domingo, 24 de outubro de 2021

O PASSAPORTE DA VACINA AMPLIANDO A LIBERDADE


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Apesar de o avanço, significativo, da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, facilitado pela rica capilaridade, proporcionada pelo SUS, acredita-se que, para conter o SARS-CoV-2, é necessária cobertura vacinal superior a 80% da população. Todavia, estima-se que parcela significativa de brasileiro não se vacinou ou não compareceu para receber a segunda dose dos imunizantes que a requerem, graças as ações de negacionistas que, ainda, insistem na disseminação de fake news, para satisfazerem os seus ideais políticos. Na tentativa de coibir tais ações e com o intuito protetor, várias cidades têm exigido o Passaporte da Vacina, ou seja, o comprovante de que o cidadão está adequadamente vacinado, para que o mesmo tenha acesso a diversos locais públicos como bares, restaurantes, shows etc.

Esta atitude tem provocado reações de alguns, que defendem o argumento de que se trata de ato antidemocrático que viola o direito individual de ir e vir. Este assunto foi, recentemente, debatido no prestigiado periódico JAMA Health Forum (doi: 10.1001/jamahealthforum.2021. 3852); segundo o autor, embora o indivíduo adulto tenha o direito de tomar as suas próprias decisões quanto ao cuidado da saúde, ninguém tem o direito de expor outros a uma doença infecciosa potencialmente séria.

Ainda que o indivíduo vacinado possa contrair a enfermidade, o seu poder de transmissão é, significativamente, inferior ao dos não vacinados. Vale lembrar que, na sociedade, os seus integrantes são interconectados e a opção individual pela não vacinação implica em risco, potencialmente evitável, para aqueles com os quais haja interação.

Assim, quanto mais abrangente for a vacinação, mais seguros serão os ambientes da comunidade, sobretudo, se aliada às medidas comprovadamente efetivas de uso de máscara, higiene das mãos e ventilação adequada.

Outro ponto de destaque é a constatação de que, atualmente, a quase totalidade de hospitalizados por essa temível virose, é formada pelos não vacinados, por aqueles que não completaram a imunização e por idosos ou por imunodeprimidos. Para estes últimos e para os demais, com mais de seis meses desde a última dose da vacina, já está disponível a 3ª dose ou reforço do imunizante.

Portanto, a vacina é um Passaporte para a Liberdade, propiciando um retorno mais seguro às atividades comunitárias corriqueiras, que passaram a ter uma grande importância, depois que as perdemos, por imposição do novo coronavírus. Termino, parafraseando o icônico presidente estadunidense, George Washington sobre a vacinação contra a varíola: “Nós devemos temer mais a varíola do que a espada do inimigo”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

JK E SUA ÚNICA DERROTA NAS URNAS

 

José Lima Santana

 

 

Fugindo da minha linha predileta, mas não única, de publicações no Jornal da Cidade, na semana passada, edição do dia 16, eu me referi, no artigo sobre o Nobel de Literatura deste ano, à derrota sofrida na ABL pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. Escrevo, hoje, sobre a sua única derrota nas urnas.

Na década de 1970, JK quis ingressar na Academia Brasileira de Letras. Os militares no poder não gostaram e pressionaram o presidente da entidade, Austregésilo de Athayde, para impor a Juscelino o que seria a sua única derrota eleitoral em toda a vida. A Academia tinha pedido financiamento oficial para construir um edifício ao lado de sua sede, o Petit Trianon, no centro do Rio – em terreno, aliás, doado à ABL no mandato de JK. Se ele fosse eleito, o financiamento não sairia. Era a imposição.

Apesar das pressões, sondagens indicavam que ele poderia ganhar com folga, mas acabou perdendo. Após a derrota, comentaria: “Me venderam por um bloco de cimento”. E anotou em seu diário: “Estou pulverizado por dentro. Pus muita fé na minha eleição. Desejava-a ardentemente, o prestígio que compensasse os imensos dissabores de 1964. [...] Nunca imaginei que a derrota pudesse me ferir tanto”. Dias depois, Athayde convidou JK para um almoço e tentou lhe explicar o que ocorrera. JK não deixou. “Presidente”, cortou ele, “sou entendido em matéria de eleições. Quando se perde, não se deve perguntar por quê” (http://www.projetomemoria.art.br/JK/biografia/5_unica.html).

Discorrendo sobre a derrota de JK, o jornalista Geneton Moraes escreveu: “Aos que nasceram ontem: cassado pelo regime militar, JK amargava uma espécie de exílio interno no Brasil. Era o mais popular dos ex-presidentes. Mas não podia se candidatar a nada. Não havia eleição direta para prefeito de capital, governador de Estado e presidente da República. Os generais se revezavam no Poder.

A eleição de JK para uma vaga na Academia Brasileira de Letras se transformaria, obviamente, num acontecimento político. O discurso de posse seria um ‘acontecimento’. Quando as urnas da Academia foram abertas, no entanto, JK recebeu a pior notícia: tinha sido derrotado pelo escritor goiano Bernardo Élis”

(https://g1.globo.com/.../tag/academia-brasileira-de-letras/).

No mesmo texto, Geneton completou: “Quem terá ‘traído’ o ex-presidente? Jamais se saberá. A eleição é secreta. Os votos viram cinza depois de embebidos em álcool e incinerados numa urna que fica guardada numa sala da Academia. Minha garimpagem rendeu esta revelação: a história completa da derrota de JK traz, ainda, capítulos obscuros. O Caso JK é uma pequena mostra de que a Academia, obviamente, não é infensa ao rol de sentimentos que move a comédia humana: grandezas, miudezas, glórias, fracassos, belezas, vaidades, traições, luzes, sombras, esplendores, escuridão. Aqui há também cintilâncias e apagões. C´est la vie”. Pois sim: é a vida.

Jaime Sautchuk, em publicação de 22/09/2016, teceu comentários sobre a derrota de JK, na ABL. Ele disse que o presidente Ernesto Geisel prometeu “abertura política”, quando de sua posse, mas “havia uma pedra no meio do caminho que precisava ser aniquilada. Chamava-se Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK”. E foi além: “A caça a JK começou com a ação golpista de 1964. Quando deixou a presidência da República, em 1961, ele havia sido eleito senador por Goiás. Logo após o golpe, ele fez um contundente discurso no Senado em favor da democracia e teve seu mandato cassado no mesmo dia, sendo privado de todos os direitos políticos” (https://vermelho.org.br/coluna/com-jk-foi-assim/).

JK foi preso em 1965, após regressar da França, para onde foi em 1964, por conta de ameaças. Interrogaram-no severamente. Processo por corrupção foi aberto contra ele, cabendo à sergipana Maria Rita Soares, primeira juíza federal brasileira, inocentá-lo. Em 1968, com o AI-5, foi preso novamente. Solto, foi aos EUA para tratamento de saúde. Retornou em 1971, para ver a mãe, idosa, morrer em seus braços.

Aspirava, então, “um lugar ao sol”. Em 3 de maio de 1975, foi eleito e assumiu uma cadeira na Academia Mineira de Letras. Em seguida, candidatou-se à ABL, com a mesma ideia de busca por um lugar ao sol, que lhe desse alguma visibilidade, tomada pelos militares.

No livro “O Essencial de JK”, Ronaldo Costa Couto, citado por Jaime Sautchuk, afirmou: “Verdade que JK teve ajuda de vários acadêmicos, como Josué Montello e Jorge Amado. E também de amigos bem relacionados no meio. Um deles, Renato Archer, avisou que a maior dificuldade não seria o concorrente Élis, mas o governo militar. Se Juscelino vencesse, o financiamento para a construção do prédio não sairia.”

Carlos Heitor Cony, então membro da Academia, escreveu o livro “JK e a Ditadura”, em que fala da possibilidade de vitória dele nessa eleição acadêmica. Afirmou: “Havia um clima favorável nos meios intelectuais, que reconheciam a necessidade de uma reparação ao ostracismo e às perseguições que JK vinha sofrendo. Contudo, logo se armou um esquema poderoso, que envolveria informalmente o próprio governo.” Dizem que os ministros Golbery e Ney Braga agiram decisivamente contra JK.

Foram quatro meses de campanha. E chegou, enfim, o dia das eleições, 23 de outubro de 1975. O clima estava acirrado, algo nunca antes vivenciado na Academia. JK e Bernardo souberam do resultado por telefonemas. JK estava na casa de sua filha Maria Estela. Carlos H. Cony conta que ele desligou o telefone, pediu a ela que colocasse uma música no toca-discos e a chamou pra dançar.

JK perdeu no terceiro escrutínio por 20 x 18. Entretanto, no dia da posse, de modo elegante, lá estava JK entre os convidados, com jeito sereno e alegre, que chamou a atenção dos demais. Logo ao chegar, caminhou até onde Bernardo estava e o cumprimentou efusivamente. E foi aplaudido de pé por todos os presentes. Enfim, o prédio foi financiado e construído.

Como autor ou coautor, JK publicou alguns livros, geralmente sobre a sua atuação político-administrativa e, mais de perto, sobre a construção de Brasília: “Por Que Construí Brasília”, “Meu Caminho Para Brasília”, “A Escalada Política”, 50 Anos em 5” etc. No início de 1976 recebeu da União Brasileira de Escritores o troféu Juca Pato, como o intelectual do ano de 1975. Ele morreria a 22 de agosto de 1976 no rumoroso acidente automobilístico na Via Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro. A ABL não o imortalizou, mas a sua própria vida, sim.

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
 

domingo, 10 de outubro de 2021

ORGULHO DE, TAMBÉM, SER UFS


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Foi publicado, recentemente, o prestigiado índice Científico AD (Alper-Doger Scientific Index) 2021, organização independente, que não recebe apoio institucional e que promove o ranking da avaliação individual dos cientistas mais influentes, em 195 países, nas mais diversas áreas de atuação.

Este é o único estudo que mostra os coeficientes de produtividade total e dos últimos cinco anos de pesquisadores, com base nas pontuações dos índices “h” e “i10” e nas citações no Google Escolar.

Ao contrário de outros sistemas, que fornecem avaliações de periódicos e de universidades, o AD Scientific Index faz a classificação baseada no desempenho científico e no valor agregado da produtividade individual dos cientistas, para a comunidade acadêmica.

Vale ressaltar, ainda, que ele incorpora, em sua análise, indicadores qualitativos da investigação e da instituição. O índice h, por exemplo, é determinado por meio do número de artigos citados pelo menos "h'' vezes. Já o índice i10, por sua vez, representa o número de publicações com, no mínimo, 10 citações.

Portanto, para atingir um índice AD alto, não basta, ao pesquisador, ter um grande número de artigos publicados, ele deve, também, ter recebido um grande número de citações. Como são publicadas as listas dos Top 10.000 cientistas, de cada região mundial, é possível obter o ranking acadêmico de cada pesquisador, na sua universidade, no seu país, na sua região e no mundo.

A Universidade Federal de Sergipe (UFS) teve 9 pesquisadores reconhecidos pelo AD Scientific Index 2021, no importante grupo do BRICS, formado pelos países de mercado emergente em relação ao desenvolvimento econômico, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul:

1º- Lucindo José Quintans Júnior (iH 54 - Dep. de Fisiologia);

2º- Roberto Jerônimo dos Santos Silva (iH 53 - Dep. de Educação Física);

3º- André Faro (iH 49 – Dep. de Psicologia);

4º- Roque Pacheco de Almeida (iH 43 – Dep. de Medicina);

5º- Péricles Barreto Alves (iH 42 – Dep. de Química);

6º- Arie Fitzgerald Blank (iH 39 – Dep. de Engenharia Agronômica);

7º- Antônio Carlos Sobral Sousa (iH 36 – Dep. de Medicina);

8º- Amélia Ribeiro de Jesus (iH 36 – Dep. de Medicina) e,

9º- Ricardo Freire (iH 34 – Dep. de Química).

Vale destacar, ainda que, além dos já citados, outros 17 pesquisadores da UFS, também, foram classificados no ranking da América Latina.

Segundo o pró-reitor de pós-graduação e pesquisa da UFS, Lucindo Quintans: “o destaque em um ranking internacional é uma valorização da pesquisa, demonstra que o pesquisador transita na fronteira do conhecimento e que o seu trabalho é lido, é citado e é utilizado como referência. Lembrando, ainda, que a UFS hoje é responsável por 91% de toda a produção científica de Sergipe, nos últimos dez anos”.

Estes indicadores atuam, também, como uma vitrine para a UFS, possibilitando maior visibilidade internacional, facilitando o intercâmbio de pesquisadores e o acesso a financiamentos para as pesquisas. Além de merecer o reconhecimento por órgãos governamentais como MEC, Capes, CNPq e Fapitec, fica a esperança de que, esta conquista, também, sirva de fonte inspiradora para os estudantes da nossa Universidade. Finalizo, parafraseando Henry Adams: “O Professor se liga à eternidade; ele nunca sabe onde cessa sua influência”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 9 de outubro de 2021

DOR DE CORNO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Quero dormir, descansar o corpo, depois de um dia pesado, no trabalho duro que tenho a executar até que Deus possa lembrar deste filho desgarrado e me dê a oportunidade de melhorar de vida, quem sabe, passando no concurso para agente do Fisco estadual, como minha irmã Gracinha.

Preciso livrar-me de uma dor de cabeça desgramada, que me tem atormentado desde trasontontem. Dor miserável, dor infeliz. Dor de corno, não temo em dizer. Gaia não levei, não. Mas, a dor é de corno, sim. Dor de rejeitado, é igual a dor de corno. Isto, na minha opinião de homem rude, mas não tanto.

Posso não ser letrado como meu primo Zé Roberto, que até escreve uns letramentos para o jornal, mas, tenho tino para pensar na vida. Rejeitado. Meus pobres miolos fervem na cachola. Viro-me nesta cama há quase uma hora. O sono não dá mostras de que vai aparecer. Fecho os olhos, e nada! Desgraça, desgraça, desgraça.

Levei um fora. Um fora da mulher que, sem querer, embora eu achava que ela queria, deixou-me entontecido. E, agora, desanimado. Depressivo ainda não. Porém, pelo andar da situação, não há de demorar. Estarei sendo pessimista? Faço-me de um pobre coitado? Dizem que isso é uma forma de defesa. Se for, é a mias ignóbil forma de alguém defender-se. Fazer-se de vítima.

Bem. Posso ser, sim, vítima. De mim mesmo. Pago o preço da tolice de apaixonar-me por quem não devia. E apaixonar-me sem quê, nem pra quê. Sempre desdenhei dos amores ditos platônicos. Amor platônico jamais será amor. É paixão. Paixonite. Não pode haver amor unilateral. Foi nessa unilateralidade que eu cai. De cabeça. Mergulhei até o fundo do poço da paixão.

Rosalina. Eu a conheci numa festa, na casa de tia Dalila. Fomos apresentados. Sorrimos cordialmente. Tolo, achei que o seu sorriso tinha algo a dizer-me: “Por que não?”. Li errado. Errado entendi. Acho que não sou bom nisso, ou seja, em ler sorrisos. Lasquei-me.

Alimentei, por duas semanas, uma esperança que se tornou vã. Passei cinco vezes na loja de brinquedos que ela gerencia. Nada fui comprar. Não tenho filhos, nem mesmo sobrinhos ou afilhados. Minha irmã Gracinha é solteira e parece estar enveredando para o clube das solteironas, ou balzaquianas, como diz mamãe em seu linguajar de décadas. Meus irmãos Pedro e Célio são jovens demais para ter filhos, embora haja muitos garotos fazendo filhos, no escorrego, com mocinhas que ainda deveriam estar brincando de boneca. Força de expressão. Afinal, brincar de bonecas, no mundo dominado pelo virtual, é para meninas do Infantil.

Acendo a luz. Deitei-me há, exata, uma hora e meia. São 23:30. O infeliz do galo querreche da vizinha do lado direito, novata por aqui, antecipa seu canto esganiçado da meia-noite. Maldito! Quem pode dormir com uma dor de corno e um canto desse? O pior é que o maldito arrasta com ele os cantos de outros galos. Racinha unida da desgraça!

A orquestra dos poleiros desperta para entoar uma canção endiabrada. É no que dá morar no subúrbio. Um dia, eu sairei daqui, como espero sair dessa dor de corno, deixando-a, quem sabe, no travesseiro, ao levantar-me com o sol batendo na minha janela. Tomara.

Levanto-me. O corpo dói. Os olhos ardem. Nada de sono. Tateio até a cozinha, no escuro. Não quero acordar ninguém. Bebo um copo d’água. Gosto ruim. De cloro. Que noite! Tateio de volta ao quarto. Olho o relógio. São 02:25. O maldito querreche canta mais uma vez. Já cantou uma quatro ou cinco. Parece cantar de propósito para me atormentar, como se eu já não estivesse num redemoinho tormentoso.

Sorriso falso aquele de Rosalina. Ou falsa foi a minha compreensão. Dei com os burros n’água, para lembrar a expressão que vovô Totonho adora usar, quando algo dá errado. Deu errado para mim. Errado, errado. E aqui estou de cabeça inchada, roendo unha, como diz tia Anália, na verdade, minha tia-avó, a mais sapeca pessoa da família, que nunca teve uma dor de cabeça, que nunca se aflige seja lá com o que for. Oh, criatura de bem com a vida! Oitenta e cinco anos bem vividos, como ela mesma diz. Eu creio.

Ouço passos na rua de chão batido. Quando será que esse prefeito de merda vai calçar essa rua e tantas outras? No ano passado, na campanha eleitoral, prometeu mundos e fundos, para se reeleger. Em quatro anos, pouco fez. Em mais quatro, o que fará? Nada. Os passos que ouvi devem ser de seu Osmar. Vai à solta tirar leite de suas vacas, que pouco dão.

Sou capaz de ter ouvido o chacoalhar da água no vaso de dez litros, que já levam dois ou três de água. A língua ferina de Maria de João Oncinha diz que, um dia, acharam um girino numa garrafa de leite. Água do riacho, que corre perto do curral. A partir dali ele passou a levar a água de casa. Precaução. Eu não fui precavido. Mergulhei de cabeça num olhar que nada me dizia, a não ser na minha atoleimada compreensão. Pago, pois, o preço da minha idiotice.

Ouço o pigarrear do meu pai, como a dizer à minha mãe que está na hora de levantar. Insone, sinto-me cansado, moído. Devem ser umas cinco horas. Afundo a cabeça no travesseiro, como a buscar o último refúgio da noite não dormida. Maldição. Precisava ela dizer de chofre o que me disse, bruscamente? “Infelizmente, não há lugar para você no meu coração”. Frase ensaiada. Ela deve ter ouvido isso numa novela ou nalgum romance barato, desses cujo autor tenta vender seus livros nas mesas de bares, nos fins de semana.

Tomo banho. A fábrica está a esperar-me. Preciso de aulas para passar no concurso. Preciso, mais do que tudo, tirar aquela mulher da cabeça. Ou vou continuar sem dormir por mais algumas noites, ouvindo o canto maldito daquele galo infeliz.

A mesa do café está posta. Bem posta. Assanhamento. Estamos em agosto. Do sítio, papai trouxe milho novo para cuscuz. Adoro cuscuz de milho novo. Corto duas talhadas. Coloco leite, a nata amarela cai sobre o cuscuz. Leite sem água é assim, faz nata grossa. Dois ovos estrelados, de galinha caipira. É tudo do sítio: milho, leite, ovos. Mamãe põe na mesa um prato de carne-de-sol do capeado. Gordura pingando mel. Assada na brasa. O café fumega na xícara. A noite não dormida não consegue tirar-me o apetite.

Ora, um café da manhã desse tipo é capaz de sufocar até dor de corno.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...