Francisco
Guimarães Rollemberg*
Minha
cidade tinha um cinema. Lá era o ponto de encontro da sociedade local da microelite
e do povo. Era o lugar do congraçamento de diversas classes sociais. Dias eram
dedicados aos seriados, principalmente, as quartas-feiras e os sábados.
Seriados e filmes de cowboy eram anunciados em quadros negros e tabuletas
estrategicamente colocadas nas principais esquinas da cidade.
A
propaganda bastante apelativa apresentava frases assim: “Hoje um cowboy bom
demais, murro por peste na “cacunda” do bandido!” Em todos os filmes, havia o
artista sempre vencedor e o “doidelo”, o maluco da cidade, uma beleza!” As
tabuletas eram distribuídas pelo faz tudo da cidade, um negro atarrancado e
hemiplégico, descendente de escravos, querido por todos: o COBI.
Eu
adorava COBI. Ele, talvez sentindo o bem que eu lhe queria, só me tratava de menino
feio: “Antônio, seu irmão, esse sim se parece com o menino Jesus.” Morreu bem
velho, quando eu já caminhava para me formar em medicina. Até hoje, sinto saudades
dele...
O
programa variava pouco devido às imposições do alugador dos filmes, o Sr.
Augusto Luz, proprietário do Cine Guarany, de Aracaju. Ele tinha o monopólio,
pois o proprietário do cinema IRIS, Sr. Zeca Pinta, não sabia sequer o que
seria disponibilizado.
Mesmo
assim, assistimos a muitas e boas séries: A Deusa de Joba, Os Tambores de
Fumanchu, Capitão Marvel etc., para a alegria da meninada, principalmente, no
momento final, quando o capítulo encerrava em uma situação de grande perigo, aí
o “pingongo” ficava para a próxima semana.
Era
o avião que caía, o cavalo que ia pular a ponte que estava a desabar, o pulo ao
precipício para escapar de índios ferozes, o que era resolvido com a
desistência dos índios, as intermináveis brigas no saloon com revólveres que
atiravam mais balas que as metralhadoras modernas. Poucos morriam, graças as
inusitadas palhaçadas do “doidelo”.
Dois
filmes marcaram época: Ali-Babá e os Quarenta Ladrões e Vida, Paixão e Morte de
Nosso Senhor Jesus Cristo nas sextas-feiras da paixão, com as sessões seguidas
e sempre lotadas.
Mais
à frente, já na nossa mocidade, surgiram os filmes nacionais com os cômicos
Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade e Mazzaropi, cada qual com seu estilo. Deles
relembro algumas coisas: atendendo uma grã-fina que passava mal após um
banquete no Copacabana Pallace, Oscarito, fingindo-se de médico, após examiná-la,
dá esse diagnóstico: “Trata-se de uma superdosagem de hidróxido no esôfago
retilíneo, comprometendo as paredes gastrointestinais ramificando-se até o osso
ilíaco.”
Sem
nada entender, a senhora pergunta: “É grave?” Ele respondeu: “Não, é que a madame
tomou uma canja que não foi sopa.” Como candidato a médico na ocasião, fiquei
preocupado e até hoje penso no caso, principalmente, pela ramificação até o
osso ilíaco; Grande Otelo – magnífica participação quando fantasiado de mulher
negra, com uma criança no colo, à procura do pai do bebê.
O
homem reage cantando: “Tava jogando sinuca quando uma negra maluca me apareceu,
toma que o filho é teu. Foi Deus que te deu.” Lembro também da interpretação de
Grande Otelo em Boneca de Piche; Zé Trindade superou-se interpretando um marido
de uma megera que o dominava – a cena de carnaval é antológica: de camisola, no
quintal, Zé trancado e cantando: “Tô, tô de camisolão! / Perpetua depois da
sete / Tira a chave do portão / Ai, meu Deus, / Eu não aguento não / Meu bloco
tá passando / Eu não aguento não...”; Mazzaropi: o Jeca interpretando o roceiro
inocente das histórias de Monteiro Lobato, personagem que, até hoje, é visto às
tardes, nas redes de televisão.
Depois,
vieram os internacionais: O Gordo e o Magro, Cantinflas e o eterno Carlitos,
que ainda hoje revejo. Quando da morte de Chaplin, tive a oportunidade de
conversar com o amigo, intelectual e jornalista Viariato Gomes, que assistiu ao
sepultamento do artista. Ele me deu o depoimento, que foi transformado em
artigo, que ele publicou no Correio Braziliense.
As
melodias dos filmes de Chaplin, disse Viriato, acompanhavam envelhecidas
imagens do bairro de Lambert, onde aquele se criou nas mais sujas das misérias.
A mãe escolheu a alienação para atenuar sofrimento. Um dia, sem tirar os olhos
da janela, falou a Charlie, que entrava: “Vá, filhinho, para a casa dos outros,
quem sabe, lá você encontra alguma coisa para comer.” O pai dele, que
abandonara a família, embriagava-se pelos subúrbios. Em certa ocasião, o menino
avistou-o no bar, mas o pai lhe recusou a palavra.
A
solidão, o desencanto, a miséria foram os componentes da atmosfera de Chaplin.
E outra não conheceu por toda a vida, pois, o que encontrou depois os milhões
de dólares subitamente ganhos nos maiores contratos da história do cinema, as
mulheres sentando aos seus pés, a glória em plena juventude: nada mais poderia levá-lo
a habitar outra morada que não o orfanato da sua infância.
Carlitos
morreu no Natal. Só poderia morrer no Natal, quando os sentimentos desenterram
lembranças. No dia do seu sepultamento, continua Viriato, no cemitério, o filho
Micheal concedia entrevista a jornalistas ingleses e portava-se como se nada
especial pudesse sentir. Perguntaram por Geraldine, sua irmã, esposa do
cineasta espanhol Carlos Saura, ele respondeu: “Na Espanha, SHE WORKS.” Afastou-se
com indiferença e ficou sozinho. Dava pena ver Micheal disfarçar desse modo a mágoa
que o dilacerava, pois, antes, escrevera um livro contra o pai.
Chaplin
perdeu Terri: a bailarina de Luzes da Ribalta, a quem ele devolvera os
movimentos; foi desprezado pela florista cega, a quem ele ajudara a recuperar a
visão em Luzes da Cidade; na Busca do Ouro, antes de a encontrar, preparou para
Geórgia a Cabana do Amor, na noite do Ano Bom, e ela o rejeitou. Essas
personagens simbolizaram as mulheres do seu tempo de pobreza.
Dois
meses após o sepultamento, a tumba de Charlie Chaplin foi violada, e o esquife
com o seu corpo foi roubado por dois imigrantes, que queriam resgate. Alguns
dias depois, o corpo dele foi encontrado após muito trabalho, pois os ladrões
do túmulo, que não conheciam bem a região, já não sabiam bem como localizá-lo. Foi
encontrado em um campo de milho e, desta feita, sepultado em um mausoléu
fortificado. Hoje, ao lado dele, em mausoléu idêntico, repousa Oona, o amor de
sua vida.
Essa
tragédia me faz lembrar a pergunta feita por uma colega, no terceiro ano
científico do Colégio Central da Bahia, ao professor de literatura Milton
Tavares: “Por que os gênios sofrem tanto?” Ele respondeu: “Eles não sofreram
por serem gênios, são gênios porque sofreram.”
Todas
essas lembranças sobreviveram porque na minha terra tinha um cinema.
*Médico, advogado
e escritor, foi senador da República e deputado federal.´É membro da Academia
Sergipana de Letras.
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