domingo, 18 de setembro de 2022

FILHO DE PUTA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Deu briga. Briga feia. Morro dos Gatos amanheceu em polvorosa. Zé Maninho, cabo do destacamento local, botou de prontidão os dois soldados com os quais contava no quartel em pedaços. Nem a grade do xadrez tinha serventia. Estava sem cadeado, amarrada com um arame há mais de dois anos. A missanga de cima estava roída pela ferrugem. Não dava para guardar um preso, sem vigia de dia e de noite.

O governo estava às moscas. O governador vivia de viagem em viagem, curtindo a vida de safado com raparigas. A esposa, diziam, na capital, uma santa, tinha acabado de se mudar para a casa dos pais, com os três filhos, no Estado vizinho. Botaram no governo um “meninote” de trinta e poucos anos, de família abastada, raparigueiro desde sempre. Coisas da vida política nordestina.

As estradas encontravam-se em petição de miséria, após chuvas alarmantes, dantes nunca vistas por ali. Os poucos hospitais públicos viviam superlotados. Médicos e enfermeiras abandonavam seus postos por não ter como cuidar dos doentes. Salários atrasados. A segurança pública estava quase entregue a dois grupos de justiceiros, pagos por fazendeiros e comerciantes das principais cidades. Um horror!

Em Morro dos Gatos até que tudo vinha saindo a contento. Lugarzinho pacato, vila há pouco constituída, separada de Tição Aceso, até que Fernandinho Ferreira, filho do intendente, deu com a língua nos dentes, no bar Risca Faca, de João Joelho de Porco, dando conta que Bernardes de Engrácia era filho de puta, trazido para ser criado pelo pai, Marcão de Sá Toinha, porque a mulher, Dona Engrácia, não podia ter filhos. O útero dela era destrambelhado.

Mas, na vila todo mundo pensava que o rapaz era mesmo filho do casal. Era não. O segredo de Marcão e sua esposa acabou sendo descoberto por Marilda de Zezito Pinto, lavadeira da família desde que o menino nasceu, na fazenda dos pais de Dona Engrácia, segundo o casal apregoava.

Marilda sabia de tudo, tin-tin por tin-tin. A lavadeira soltou o que não devia a Dona Hortência, mãe de Fernandinho Ferreira e esposa de Pedro Ferreira, o intendente. Ora, saber que Bernardes era ou não filho do casal parecia coisa de menor importância. Porém, alardear que era filho de puta, já criava um calo no fundo do coração do rapaz, que estava de noivado acertado com Cristina Maria de Paulo Tinteiro, fazendeirão da terra dos Tinteiro, que se estendia pelo Lagamar, Brejão das Nêgas e Fulô da Inocência, lugarejos onde bois pareciam nascer em cada rama de capim-sempre-verde. Aliás, gente de finura de salão e de enfrentar revoluções, como as que aconteceram em 1906 e 1922.

Sabendo-se, pois, que a filha se casaria com um filho de puta, podia ser o desfazimento do noivado, por determinação dos pais de Cristina Maria, caidinha dos quatro pneus pelo novel filho de puta. A paz em Morro dos Gatos estava quebrada. Marcão e o filho Bernardes, ao tomarem conhecimento da falação de Fernandinho Ferreira, a despeito de ser ele filho do intendente local, tomaram de armas de grosso e de fino calibre.

Dariam conta do falador, custasse o que custasse. Não deixariam por menos. Peixoto Cabaré, jagunço das antigas e sempre a serviço de Marcão, para o que desse e viesse, amolou uma faca luminosa, para capar Fernandinho. Cortaria os quibas do rapaz e os daria para o cachorro comer.

Para Bernardes, só a morte de Fernandinho lavaria a sua honra, daquele jeito maculada. Dizer que ele era filho de puta! “Então, mãinha é puta? Só um tiro no meio do quengo daquele cachorro gué do rabo fino pode reparar a minha honra e de mãinha”. Fervura nas alturas.

Marcão ajuntou mais uns seis ou sete capangas. A guerra estava prestes a começar. Sim, porque, do outro lado, o intendente, ao ser informado dos acontecimentos, ou do que estava para acontecer, chamou Fernandinho às falas. “É verdade o que você disse, que o filho de Marcão é filho de puta”? Pois não era?

A lavadeira Miralda dera todo o serviço, deitando falação sobre o que sabia, tin-tin por tin-tin. Era verdade, sim. Dona Engrácia não podia ter filhos. Então, Marcão botou-se para Pata da Onça e arranjou um menino, recém-nascido, saído do bucho de Purezinha Boca de Mel, rapariga de porta aberta, que tinha acabado de parir, sabia Deus de quem. Marcão fez-lhe o favor de tomar a si o zelo pelo bebê e, ainda por cima, gratificou Purezinha com uma nota de cem mil réis. Registrou o menino como sendo seu filho e de Dona Engrácia.

Era a mais pura verdade. Tudo apurado, o intendente Pedro Ferreira não se fez de rogado: juntou uma cabroeira que lhe servia nas três fazendas de gado e na fábrica de descaroçar algodão, uns dez homens, e esperou a hora da carnificina. “Se o rapaz é mesmo filho de puta, Dona Engrácia o criou como seu filho, ele foi registrado como filho dela e de Marcão, e é isso que importa. O mais importante é criar, e não parir”, disse Pedro Ferreira aos seus apaniguados. Porém, se Marcão e Bernardes queriam guerra, guerra eles teriam.

Foi assim que o cabo Zé Maninho ficou sabendo de tudo, naquela manhã. O que ele e os dois soldados poderiam fazer, no meio daquela gente toda em desalinho, em pé de guerra? Só uma providência do céu poderia atalhar a mortandade que se anunciava.

Num átimo, o cabo teve uma ideia. Mandou, a toda, que o soldado Faísca rumasse para Pata da Onça e desse cobro de Purezinha, se viva fosse. Trouxesse-a o mais depressa possível. A distância era pequena. Cavalo ligeiro, chispou o soldado Faísca. O chão duro de verão faiscou sob as patas do cavalo do soldado.

Por volta do meio-dia, o soldado Faísca aportou ao quartel com Purezinha numa carroça de burro, alquebrada, moribunda, uma tosse seca a sacudir-lhe os bofes. Enquanto isso, nenhum morto no embate entre as duas famílias, mas alguns feridos a bala. A vila estava em fervura de café na chaleira.

Purezinha confirmou ser a mãe de Bernardes. E propôs: “Se eu morrer, ele deixa de ser filho de puta, porque deixa de ter a mãe natural”. Disse isso e, logo depois, bateu a caçoleta. Tuberculose em alta. Pronto. Bernardes era, agora, filho somente de Dona Engrácia.

O cabo levou aos dois lados a notícia da morte de Purezinha. Trégua “assinada” na ponta da palavra. O cabo Zé Maninho foi saudado como um verdadeiro diplomata. Toda a vila o reverenciou. Pedro Ferreira e Marcão deram as mãos. Fernandinho e Bernardes mal se olharam. Sempre foram como cão e gato. Jovens ricos a disputarem o mesmo quadrado.

No dia seguinte, em conversa com um amigo, Fernandinho disse: “Mesmo Purezinha morta, Bernardes continua sendo filho de puta”. Nova confusão à vista...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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