José Lima Santana*
Acordo, espreguiçando-me. Uma moleza
no corpo...! Viro-me para o outro lado da cama. Há uns restos de sono
prendendo-me os olhos. Não os quero abrir. Afinal, não tenho nada para fazer. É
sábado. Hoje, não trabalho, nem marquei compromisso. Minha mãe já deve ter ido
ao mercado. Detesto feira.
Estou solteiro, livre, leve e solto.
De boas. Enjoei de andar por aí, galinhando. Há tempos, venho querendo tomar
prumo. Farei trintão daqui a dois meses. Formado estou há seis anos. Não sei
por que fui me meter nessa área. Se me esforçasse um pouco mais, no ensino
médio, como agora se diz, eu teria feito direito ou, quem sabe, medicina.
Estaria a caminho da riqueza, como
médico, ou da boa estabilidade financeira, numa carreira jurídica. Mas, embora
empregado, ganhando pouco, ainda poderei dar-me bem, se for aprovado num
concurso federal. Preciso estudar. Fazer um cursinho, desses de última hora, ou
comprar aquelas apostilas horrorosas de banca de revista, nem pensar.
De um ou de ouro jeito, é perder
dinheiro, tempo, e, claro, penar. Vou meter a cara nos livros. Banco Central,
Receita Federal, uma coisa assim. Banco do Brasil ou Caixa Econômica já foram
bons. Agora, não dá mais. Devem ser privatizados hoje ou amanhã. É, como dizem,
a sanha dos neoliberais. Acho que todo mundo é neoliberal. Até minha mãe, que
tem falado umas coisas esquisitas, direitona, mas ainda bate panelas sempre que
ouve um baticum desse tipo.
Viro-me na cama mais uma vez. Acho
que ainda dá para um cochilo. O soninho da manhã. Ainda são sete e meia. Tá cedo.
Os olhos vão se fechando...
Quem bate à porta, uma hora dessas?
“Mãe, é você”? Ai, meu Deus! Só são nove e quarenta. É sábado! Para que
levantar agora? Tá tão bom aqui, no friozinho do ar-condicionado. É no que dá
ser filho único, em casa. Sou ponta de rama. Minha irmã e meu irmão já se
foram. Casaram antes dos trinta. E eu, sobrando. Vou sobrar por algum tempo.
Não tenho pressa. A única que quase
me fisgou foi Rachel. Escapei por pouco. Até que me enrabichei por ela. Mas, eu
só tinha dezoito. Namoramos por cinco anos. O namoro terminou pouco antes de me
formar. Ela me flagrou galinhando com uma vizinha de Martinha, minha irmã.
Perdi uma e não ganhei a outra, que
logo se mudou para Recife e, pelo que fiquei sabendo, está casada com um
milico. De lá para cá, só tem caído na minha rede peixe miúdo. Quero dizer,
ficantes. Uma atrás da outra. Não me ajeito com nenhuma. Não faço seguro de
vida. Estou novo! Trinta, hoje, para um rapaz, é início da mocidade.
Martinha e João Luiz foram
apressados. Estão aí, cada um com dois filhos, matando-se para pagar escola
caríssima. Ela tem o marido, que ganha bem. Juiz. Mas, ele, coitado, vive
arrebentado. Herdou a loja do papai, mas nesse tempo de pandemia, arrebentou-se
todo. A mulher, uma santa mulher, vem dando conta da maior parte das despesas
da família. Médica pediatra.
João Luiz e Célia namoraram desde
pequenos. Um grude. Ele deixou a faculdade de engenharia para se dedicar ao
comércio, após a morte do papai. Loja de material elétrico. Um bom ramo. Mas a
pandemia... Esse vírus miserável entortou todo mundo. Eu mesmo fiquei um tempão
sem beijar na boca. Não dava para arriscar. Talvez nem dê. Porém, a secura leva
a gente para mares de absinto, como diz um amigo meu, metido a poeta. Aliás,
tem muita gente metida a tudo, neste País.
“Já vou, mãe”! Ai, ai, ai, ai, ai!
Lavar o carro da minha mãe. Todo sábado tenho essa penitência. Antes da
pandemia, lavava no posto. Depois, ela não confiou mais. Sobrou para quem? Para
euzinho! Tinha me esquecido desse compromisso, dessa sabatina. Minha mãe viuvou
nova, antes dos cinqüenta. Agora, ela está com sessenta e dois.
Não se interessou por mais ninguém.
Vive a dizer que marido, bastou um. Papai foi um bom marido. E um paizão. Era
mais velho do que ela quase vinte anos. Estava virando solteirão, quando mamãe
floresceu no jardim dele, como ele vivia a dizer e repetir. Papai adorava ler.
Lia todos os poetas do mundo. Morreu na loja, sentado, fechando o caixa do dia.
Quase morremos também. Todos nós.
Mamãe precisou tirar licença-prêmio
do trabalho como professora da rede estadual. Foi, então, que João Luiz,
assumiu a loja, que, na divisão dos bens, ficou para ele. Longe de mim, ser
comerciante. Não tenho tino.
Viro-me na cama, uma última vez.
Georgina, ex-colega da faculdade, deve chegar na terça-feira. Tivemos, há
pouco, uns flertes. Não vou engatar namoro com ela, não. Ela está se jogando. É
um pedação, mas estou de férias. Estou de recesso. Preciso de um tempo para
mim. Estudar. Passar num concurso que valha a pena. Começar a engrenar de
verdade.
Lá pelos quarenta deverei estar
pronto para montar e manter família. Assim como está, a minha vida não está
ruim. Eu, mamãe e Zenaide, a nossa secretária faz-tudo. Zenaide é solteira.
Cinquentona. Vive nos pés do padre. Reza mil terços por dia. Ainda tem
esperança de arranjar um troncho, como ela mesma diz, para se casar. “Mulher,
baixe o facho!”, diz minha mãe, sorrindo.
Onde Zenaide vai arranjar um marido
que aguente os mil terços dela? Vai nada! No segundo ou terceiro terço, ele
pede divórcio. “A não ser que ele seja do terço dos homens”, diz dona Adelaide,
a nossa querida matriarca, ou seja, minha mãe, que acabou de gritar por mim,
mais uma vez. “Já vou”! Já vou nada.
Ainda vou tomar banho. O café tardio
pode esperar um pouco mais. A lavagem do carro pode esperar também. Pensando
nisso, a água está cara. A energia está cara, a gasolina está pela hora da
morte. Tudo está caro. Onde a gente vai parar? Devo engatar namoro sério?
Pensar em casar? Com o que eu ganho? E com essa carestia? Melhor é ficar aqui
com mamãe e Zenaide dos mil terços.
Enfim, boto os pés fora da cama. Faço
que rezo. Abro a cortina de uma das janelas. A claridade quer entrar. Então,
abro a janela. Uau! Na casa de “seu” Abelardo, uma morena debruçada na janela
enfeitiça a manhã, que alta vai. Quem será? A filha que mora no Rio? Deve ser.
Não quero galinhar, mas se essa aí topar uma ida ao shopping ou a um barzinho,
Georgina vai sobrar. Quem é capaz de enfeitiçar a manhã, merece uma chance.
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