domingo, 30 de outubro de 2022

MIOCARDITE NA COVID-19: O VIRUS É O GRANDE VILÃO


 


 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Miocardite é uma doença inflamatória que acomete o músculo cardíaco, denominado miocárdio. De acordo com um artigo de revisão, publicado no icônico periódico, New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMra2114478), sua incidência global variava de 1 a 10 casos em cem mil pessoas por ano, antes da pandemia da Covid-19. Acomete mais adultos jovens, na faixa de 20 a 40 anos de idade, sendo mais frequente no sexo masculino.

Todavia, apesar de relativamente rara, tem sido relatada a ocorrência de até 4,1 casos de miocardite para cada 1000 pacientes internados com a referida virose, podendo ocorrer a forma fulminante em aproximadamente 39% daqueles acometidos, podendo causar instabilidade hemodinâmica, necessidade de suporte circulatório mecânico e até morte. Quanto ao diagnóstico, a ressonância nuclear magnética do coração tem sido um armamento valoroso, sobretudo quando realizada dentro de duas a três semanas do início dos sintomas.

As vacinas têm tido papel preponderante no combate ao SARS-Cov-2, sobretudo na redução dos números de casos graves e morte pela doença. Porém, complicações cardíacas, particularmente a miocardite e a pericardite (inflamação da membrana que envolve o coração) têm sido associadas com vacinas que utilizam o RNA mensageiro (mRNA).

Esta complicação é muito rara, ocorrendo mais em homens jovens, alguns dias após a segunda dose e, geralmente, tem um curso benigno, com os sintomas desaparecendo em aproximadamente 90% dos casos. Contudo, o receio de eventos adversos graves, induzido pelos imunizantes e exaltado pelos negacionistas, tem contribuído para a alta taxa de hesitação vacinal.

Com o intuito de dirimir dúvidas foi publicado no final de agosto do corrente ano, na revista Frontiers in Cardiovascular Medicine (DOI: 10.3389/fcvm.2022.951314), o maior estudo do gênero, no qual os investigadores fizeram uma revisão sistemática e meta-análise de 22 estudos publicados em todo o mundo, consistindo de coortes de 55,5 milhões de pessoas vacinadas contra o novo coronavírus e de 2,5 milhões de pacientes que contraíram a Covid-19. Os autores concluíram que o risco de desenvolver miocardite é sete vezes maior nos infortunados infectados pelo SARS-Cov-2 do que em pessoas que recebem o imunizante.

Na esteira dessa interlocução, participei juntamente com o internacionalmente reconhecido pesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da UFS, Prof. Paulo Martins-Filho, da publicação de um manuscrito na revista Enfermidades Infecciosas y Microbiologia Clínica (DOI: 10.1016/j.eimc.2022.09.001), onde concluímos que: “Na pesquisa clínica e epidemiológica, a temporalidade e a força com que um evento observado está associado a uma intervenção são elementos críticos para apoiar a causalidade. Até o momento, não existe nenhuma evidência de um risco aumentado de taquicardia e de outras complicações cardíacas após a vacina Pfizer-BioNTech, contra Covid-19”.

Portanto, estas evidências servem de suporte para a continuidade da utilização das vacinas do tipo mRNA, seguindo as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Finalizo, citando o filósofo escocês David Hume: “O homem sábio ajusta a sua crença à evidência”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 1 de outubro de 2022

IRIS CINEMA (ESPETÁCULOS DE TELA E PALCO)


  

 

Francisco Guimarães Rollemberg*

 

 

Minha cidade tinha um cinema. Lá era o ponto de encontro da sociedade local da microelite e do povo. Era o lugar do congraçamento de diversas classes sociais. Dias eram dedicados aos seriados, principalmente, as quartas-feiras e os sábados. Seriados e filmes de cowboy eram anunciados em quadros negros e tabuletas estrategicamente colocadas nas principais esquinas da cidade.

A propaganda bastante apelativa apresentava frases assim: “Hoje um cowboy bom demais, murro por peste na “cacunda” do bandido!” Em todos os filmes, havia o artista sempre vencedor e o “doidelo”, o maluco da cidade, uma beleza!” As tabuletas eram distribuídas pelo faz tudo da cidade, um negro atarrancado e hemiplégico, descendente de escravos, querido por todos: o COBI.

Eu adorava COBI. Ele, talvez sentindo o bem que eu lhe queria, só me tratava de menino feio: “Antônio, seu irmão, esse sim se parece com o menino Jesus.” Morreu bem velho, quando eu já caminhava para me formar em medicina. Até hoje, sinto saudades dele...

O programa variava pouco devido às imposições do alugador dos filmes, o Sr. Augusto Luz, proprietário do Cine Guarany, de Aracaju. Ele tinha o monopólio, pois o proprietário do cinema IRIS, Sr. Zeca Pinta, não sabia sequer o que seria disponibilizado.

Mesmo assim, assistimos a muitas e boas séries: A Deusa de Joba, Os Tambores de Fumanchu, Capitão Marvel etc., para a alegria da meninada, principalmente, no momento final, quando o capítulo encerrava em uma situação de grande perigo, aí o “pingongo” ficava para a próxima semana.

Era o avião que caía, o cavalo que ia pular a ponte que estava a desabar, o pulo ao precipício para escapar de índios ferozes, o que era resolvido com a desistência dos índios, as intermináveis brigas no saloon com revólveres que atiravam mais balas que as metralhadoras modernas. Poucos morriam, graças as inusitadas palhaçadas do “doidelo”.

Dois filmes marcaram época: Ali-Babá e os Quarenta Ladrões e Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo nas sextas-feiras da paixão, com as sessões seguidas e sempre lotadas.

Mais à frente, já na nossa mocidade, surgiram os filmes nacionais com os cômicos Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade e Mazzaropi, cada qual com seu estilo. Deles relembro algumas coisas: atendendo uma grã-fina que passava mal após um banquete no Copacabana Pallace, Oscarito, fingindo-se de médico, após examiná-la, dá esse diagnóstico: “Trata-se de uma superdosagem de hidróxido no esôfago retilíneo, comprometendo as paredes gastrointestinais ramificando-se até o osso ilíaco.”

Sem nada entender, a senhora pergunta: “É grave?” Ele respondeu: “Não, é que a madame tomou uma canja que não foi sopa.” Como candidato a médico na ocasião, fiquei preocupado e até hoje penso no caso, principalmente, pela ramificação até o osso ilíaco; Grande Otelo – magnífica participação quando fantasiado de mulher negra, com uma criança no colo, à procura do pai do bebê.

O homem reage cantando: “Tava jogando sinuca quando uma negra maluca me apareceu, toma que o filho é teu. Foi Deus que te deu.” Lembro também da interpretação de Grande Otelo em Boneca de Piche; Zé Trindade superou-se interpretando um marido de uma megera que o dominava – a cena de carnaval é antológica: de camisola, no quintal, Zé trancado e cantando: “Tô, tô de camisolão! / Perpetua depois da sete / Tira a chave do portão / Ai, meu Deus, / Eu não aguento não / Meu bloco tá passando / Eu não aguento não...”; Mazzaropi: o Jeca interpretando o roceiro inocente das histórias de Monteiro Lobato, personagem que, até hoje, é visto às tardes, nas redes de televisão.

Depois, vieram os internacionais: O Gordo e o Magro, Cantinflas e o eterno Carlitos, que ainda hoje revejo. Quando da morte de Chaplin, tive a oportunidade de conversar com o amigo, intelectual e jornalista Viariato Gomes, que assistiu ao sepultamento do artista. Ele me deu o depoimento, que foi transformado em artigo, que ele publicou no Correio Braziliense.

As melodias dos filmes de Chaplin, disse Viriato, acompanhavam envelhecidas imagens do bairro de Lambert, onde aquele se criou nas mais sujas das misérias. A mãe escolheu a alienação para atenuar sofrimento. Um dia, sem tirar os olhos da janela, falou a Charlie, que entrava: “Vá, filhinho, para a casa dos outros, quem sabe, lá você encontra alguma coisa para comer.” O pai dele, que abandonara a família, embriagava-se pelos subúrbios. Em certa ocasião, o menino avistou-o no bar, mas o pai lhe recusou a palavra.

A solidão, o desencanto, a miséria foram os componentes da atmosfera de Chaplin. E outra não conheceu por toda a vida, pois, o que encontrou depois os milhões de dólares subitamente ganhos nos maiores contratos da história do cinema, as mulheres sentando aos seus pés, a glória em plena juventude: nada mais poderia levá-lo a habitar outra morada que não o orfanato da sua infância.

Carlitos morreu no Natal. Só poderia morrer no Natal, quando os sentimentos desenterram lembranças. No dia do seu sepultamento, continua Viriato, no cemitério, o filho Micheal concedia entrevista a jornalistas ingleses e portava-se como se nada especial pudesse sentir. Perguntaram por Geraldine, sua irmã, esposa do cineasta espanhol Carlos Saura, ele respondeu: “Na Espanha, SHE WORKS.” Afastou-se com indiferença e ficou sozinho. Dava pena ver Micheal disfarçar desse modo a mágoa que o dilacerava, pois, antes, escrevera um livro contra o pai.

Chaplin perdeu Terri: a bailarina de Luzes da Ribalta, a quem ele devolvera os movimentos; foi desprezado pela florista cega, a quem ele ajudara a recuperar a visão em Luzes da Cidade; na Busca do Ouro, antes de a encontrar, preparou para Geórgia a Cabana do Amor, na noite do Ano Bom, e ela o rejeitou. Essas personagens simbolizaram as mulheres do seu tempo de pobreza.

Dois meses após o sepultamento, a tumba de Charlie Chaplin foi violada, e o esquife com o seu corpo foi roubado por dois imigrantes, que queriam resgate. Alguns dias depois, o corpo dele foi encontrado após muito trabalho, pois os ladrões do túmulo, que não conheciam bem a região, já não sabiam bem como localizá-lo. Foi encontrado em um campo de milho e, desta feita, sepultado em um mausoléu fortificado. Hoje, ao lado dele, em mausoléu idêntico, repousa Oona, o amor de sua vida.

Essa tragédia me faz lembrar a pergunta feita por uma colega, no terceiro ano científico do Colégio Central da Bahia, ao professor de literatura Milton Tavares: “Por que os gênios sofrem tanto?” Ele respondeu: “Eles não sofreram por serem gênios, são gênios porque sofreram.”

Todas essas lembranças sobreviveram porque na minha terra tinha um cinema.

 

 

*Médico, advogado e escritor, foi senador da República e deputado federal.´É membro da Academia Sergipana de Letras.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...