José Lima Santana*
Brocar
vou não, sinhô. Não aprendi a andar de marcha à ré. Carro não sou. Só meto pé
na estrada pra seguir em frente, cruzando veredas e caminhos. Se rio tá cheio,
espero baixar. Se o demo faz presepada no meio de redemunho, corto caminho, que
tento não tenho não pra me defrontar com o tinhoso.
Meu saber
é, de longe, muito curto. Valdevino, tio meu de muito viver e muito pelejar,
botava tino de dar a cara pro zambeta. De muitas treitas ele saiu, rodeando um
magote de diabos, cruz de caravaca na mão direita e espada de São Jorge na
esquerda. Espíritos daninhos deram com ele ao chão, mas tio meu era abençoado,
tinha grande proteção lá do alto. Os de baixo com ele não podiam. Roncavam como
bois zebus cavando formigueiro com afiados chifres, mas explodiam no ar com
fedor de enxofre empesteando o mundo.
Quanto a
mim, esse poder tenho não. Todavia, vou vivendo de bom viver, sem medo de bicho
ou gente. Tenho cá de meu, cisma com coisa do além. Só cisma. Por puro
desgosto. Por sobrosso, não.
Estou
indo em passo maneiro, bem montado. Pedra Azul é destino meu. Vou em paz, que
de paz eu sou. Brigas, gosto não. Brigar nem com formiga cortadeira. Ela que
corte! Não cortando roça minha, tá no direito dela de também viver. Tudo é
criatura de Deus, nosso soberano, assim diz mãe minha, senhora de muito
silêncio, mas de palavras certeiras. Curtas, porém.
Ainda
mais curtas, palavras de pai meu. Curtas, mas acesas como brasas sem cinzas.
Pai meu, vem dos antigos Santos Lima do Baixó, herdade dos tempos da Colônia,
bem que dantes do Império. Gentes de posses muitas, no passado. Hoje, minguadas
posses, porém, de ninguém morrer de fome ou no servilismo sob gritaria de algum
grã-fino da cidade.
Pedra
Azul tem uns grã-finos de titica. Dos ricos dali, talvez nenhum se salve, a não
ser, no entendimento deles, João Pescocinho e Tertuliano de Curvelinho do Pau
D’Arco, metidos em latomias de igreja, xeretando a batina do padre Alonso
Medeiros, das antigas, brabo que nem cascavel. Dia desses, enfrentou Lampião,
sem piscar um olho. Padre Alonso pisca não. Não é desses modernosos que piscam
ao ver uma barata, inofensivo bichinho, comedor de restos.
E pra ter
salvação é preciso viver grudado em batina de padre? É? Né não! Nosso Senhor
quer muito mais da gente. Mãe minha diz, em seus poucos dizeres, que Jesus
Cristo deu de andar por este mundo de perdição pra abrir as ventas e as oiças
das pessoas. Abrir o coração. Tem gente igrejeira que tem coração fechado como
caramujo. Tem salvação? Só Jesus sabe. Ele sabe.
Pai meu
pediu pra comprar arreios em “seu” Joventino, maior mestre de bater sola destes
rincões. Seleiro sem igual. Vem gente de mil e um cantos pra fazer encomendas
de sela e arreio. Dois filhos de “seu” Joventino arribaram pro Sul. Não deram
fiança de seguir o prumo do pai.
Quem se
meteu em aprendiz de selaria foi Cotinha, caçula do seleiro e de Dona Maria
Pia, coitada, que bateu as botas há mês e dias, picada por uma jararaca. A
maldita tava escondida numa touceira de bananeira, na beira do córrego que
atravessa o sítio da família.
Tristeza
em Pedra Azul. Dona Maria Pia era mulher de trato e respeito. Querida de todos,
devota do Menino Jesus, sem precisar beijar mão de padre. Mulher mais que
distinta. Muita gente chorou na sentinela. E no enterro também. “Seu”
Joventino, duro na peleja, segurou lágrimas, não. Também, perdeu um cabedal.
A dona da
casa agora é Cotinha. Boa de corpo, sardentazinha, mas de rosto delicado. Moça
de aflorado aprumo. Bem adiantada no aprendizado de fazer sela e arreio. Taí
uma moça que pode fazer bem a um homem que dela se enrabiche. Eu mesmo sempre
tive por ela bons olhos e melhores pensamentos. Não me incomodo de fazer dela
minha companheira, até morando com “seu” Joventino, que dela vai ser precisado
cada vez mais, no enlarguecer dos anos. Mudar pra Pedra Azul não há de custar
nada.
No
caminho, na forcada dos Araçás, dei de cara com Janjão Boca de Sapo. Dele não
gosto. Não é por nada não. É que ele é falador demais da conta. Boca grande.
Metido a mexericar a vida alheia. Sou educado, quando posso. Dou-lhe “bons
dias”. Sigo em frente. Ele tenta puxar conversa. Faço que não ouço.
De vez em
quando é bom ser surdo. As conveniências pedem. Se eu fosse de arruaça, já teria
dado uma surra de cipó caboclo naquele tipo. Deu de falar de Cotinha. “Uma moça
metida em fazer sela precisa é de um macho taludo”, ele disse na bodega de
Otelo de Chico de Bernadete. Um despropósito! Moça distinta, Cotinha. Ouvir, eu
não ouvi ele dizer essa asneira. Soube por primo meu, Zelito de tia Margarida.
Ainda bem. Ainda bem.
A casa de
“seu” Joventino está logo ali, na entrada da Rua do Melão. Casa avarandada. De
quatro águas. Terreiro limpo, cheio de fulôres. Dona Maria Pia zelava pelo
jardinzinho. Agora, Cotinha é quem zela. Lá tá ela, acocorada, mexendo na
terra, nalguma planta. Fulô no meio de tantas fulôres.
Janjão
Boca de Sapo ainda há de levar uma sova. De cipó caboclo ou de rabo de teiú. De
briga, sou não. Mas, Cotinha é favo de mel a não poder estar em suja boca.
Sorrateiro, nas manhas, dela me aprochego. De algodão, boa colheita eu tenho.
Dá pra casar. Cotinha se levanta. Boas ancas. Na medida pra ter muitos filhos.
“Bom dia Dona Cotinha”. Ela mal responde. Encolhe-se. É bem mais bonita que um
botão de rosa se abrindo. Fulô de brejo, viçosa. Peito meu bate que nem
zabumba.
*Padre, advogado, professor do Departamento de
Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da
Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da
Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe.
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