domingo, 25 de setembro de 2022

FULÔ ENTRE FULORES


  

 

José Lima Santana*

 

 

Brocar vou não, sinhô. Não aprendi a andar de marcha à ré. Carro não sou. Só meto pé na estrada pra seguir em frente, cruzando veredas e caminhos. Se rio tá cheio, espero baixar. Se o demo faz presepada no meio de redemunho, corto caminho, que tento não tenho não pra me defrontar com o tinhoso.

Meu saber é, de longe, muito curto. Valdevino, tio meu de muito viver e muito pelejar, botava tino de dar a cara pro zambeta. De muitas treitas ele saiu, rodeando um magote de diabos, cruz de caravaca na mão direita e espada de São Jorge na esquerda. Espíritos daninhos deram com ele ao chão, mas tio meu era abençoado, tinha grande proteção lá do alto. Os de baixo com ele não podiam. Roncavam como bois zebus cavando formigueiro com afiados chifres, mas explodiam no ar com fedor de enxofre empesteando o mundo.

Quanto a mim, esse poder tenho não. Todavia, vou vivendo de bom viver, sem medo de bicho ou gente. Tenho cá de meu, cisma com coisa do além. Só cisma. Por puro desgosto. Por sobrosso, não.

Estou indo em passo maneiro, bem montado. Pedra Azul é destino meu. Vou em paz, que de paz eu sou. Brigas, gosto não. Brigar nem com formiga cortadeira. Ela que corte! Não cortando roça minha, tá no direito dela de também viver. Tudo é criatura de Deus, nosso soberano, assim diz mãe minha, senhora de muito silêncio, mas de palavras certeiras. Curtas, porém.

Ainda mais curtas, palavras de pai meu. Curtas, mas acesas como brasas sem cinzas. Pai meu, vem dos antigos Santos Lima do Baixó, herdade dos tempos da Colônia, bem que dantes do Império. Gentes de posses muitas, no passado. Hoje, minguadas posses, porém, de ninguém morrer de fome ou no servilismo sob gritaria de algum grã-fino da cidade.

Pedra Azul tem uns grã-finos de titica. Dos ricos dali, talvez nenhum se salve, a não ser, no entendimento deles, João Pescocinho e Tertuliano de Curvelinho do Pau D’Arco, metidos em latomias de igreja, xeretando a batina do padre Alonso Medeiros, das antigas, brabo que nem cascavel. Dia desses, enfrentou Lampião, sem piscar um olho. Padre Alonso pisca não. Não é desses modernosos que piscam ao ver uma barata, inofensivo bichinho, comedor de restos.

E pra ter salvação é preciso viver grudado em batina de padre? É? Né não! Nosso Senhor quer muito mais da gente. Mãe minha diz, em seus poucos dizeres, que Jesus Cristo deu de andar por este mundo de perdição pra abrir as ventas e as oiças das pessoas. Abrir o coração. Tem gente igrejeira que tem coração fechado como caramujo. Tem salvação? Só Jesus sabe. Ele sabe.

Pai meu pediu pra comprar arreios em “seu” Joventino, maior mestre de bater sola destes rincões. Seleiro sem igual. Vem gente de mil e um cantos pra fazer encomendas de sela e arreio. Dois filhos de “seu” Joventino arribaram pro Sul. Não deram fiança de seguir o prumo do pai.

Quem se meteu em aprendiz de selaria foi Cotinha, caçula do seleiro e de Dona Maria Pia, coitada, que bateu as botas há mês e dias, picada por uma jararaca. A maldita tava escondida numa touceira de bananeira, na beira do córrego que atravessa o sítio da família.

Tristeza em Pedra Azul. Dona Maria Pia era mulher de trato e respeito. Querida de todos, devota do Menino Jesus, sem precisar beijar mão de padre. Mulher mais que distinta. Muita gente chorou na sentinela. E no enterro também. “Seu” Joventino, duro na peleja, segurou lágrimas, não. Também, perdeu um cabedal.

A dona da casa agora é Cotinha. Boa de corpo, sardentazinha, mas de rosto delicado. Moça de aflorado aprumo. Bem adiantada no aprendizado de fazer sela e arreio. Taí uma moça que pode fazer bem a um homem que dela se enrabiche. Eu mesmo sempre tive por ela bons olhos e melhores pensamentos. Não me incomodo de fazer dela minha companheira, até morando com “seu” Joventino, que dela vai ser precisado cada vez mais, no enlarguecer dos anos. Mudar pra Pedra Azul não há de custar nada.

No caminho, na forcada dos Araçás, dei de cara com Janjão Boca de Sapo. Dele não gosto. Não é por nada não. É que ele é falador demais da conta. Boca grande. Metido a mexericar a vida alheia. Sou educado, quando posso. Dou-lhe “bons dias”. Sigo em frente. Ele tenta puxar conversa. Faço que não ouço.

De vez em quando é bom ser surdo. As conveniências pedem. Se eu fosse de arruaça, já teria dado uma surra de cipó caboclo naquele tipo. Deu de falar de Cotinha. “Uma moça metida em fazer sela precisa é de um macho taludo”, ele disse na bodega de Otelo de Chico de Bernadete. Um despropósito! Moça distinta, Cotinha. Ouvir, eu não ouvi ele dizer essa asneira. Soube por primo meu, Zelito de tia Margarida. Ainda bem. Ainda bem.

A casa de “seu” Joventino está logo ali, na entrada da Rua do Melão. Casa avarandada. De quatro águas. Terreiro limpo, cheio de fulôres. Dona Maria Pia zelava pelo jardinzinho. Agora, Cotinha é quem zela. Lá tá ela, acocorada, mexendo na terra, nalguma planta. Fulô no meio de tantas fulôres.

Janjão Boca de Sapo ainda há de levar uma sova. De cipó caboclo ou de rabo de teiú. De briga, sou não. Mas, Cotinha é favo de mel a não poder estar em suja boca. Sorrateiro, nas manhas, dela me aprochego. De algodão, boa colheita eu tenho. Dá pra casar. Cotinha se levanta. Boas ancas. Na medida pra ter muitos filhos. “Bom dia Dona Cotinha”. Ela mal responde. Encolhe-se. É bem mais bonita que um botão de rosa se abrindo. Fulô de brejo, viçosa. Peito meu bate que nem zabumba.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...