domingo, 5 de dezembro de 2021

O COMÍCIO


  

 

José Lima Santana*

 

 

“E eu lá tenho medo de um sujeito mofino, metido a doce de coco, que anda arengando com tudo que é gente de bem, só por causa de um deputadozinho que pretende ser governador? Governador lá pras nêgas dele, bem entendido. Tenho medo não. Nem sei o que é isso. Medo... Ô Zé de Sá Donana, tu tem medo? Tem não? Nem de alma penada, nem de cobra venenosa, nem de boi brabo, nem de praga de véia desdentada? Eu também tenho não”.

Esse falatório todo era de Sabino do finado Zacarias de Teodoro do Marmeleiro Grande. Naquela sexta-feira, ele amanheceu nos azeites. Pudera! Um tal de Afonsinho sabia-se lá das quantas, vindo da capital, andava arrotando lodaças, botando preço em cabos eleitorais, para os levar a votar no deputado Francisco Alencar, de família abastada, que pretendia chegar ao Palácio do Governo, nas próximas eleições, para dali a dez meses.

Esse Afonsinho estava entrando em cama de varas curtas, metendo-se com os cabos eleitorais de Sabino, prefeito de Monte Belo, que era por demais querido pelo povo, dada a sua enorme simplicidade e ajuntamento com os eleitores, sem fazer conta de que era o político mais rico das redondezas, das Timbiras ao Socó de Baixo, da Flor da Índia ao Buraco d’Anta. Se a família Alencar era tida como de altas posses, Sabino batia nela de três por um. Era rico e sem soberba.

O deputado pretenso ocupante do Palácio era da UDN, ao passo que Sabino era do PSD. Adversários de fogo e sangue. Na região, Sabino arrastava um lote de prefeitos, vereadores e cabos eleitorais em todas as eleições. Era por demais querido. E, o que era importantíssimo naquela época, gastador.

Para tanto, tinha meios de sobra. Léguas de terras com gado em fartura e extensas lavouras de algodão, nos tempos em que o algodão era, sim, o ouro branco. Possuía cinco fábricas de descaroçar algodão, uma rede de armazéns de secos e molhados, espalhados por oito cidades, além de uma casa bancária, que atendia clientes de vários municípios.

O tal Afonsinho se espalhou como fogo de morro acima ou água de morro abaixo. Saiu comprando os que não podiam ver uns trocados nas fuças. Porém, dos cabos eleitorais antigos, daqueles chamados de pés-de-bois, nenhum se bandeou. Bandearam-se uns gatos pingados que não juntavam duzentos votos. Ninharia.

“O dinheiro dele fede a coco de cachorro”, disse o velho Belarmino Batista das Cajazeiras, compadre do prefeito Sabino, que com ele labutava na política há mais de trinta anos e, antes, quando jovens, romperam sertões e caatingas em lutas brabas por nacos de terra ensanguentada. Brigas feias do passado.

As eleições foram se aproximando. O candidato a governador, deputado Francisco Alencar, estava conquistando o eleitorado das grandes cidades, que eram poucas. Com um discurso manhoso, mas, cativante, arrebanhava os eleitores mais jovens, profissionais liberais e mulheres, que, na surdina, tinham nele a sua preferência. O voto de cabresto que os maridos mantinham sobre as mulheres estava caindo por terra. O candidato de oposição era um velho político das antigas, mas fiel aos amigos.

Sábado. Um carro de som propalava por toda Monte Belo, cidade do prefeito Sabino, aliado do velho Pompeu, anunciava o grande comício do “candidato da vitória, Francisco Alencar”. À frente e atrás do carro de som, dois outros carros entupidos de capangas, que garantiam o livre trânsito do carro de propaganda. O juiz eleitoral, todavia, tinha garantido o vai-e-vem do carro a dar publicidade do comício.

Na casa do prefeito Sabino, seus amigos imploravam para que ele tomasse uma atitude contra o comício do adversário. Mas, ele se manteve impávido. “Todo mundo tem o direito de fazer sua eleição de forma livre”, dizia. Por dentro, contudo, ele se roía. Tentava achar uma saída. Afastando-se um pouco da roda de amigos, mandou chamar a um canto da casa Amadeu de Zé Fuinha, sujeito de boa voz, locutor do serviço de som da Paróquia Santo Expedito. Com ele conversou uns vinte a trinta minutos. Tudo acertado.

Amadeu de Zé Fuinha bebia como um gambá. Falava bem, mas a caninha na goela dele falava muito mais. Comandava o comitê do candidato da UDN, Francisco Alencar, o vereador Betinho Mochila, primo de Amadeu. Este foi-se oferecer para abrir o comício, que ele fazia muito bem, para quem lhe pagasse mais. Era uma gangorra nos palanques.

Muita gente acorreu ao comício, a maior parte de outras cidades.

A comitiva de Alencar chegou cedo, por volta das 17 horas. Comes e bebes na casa do vereador, que era dono da padaria principal da cidade de Belo Monte. O candidato udenista, que era meio sisudo, tentava sorrir a cada cumprimento de mão. Um sorriso entre dentes, forçado.

Hora do comício. Gente para lá e para cá. Foguetório. Foguetes de papouco e de lágrimas. Mocinhas assanhadas tricotavam nas calçadas próximas. Palanque cheio, improvisado na carroceria de um caminhão. Um sanfoneiro corria os dedos no fole. O terno branco de Francisco Alencar parecia, à luz amarelada da iluminação pública, também meio amarelado. Com certeza, a poeira das estradas.

Amadeu de Zé Fuinha daria início ao falatório, anunciando as presenças dos candidatos e tecendo loas a Alencar, cujo mote de campanha era “Alencar e o povo no palácio”. Esclareça-se que a cidade rival de Monte Belo era Triunfo. Era uma rivalidade acirrada, das bem brabas. Amadeu tinha bebido poucas e boas. Mantinha-se, todavia, ereto como um coqueiro sem tortuosidades.

Ao se ocupar do microfone, Amadeu lascou esta, invertendo os nomes das cidades: “Povo de Monte Belo, eu queria que você aqui estivesse, para ver como é que o povo de Triunfo recebe com festas, vivas e fidalguias o candidato já vitorioso, Dr. Francisco Alencar, como vocês lá de Monte Belo não sabem receber. Viva o povo de Triunfo!”.

Aí deu a gota. Quem era de Monte Belo, claro, sentiu-se ofendido. Praguejou. Xingou Amadeu e Alencar. “Isso é uma desmoralização!”, vociferou Pedro Barbudo, vereador do lado do prefeito Sabino. “Vamos dar uma surra neles todos!”. Era o grito de rebelião de Custódio Três Dedos, cabo reformado da Polícia Militar. Em meia hora, nem sinal de comício. A comitiva de Francisco Alencar sumiu na estrada que dava para a cidade de Triunfo.

Manhãzinha. Amadeu de Zé Fuinha botou no bolso o valor combinado com o prefeito Sabino, na tarde anterior.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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