José Lima Santana*
Ibiúna
caiu. Muitos presos. A estudantada calculou mal. Como não chamar a atenção do
governo militar um evento daquela magnitude? Estratégia equivocada, se é que
houve uma. O DOPS não dormia. Os universitários foram presos e enfileirados no
meio de cabras e bodes, como foram fotografados.
Bento
Figueira foi um dos estudantes de Direito preso como comunista. Todos eram
comunistas, na visão caolha das autoridades. Inclusive Dona Lindaura, pobre
mulher interiorana, que só gostava de vestir roupas em que predominava a cor
vermelha, fora advertida por Erundino, oficial de justiça, que quem vestia
aquela cor poderia cair nas mãos do governo, por ser tido como simpatizante de
Moscou. Até isso ocorria naqueles idos da segunda metade dos anos 1960. Brabos
tempos.
Bento
Figueira, depois de solto, retornou ao Estado acobertado de medos. Em cada
esquina, ele via um agente da repressão. Em cada rosto desconhecido, um soldado
disfarçado a seguir seus passos, a rondar os ambientes que ele frequentava e
prestes a prendê-lo mais uma vez. Vivia sobressaltado. Tomava remédios para
controlar-se e para dormir.
Todavia,
ainda era o tesoureiro do Centro Acadêmico, tido e havido como uma célula do
Partidão. A agitação estudantil não cessou após a queda do Congresso em Ibiúna,
interior de São Paulo. Os medos de muitos eram vencidos pela ânsia por
liberdade, pela volta da normalidade democrática.
A turma
de Direito precisava de um mecanismo que permitisse fazer panfletagem. Comprar
um mimeógrafo pelas vias normais era demasiadamente arriscado. A venda daquele
tipo de equipamento deveria ser notificada à corporação militar federal. Não
dava, pois, para arriscar.
O ideal
seria conseguir um comerciante que vendesse clandestinamente. Mas, quem poderia
correr o risco? Foram semanas e mais semanas de procura, à boca miúda. Enfim,
um estudante de Medicina deu a ideia de consultar um tio, dono de movelaria. O
Centro Acadêmico precisava mobiliar a sala que lhe servia de sede.
A
rapaziada tinha juntado um dinheirinho. Com jeito, o presidente e o secretário
foram ter com o comerciante. Acertaram a compra dos poucos móveis: uma mesa,
quatro cadeiras, um pequeno sofá, dos bem baratinhos, e um armário de aço. Por
fora, sem nota fiscal, mas o preço embutido nos móveis, sairia o mimeógrafo.
Faltava
comunicar ao tesoureiro, que era de difícil manejo, ruim de tanger. Cientes que
o tesoureiro era do tipo “pisa em casca de banana, mas não escorrega”,
juntaram-se o presidente, o secretário e mais dois estudantes a fim de
comunicar a trama para comprar o tal mimeógrafo.
Encontraram
Bento Figueira numa rede, lendo A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o
paraibano. Acercaram-se. Ninguém mais em casa. Cheio de dedos, o presidente
comunicou as compras feitas e de como embutiram o mimeógrafo no preço total a
ser pago.
Falaram
da necessidade de ter o equipamento, do quanto o mesmo haveria de servir à
causa democrática, do combate ao regime e assim por diante. Poderiam até cobrar
modicamente de outros Centros para imprimir seus panfletos. Seria um ganho. O
secretário falou com entusiasmo, após o presidente.
Já tinham
algumas matérias para soltar na faculdade, sorrateiramente. Haveriam de agitar
os pátios e as salas de aula. Levantar a massa estudantil. Endoidecer os
opressores. Os outros dois estudantes da comitiva também deram seus palpites.
Tudo estava uma maravilha.
Bento
Figueira ouviu todo o falatório sem pestanejar, como era do seu estilo. Fechou
o livro. Sentou-se na rede. Olhou para o chão. Fitou, um a um, os quatro
companheiros. A tarde era azul, um azulão de doer na vista. E o calor fazia os
cinco sentirem o suor encharcando os corpos.
O
tesoureiro levantou-se. Rodopiou. Colou o dedo indicador da mão esquerda na
ponta do nariz. Quando ele fazia aquilo, não era bom sinal. Olhando com dureza
para os quatro, ele disse, calmamente: “Eu fui preso como comunista, mas não
serei preso como ladrão. Como vou justificar a alteração de preços desses
móveis? Vocês estão doidos”?
Sem
dúvida, o preço do mimeógrafo a tinta era muito elevado e poderia chamar a
atenção dos membros do Conselho Fiscal, especialmente de Rodolfo Bunda Mole,
que era, sim, um bundão, todo metido em miudezas e pedidos de explicações de
tudo e, quase sempre, sem sentido.
Os quatro
ainda tentaram argumentar. De nada adiantou. O tesoureiro não pagaria. Não daquele
jeito. Dois meses depois, encontraram uma forma de comprar o mimeógrafo por
vias subliminares. O dinheiro foi conseguido. Tinha sempre quem aparecia para
dar um adjutório.
Os
panfletos correram as salas de aula, chegaram às ruas. Não demorou muito para
as autoridades policiais começarem a vasculhar. Um vizinho de Rodolfo Bunda
Mole deu-lhe uma prensa. Era policial civil, adido à repressão. Rodolfo não deu
com a língua nos dentes. Segurou a barra. Porém, ele passou a ser vigiado. Os
seus contatos mais frequentes foram bisbilhotados.
Não
demorou muito e a polícia flagrou um estudante, Marcos Gomes, com um maço de
panfletos. Prisão. Uma noite inteira de interrogatório e porradas, mas o
estudante não abriu o bico. O policial insistia em perguntar se ele sabia onde
o geógrafo estava escondido. Nada.
Deixou de
apanhar quando descobriram que ele era sobrinho-neto de um desembargador. Por
volta das onze da noite, o policial cansado das negativas do estudante,
comunicou ao delegado Xisto Muamba: “Doutor, O cabrinha não abre o bico. Diz
que não sabe onde o tal geógrafo está escondido”.
O
delegado quase teve um troço. “Que geógrafo é esse, Belizário? Você
enlouqueceu, homem? Eu quero saber é do mimeógrafo. Mimeógrafo, infeliz”. O
policial voltou à cela. “O delegado quer saber é onde vocês esconderam o
mimeógrafo. Tá ouvindo? O mimeógrafo”!
Marcos
Gomes, sobrinho-neto de desembargador, não titubeou. Choramingando, balbuciou:
“Tá na casa da minha avó”. Ou seja, da irmã do desembargador. Não que ela fosse
comunista. Quase ninguém era. A distinta senhora era apenas avó. E procurava
ajudar ao neto.
*Padre,
advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras,
Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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