sábado, 29 de janeiro de 2022

MANHÃ DE SÁBADO


  

José Lima Santana*

 

 

Acordo, espreguiçando-me. Uma moleza no corpo...! Viro-me para o outro lado da cama. Há uns restos de sono prendendo-me os olhos. Não os quero abrir. Afinal, não tenho nada para fazer. É sábado. Hoje, não trabalho, nem marquei compromisso. Minha mãe já deve ter ido ao mercado. Detesto feira.

Estou solteiro, livre, leve e solto. De boas. Enjoei de andar por aí, galinhando. Há tempos, venho querendo tomar prumo. Farei trintão daqui a dois meses. Formado estou há seis anos. Não sei por que fui me meter nessa área. Se me esforçasse um pouco mais, no ensino médio, como agora se diz, eu teria feito direito ou, quem sabe, medicina.

Estaria a caminho da riqueza, como médico, ou da boa estabilidade financeira, numa carreira jurídica. Mas, embora empregado, ganhando pouco, ainda poderei dar-me bem, se for aprovado num concurso federal. Preciso estudar. Fazer um cursinho, desses de última hora, ou comprar aquelas apostilas horrorosas de banca de revista, nem pensar.

De um ou de ouro jeito, é perder dinheiro, tempo, e, claro, penar. Vou meter a cara nos livros. Banco Central, Receita Federal, uma coisa assim. Banco do Brasil ou Caixa Econômica já foram bons. Agora, não dá mais. Devem ser privatizados hoje ou amanhã. É, como dizem, a sanha dos neoliberais. Acho que todo mundo é neoliberal. Até minha mãe, que tem falado umas coisas esquisitas, direitona, mas ainda bate panelas sempre que ouve um baticum desse tipo.

Viro-me na cama mais uma vez. Acho que ainda dá para um cochilo. O soninho da manhã. Ainda são sete e meia. Tá cedo. Os olhos vão se fechando...

Quem bate à porta, uma hora dessas? “Mãe, é você”? Ai, meu Deus! Só são nove e quarenta. É sábado! Para que levantar agora? Tá tão bom aqui, no friozinho do ar-condicionado. É no que dá ser filho único, em casa. Sou ponta de rama. Minha irmã e meu irmão já se foram. Casaram antes dos trinta. E eu, sobrando. Vou sobrar por algum tempo.

Não tenho pressa. A única que quase me fisgou foi Rachel. Escapei por pouco. Até que me enrabichei por ela. Mas, eu só tinha dezoito. Namoramos por cinco anos. O namoro terminou pouco antes de me formar. Ela me flagrou galinhando com uma vizinha de Martinha, minha irmã.

Perdi uma e não ganhei a outra, que logo se mudou para Recife e, pelo que fiquei sabendo, está casada com um milico. De lá para cá, só tem caído na minha rede peixe miúdo. Quero dizer, ficantes. Uma atrás da outra. Não me ajeito com nenhuma. Não faço seguro de vida. Estou novo! Trinta, hoje, para um rapaz, é início da mocidade.

Martinha e João Luiz foram apressados. Estão aí, cada um com dois filhos, matando-se para pagar escola caríssima. Ela tem o marido, que ganha bem. Juiz. Mas, ele, coitado, vive arrebentado. Herdou a loja do papai, mas nesse tempo de pandemia, arrebentou-se todo. A mulher, uma santa mulher, vem dando conta da maior parte das despesas da família. Médica pediatra.

João Luiz e Célia namoraram desde pequenos. Um grude. Ele deixou a faculdade de engenharia para se dedicar ao comércio, após a morte do papai. Loja de material elétrico. Um bom ramo. Mas a pandemia... Esse vírus miserável entortou todo mundo. Eu mesmo fiquei um tempão sem beijar na boca. Não dava para arriscar. Talvez nem dê. Porém, a secura leva a gente para mares de absinto, como diz um amigo meu, metido a poeta. Aliás, tem muita gente metida a tudo, neste País.

“Já vou, mãe”! Ai, ai, ai, ai, ai! Lavar o carro da minha mãe. Todo sábado tenho essa penitência. Antes da pandemia, lavava no posto. Depois, ela não confiou mais. Sobrou para quem? Para euzinho! Tinha me esquecido desse compromisso, dessa sabatina. Minha mãe viuvou nova, antes dos cinqüenta. Agora, ela está com sessenta e dois.

Não se interessou por mais ninguém. Vive a dizer que marido, bastou um. Papai foi um bom marido. E um paizão. Era mais velho do que ela quase vinte anos. Estava virando solteirão, quando mamãe floresceu no jardim dele, como ele vivia a dizer e repetir. Papai adorava ler. Lia todos os poetas do mundo. Morreu na loja, sentado, fechando o caixa do dia. Quase morremos também. Todos nós.

Mamãe precisou tirar licença-prêmio do trabalho como professora da rede estadual. Foi, então, que João Luiz, assumiu a loja, que, na divisão dos bens, ficou para ele. Longe de mim, ser comerciante. Não tenho tino.

Viro-me na cama, uma última vez. Georgina, ex-colega da faculdade, deve chegar na terça-feira. Tivemos, há pouco, uns flertes. Não vou engatar namoro com ela, não. Ela está se jogando. É um pedação, mas estou de férias. Estou de recesso. Preciso de um tempo para mim. Estudar. Passar num concurso que valha a pena. Começar a engrenar de verdade.

Lá pelos quarenta deverei estar pronto para montar e manter família. Assim como está, a minha vida não está ruim. Eu, mamãe e Zenaide, a nossa secretária faz-tudo. Zenaide é solteira. Cinquentona. Vive nos pés do padre. Reza mil terços por dia. Ainda tem esperança de arranjar um troncho, como ela mesma diz, para se casar. “Mulher, baixe o facho!”, diz minha mãe, sorrindo.

Onde Zenaide vai arranjar um marido que aguente os mil terços dela? Vai nada! No segundo ou terceiro terço, ele pede divórcio. “A não ser que ele seja do terço dos homens”, diz dona Adelaide, a nossa querida matriarca, ou seja, minha mãe, que acabou de gritar por mim, mais uma vez. “Já vou”! Já vou nada.

Ainda vou tomar banho. O café tardio pode esperar um pouco mais. A lavagem do carro pode esperar também. Pensando nisso, a água está cara. A energia está cara, a gasolina está pela hora da morte. Tudo está caro. Onde a gente vai parar? Devo engatar namoro sério? Pensar em casar? Com o que eu ganho? E com essa carestia? Melhor é ficar aqui com mamãe e Zenaide dos mil terços.

Enfim, boto os pés fora da cama. Faço que rezo. Abro a cortina de uma das janelas. A claridade quer entrar. Então, abro a janela. Uau! Na casa de “seu” Abelardo, uma morena debruçada na janela enfeitiça a manhã, que alta vai. Quem será? A filha que mora no Rio? Deve ser. Não quero galinhar, mas se essa aí topar uma ida ao shopping ou a um barzinho, Georgina vai sobrar. Quem é capaz de enfeitiçar a manhã, merece uma chance.

“Vou tomar banho, mãe! Um instantinho só”. Adoro a água fria caindo sobre o meu corpo. Hum.... E aquela morenaça da janela? Água fria, gostosa... Água cara. Aquela morena! Eh, manhã de sábado...!


*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

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