domingo, 29 de maio de 2022

MIMEÓGRAFO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Ibiúna caiu. Muitos presos. A estudantada calculou mal. Como não chamar a atenção do governo militar um evento daquela magnitude? Estratégia equivocada, se é que houve uma. O DOPS não dormia. Os universitários foram presos e enfileirados no meio de cabras e bodes, como foram fotografados.

Bento Figueira foi um dos estudantes de Direito preso como comunista. Todos eram comunistas, na visão caolha das autoridades. Inclusive Dona Lindaura, pobre mulher interiorana, que só gostava de vestir roupas em que predominava a cor vermelha, fora advertida por Erundino, oficial de justiça, que quem vestia aquela cor poderia cair nas mãos do governo, por ser tido como simpatizante de Moscou. Até isso ocorria naqueles idos da segunda metade dos anos 1960. Brabos tempos.

Bento Figueira, depois de solto, retornou ao Estado acobertado de medos. Em cada esquina, ele via um agente da repressão. Em cada rosto desconhecido, um soldado disfarçado a seguir seus passos, a rondar os ambientes que ele frequentava e prestes a prendê-lo mais uma vez. Vivia sobressaltado. Tomava remédios para controlar-se e para dormir.

Todavia, ainda era o tesoureiro do Centro Acadêmico, tido e havido como uma célula do Partidão. A agitação estudantil não cessou após a queda do Congresso em Ibiúna, interior de São Paulo. Os medos de muitos eram vencidos pela ânsia por liberdade, pela volta da normalidade democrática.

A turma de Direito precisava de um mecanismo que permitisse fazer panfletagem. Comprar um mimeógrafo pelas vias normais era demasiadamente arriscado. A venda daquele tipo de equipamento deveria ser notificada à corporação militar federal. Não dava, pois, para arriscar.

O ideal seria conseguir um comerciante que vendesse clandestinamente. Mas, quem poderia correr o risco? Foram semanas e mais semanas de procura, à boca miúda. Enfim, um estudante de Medicina deu a ideia de consultar um tio, dono de movelaria. O Centro Acadêmico precisava mobiliar a sala que lhe servia de sede.

A rapaziada tinha juntado um dinheirinho. Com jeito, o presidente e o secretário foram ter com o comerciante. Acertaram a compra dos poucos móveis: uma mesa, quatro cadeiras, um pequeno sofá, dos bem baratinhos, e um armário de aço. Por fora, sem nota fiscal, mas o preço embutido nos móveis, sairia o mimeógrafo.

Faltava comunicar ao tesoureiro, que era de difícil manejo, ruim de tanger. Cientes que o tesoureiro era do tipo “pisa em casca de banana, mas não escorrega”, juntaram-se o presidente, o secretário e mais dois estudantes a fim de comunicar a trama para comprar o tal mimeógrafo.

Encontraram Bento Figueira numa rede, lendo A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o paraibano. Acercaram-se. Ninguém mais em casa. Cheio de dedos, o presidente comunicou as compras feitas e de como embutiram o mimeógrafo no preço total a ser pago.

Falaram da necessidade de ter o equipamento, do quanto o mesmo haveria de servir à causa democrática, do combate ao regime e assim por diante. Poderiam até cobrar modicamente de outros Centros para imprimir seus panfletos. Seria um ganho. O secretário falou com entusiasmo, após o presidente.

Já tinham algumas matérias para soltar na faculdade, sorrateiramente. Haveriam de agitar os pátios e as salas de aula. Levantar a massa estudantil. Endoidecer os opressores. Os outros dois estudantes da comitiva também deram seus palpites. Tudo estava uma maravilha.

Bento Figueira ouviu todo o falatório sem pestanejar, como era do seu estilo. Fechou o livro. Sentou-se na rede. Olhou para o chão. Fitou, um a um, os quatro companheiros. A tarde era azul, um azulão de doer na vista. E o calor fazia os cinco sentirem o suor encharcando os corpos.

O tesoureiro levantou-se. Rodopiou. Colou o dedo indicador da mão esquerda na ponta do nariz. Quando ele fazia aquilo, não era bom sinal. Olhando com dureza para os quatro, ele disse, calmamente: “Eu fui preso como comunista, mas não serei preso como ladrão. Como vou justificar a alteração de preços desses móveis? Vocês estão doidos”?

Sem dúvida, o preço do mimeógrafo a tinta era muito elevado e poderia chamar a atenção dos membros do Conselho Fiscal, especialmente de Rodolfo Bunda Mole, que era, sim, um bundão, todo metido em miudezas e pedidos de explicações de tudo e, quase sempre, sem sentido.

Os quatro ainda tentaram argumentar. De nada adiantou. O tesoureiro não pagaria. Não daquele jeito. Dois meses depois, encontraram uma forma de comprar o mimeógrafo por vias subliminares. O dinheiro foi conseguido. Tinha sempre quem aparecia para dar um adjutório.

Os panfletos correram as salas de aula, chegaram às ruas. Não demorou muito para as autoridades policiais começarem a vasculhar. Um vizinho de Rodolfo Bunda Mole deu-lhe uma prensa. Era policial civil, adido à repressão. Rodolfo não deu com a língua nos dentes. Segurou a barra. Porém, ele passou a ser vigiado. Os seus contatos mais frequentes foram bisbilhotados.

Não demorou muito e a polícia flagrou um estudante, Marcos Gomes, com um maço de panfletos. Prisão. Uma noite inteira de interrogatório e porradas, mas o estudante não abriu o bico. O policial insistia em perguntar se ele sabia onde o geógrafo estava escondido. Nada.

Deixou de apanhar quando descobriram que ele era sobrinho-neto de um desembargador. Por volta das onze da noite, o policial cansado das negativas do estudante, comunicou ao delegado Xisto Muamba: “Doutor, O cabrinha não abre o bico. Diz que não sabe onde o tal geógrafo está escondido”.

O delegado quase teve um troço. “Que geógrafo é esse, Belizário? Você enlouqueceu, homem? Eu quero saber é do mimeógrafo. Mimeógrafo, infeliz”. O policial voltou à cela. “O delegado quer saber é onde vocês esconderam o mimeógrafo. Tá ouvindo? O mimeógrafo”!

Marcos Gomes, sobrinho-neto de desembargador, não titubeou. Choramingando, balbuciou: “Tá na casa da minha avó”. Ou seja, da irmã do desembargador. Não que ela fosse comunista. Quase ninguém era. A distinta senhora era apenas avó. E procurava ajudar ao neto.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.  

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