem mãe, já morta, e sem pai conhecido. Irmãos tive. Morreram de doenças. Meninos ainda.

Estou só. Família necessito formar. Mas, como? Vida minha desgraçada. Terei jeito? Amo meu, de sabedoria livresca, me diga. Terei jeito nessa vida? Querer, eu quero. Mudança de vida é coisa das vontades. Não sou desprovido de tino. Escola nunca tive. Nunca. Nunca. Desalfabetizado sou. Como tronco de pau, de baraúna sou. Bruto, rijo, nem medo de raio eu tenho. Tenho não. Do mundo sei buscar defesa. Tô vivo.

Amo meu, brigas nunca criei. Muitas enfrentei por precisas precisões. Se posso, passo ao largo. Se não posso, não corro. Enfrento. Abençoada hora que amo meu me botou contrato pra guia. De tudo conheço nestes sertões. De tudo. Se amo quiser, pode anotar nos cadernos aí, virações triste vida minha. Se prestar pra alguma coisa. Talvez preste não. Vida doida. Perdida.

Ali adiante, bifurcação dos Ferreiros. Tempos do imperador, dizem antigos, um capitão e cinco soldados deram conta de muitos bugres. Homens maus. Matar índio é perversidade. Índios donos antigos, primeiros, de tudo isso. Bons sentimentos merecem. Eu mesmo nunca pelejei contra bugres. Respeito por eles tenho em grande conta.

Para adiante da bifurcação, seis léguas adentro, fica arraial da Aparecida. Não se trata da santa dos paulistas. Era uma velha benzedeira. Dizem que se evaporou numa luta com o diabo. Histórias são muitas nestes sertões. Tem até uma da moça que virou flor d’água. Perdeu moço bonito pra cobra grande, sucuri. Chorou na beirada do rio. Um ano inteirinho de choro. Enchente a engoliu. Virou flor. Uns acreditam, outros não. De nada desacredito. Melhor assim. Corre-se menos riscos.

Olhe o céu, amo meu. Sol turvando, perdendo cor. Nuvens fortes estão por vir. Aguaceiro, na certa. Bifurcação dos Ferreiros tem abrigo. Casa de pouso. Comida e bebida lá têm. “Seu” Alonso é dono. Preto velho, filho de antigos escravos do Barão do Alto da Cascata. Barão não quis libertar escravos na Lei da Alforria. Escravos deram cabo dele.

Carnificina autoridade mandou fazer. Morreram pra mais de trinta negros. Bugres e negros sofreram da banda podre da peste, meu amo. Com licença da palavra ruim. ‘Seu” Alonso feliz com gente passando. Ele faz boa bebida de milho e frutas do mato. Gosto bom. Quem não tem costume, dizendo besteiras fica. Visões tem. Acostumei.

Comida é de terreiro, galinha e pato. E do mato. Boas caças. Podemos pernoitar ali. Deixar chuva passar. Olhe o céu. Vai ser da grossa. Tempo de aguaceiro é. Rios vão botar cheia. Renovação da vida.

Amo meu, de pouco conversar. Vejo riscar cadernos. Anota o que pode. E quer. Nomes de bichos e plantas. Causos. Páginas muitas. Já se vão seis meses nesse batido. Contrato bom. Só na palavra. Pagamento certo. Por estes sertões de agora, sobrosso não tenho. Por aqui andei em paz, faz tempo. Porém, se imprevistas tempestades vierem, não vou correr. Corro não.

Preciso criar raiz. Como pé-de-pau. Como baraúna. Uma mulher. Família. Terá jeito vida minha? Vida doida, perdida. D’eu, Nosso Senhor misericórdia tenha.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de /direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...