domingo, 12 de setembro de 2021

PEDRA AZUL


  

 

José Lima Santana*

 

 

“Descendo ribeira/cruz na mão/vencendo tudo/até fio do cão”. Era a moda de cantoria de Zabelê, primo meu do lado de mãe minha. Franzino qual graveto de tísico arvoredo. No verão de 37, verãozão de seca com cara de herege, nem calango era de conseguir pra assar no espeto. Fome da moléstia! Muita gente bateu caçoleta. Velho e menino, então!

Levas de gente miúda andejou por empoeirados caminhos, como almas em alargadas penitências. No ceuzão azul de cegar, urubus voavam e revoavam, sabedores por atrevido instinto que mais hora, menos hora, um bicho haveria de cair e acabar em seus carnicentos bicos.

Primo Zabelê desceu leito seco rio Comprido, travessou serras e brejos sem pingo d’água. Botou-se pros sertões de Minas e, adepois, pros sertões de Goiás. Bom manejo de armas sempre teve. Deu de meter-se em empreitadas de políticos. De arma na mão, até fio do cão ele cortava.

Mira de revólver ou rifle de papo-amarelo, era com ele mesmo. “Moita que tem preá, pode ter cobra também”. Maneiroso ele era. Parecido com jaguatirica. Dela, partes parecia ter. No faro e na tocaia. Bicho do mato. Embrutecido no Paraíba. Desmiolado no Goiás. Arranchou família, mulher e três filhos na fazenda Pilões. Era dono um senhor major de graça Pedro Lopes, mistura de lacraia com gangurgito. Raça ruim tava ali. Mas, de afeições caiu por Zabelê primo meu.

Filhos Zabelê primo meu eram Manuquinha, 15 anos, Maria Clara, 12 anos, e o mais velho, cara do pai, cagado e cuspido, Vardumiru, 18 anos. Só que era fornido de corpo, não franzino como Zabelê. Puxou pro lado da mãe, Quitéria, família de gente avolumada. Nossa gente amorenada de olho claro, azul ou verde. Dizem mistura de índio com holandês. Disso não dou prova. É dizer do povo. Mas, que holandês andou por nossas bandas, isso lá andou. Botaram eles pra correr, os antigos, muito antigos. Coisa de séculos pra trás.

Pois Vardumiru caiu nas graças da filha do major Pedro Lopes. Mocinha assanhada, endoidecida pra fazer perdição do moço. É que mulher quando destonteia é como formiga que cria asa. Voa longe. A tal voou pros braços de Vardumiru. Deu de embuchar. Major pai dela assuntou e desassuntou.

Filha embuchada por retirante. Desfeita e desonra. Matar Vardumiru e dar chá de espirradeira pra filha desmiolada tomar e tanger fora o bebê em formação. Matar Vardumiru tinha que matar também Zabelê e sua raça. Difícil era não. Jagunçada muita a serviço.

Major, porém, voltou a assuntar e desassuntar. Chamou às falas primo Zabelê. Entendimento fizeram. Vardumiru se arrancharia de genro. Planos major tinha. Primeira filha a meter-se de casamento. Festa graúda fez. Abalou os sertões dos Buritis de Cima e dos Grotões. Burguesia matuta vindo de todo lado. Sorte grande do Vardumiru. Assim parecia.

Nascido neto major Pedro Lopes e Zabelê. Plano major era fazer filha viúva, para novo casamento arranjar. Mulher viúva nos sertões era de melhor aproveitamento do que moça destampada, menino tirado do bucho por força de espirradeira, abortiva planta. Major queria meter Vardumiru perversa empreitada. Matar primo distante seu, desafeto na política, cidade próxima.

Moleque ainda com ceroulas cheirando mijo, feito já 19, era de tirocínio aguçado. Sabia rastejar e andar. Andar e correr, nunca para trás. Gente nossa sempre assim. Dá pulos como cabritos. Desconhece cercas e valados. Espreita de onça e bote de cascavel. Matando desafeto do sogro major, se tal conseguisse dar conta, Vardumiru seria morto jagunçada de lá muita e perversa. Esse plano major coisa ruim.

Vardumiru contou ao pai plano do sogro. Juntos, assuntaram. Deram de arranjar as coisas. Madrugadinha, adepois de uma bebedeira do major com amigos, aniversário da patroa lá dele, Zabelê desarranchou família com nora e neto. A moça não refugou. Compreendeu intenção malvadosa do pai. Sol nascido, longe estavam.

Cabroeira do major deu no encalço. Primo Zabelê tinha reza forte do Padim Ciço do Juazeiro, seu padrinho verdadeiro de pia batismal. Encantaram-se pras vistas da cabroeira. Seguiram rumo sertões adentro. Major Pedro Lopes notícia nunca que teve. Parentes família nossa tinham se espalhado por muitos sertões. Encontro se deu. Estava salva família Zabelê. Boa trincheira encontrou. Primo Terto de Agostinho, homem de brios e patente, acolheu e amoitou.

Tempos correram. Era já 46. Política mudou. Presidente ditador caiu. Ditadores quaisquer caem. Duram não pra sempre. Partido major Pedro Lopes desbancado. Primo dele adversário cobrou caro desavenças passadas. Major arruinado. Deu-se, então, inusitado acontecimento. Vardumiru arranchado em pequena solta de gado, que trabalhador era, viu, fim de tarde, olhos encandearem-se. Luz azul facheando. Turmalina. Preciosa gema. Tamanho descabido. Uma riqueza.

De fugido, a homem de posses muitas. Vardumiru tava rico. Muito rico. Fosse Deus louvado! Êh, mundão que voltas dá! Major Pedro Lopes viu-se desapacatado. Fazenda indo leilão na Justiça. Dívidas no Banco. Primo adversário botando quente pra riba dele, na política. Amigos afastando-se. Cabroeira buscando novos patrões. Ruína.

Domingo. Sol a pino das 11 horas. Carro americano de potente motor desroncou frente casa-grande fazenda major Pedro Lopes. Vardumiru, mulher e quatro filhos. “Seu major, com sua licença, vim amostrar seus netos e sua filha, para tomar bênção. Também peço bênção sua”.

Águas passadas. Major Pedro Lopes conteve não lágrimas. Dona Felismina, sua mulher, teve tonturas de quase desmaio. Família era obra de Deus.

Vardumiru assumiu lugar major Pedro Lopes na política. Tornou-se prefeito e deputado. Cresceu na política. Zabelê primo meu tornou pra Paraíba. Comprou fazenda e botou largo comércio. Tudo arranjo de Vardumiru.

Pedra azul. Turmalina. Preciosa gema.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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