José Lima Santana*
Povinho de língua grande e solta,
fora da conta. Língua ferina. Falava-se de tudo e de todos. Cada um lascava com
o outro ou com a outra, conforme fosse. Muita gente foi parar nas raias da
Justiça, no Fórum do juiz, Dr. Marcelo Brocco, velho magistrado às margens da
aposentadoria sem ter logrado chegar ao cobiçado posto de desembargador.
Entrara já madurão na magistratura. Antes, fora fiscal de rendas. Juntando o
tempo de serviço, passava de quarenta anos. Merecia, sim, a aposentadoria, para
curtir os seis netos, ou para ver-se endoidecido por eles.
Os sapograndenses não eram raça de gente.
Pareciam formar uma tribo de selvagens que teimavam em não se render aos bons
modos. Era costume apregoar-se que o diabo dera de meter o bedelho por ali, nos
tempos em que o padre Vicentinho benzera a cidade com a mão esquerda, por causa
de que Tibúrcio de Zeca Perna Torta botara de boca em boca que o velho vigário
tinha lá de seu um chega-pra-cá com Doninha de Fabrício de João Cego, viúva
quarentona de boas ancas e outros melhores apetrechos.
Conversa mais sem-vergonha, sem pé
nem cabeça. Aleivosia que bradava aos céus. Imaginar que aquele velho santo de
batina surrada, que ali se encontrava há mais de trinta e cinco anos, desde que
se tinham passado vinte anos de sua ordenação. Cinquenta e cinco anos dizendo
Missas em Sapo Grande, Lagoa Seca, Curral de Baixo e Mata dos Arrepios. Um
santo homem a serviço do Reino.
Tibúrcio de Zeca Perna Torta era um
salafrário, desfazedor de namoros, noivados e casamentos, enxerindo-se para
muitas moças e mulheres, à falta de uma surra de cipó caboclo ou de rabo de teiú,
a lanhar suas costas de periquito com fome de seis dias. Faltava homem de
sangue no olho e tutano nos ossos, em Sapo Grande?
Não era isso. Ninguém tinha sobroço
de Tibúrcio. Todos tinham, sim, respeito pelo coronel Zeca Perna Torta, que
entortara a perna direita na Guerra de Canudos, na Bahia, nos tempos do
Conselheiro, naquela matança infeliz de brasileiros matando-se uns aos outros.
Porém, mais cedo ou mais tarde, Tibúrcio ainda haveria de encontrar um pé torto
no seu caminho de estreito seguimento, ou algo que lhe pudesse valer de forma
negativa.
O padre Vicentinho, cansado,
ministério cumprido, e bem cumprido, beirando os oitenta anos, pediu uso de
ordem ao senhor bispo diocesano. Precisava passar os dias de vida que o Senhor
ainda lhe daria, no meio dos seus, em sua terra natal, Cachoeira do Maromba,
onde moravam seis irmãos, três dúzias de sobrinhos e uns tantos
sobrinhos-netos. Ah, e sua santa mãezinha, que ainda vivia, graças a Deus, do
alto dos seus cento e dois anos! Lúcida e fazendo cocada-puxa, que botava o
velho padre a lamber os beiços.
O povo de Sapo Grande fez uma festa
alvoroçada para o padre Vicentinho, quando ele a deixara, a 6 de maio de 1942.
Inventaram que ele teria benzido a cidade com a mão esquerda. Santo Deus!
Daquele servo do Evangelho de Cristo só saíram bênçãos. A sua mão direita não
se cansara de abençoar e bendizer. As línguas ferinas daquela cidade não
conheciam descanso. Foi-se o padre, outro chegou e a vida continuou a ser fiada
e desfiada.
Tibúrcio de Zeca Perna Torta contraiu
matrimônio, na Igreja e no civil, com uma moça prendada e de bons dotes, posto
que filha única de abastado comerciante de Matão de Dentro, cidade de
impulsionado progresso, nos últimos anos. Festança de arromba foi dada pelo pai
da noiva. Até o governador do Estado lançou-se por uma estrada de trezentos e
quarenta quilômetros, mais esburacada do que um queijo suíço, para saudar o
filho do coronel que lutara em Canudos.
A bem da verdade, coronel mesmo Zeca
Perna Torta não era, até porque lutara ao lado do Conselheiro. O apelido lhe
fora dado por um seu compadre, alfaiate, Britinho Tesoura Fina, que gostava de
alcunhar as pessoas. Quatro anos depois do casamento, os pais dos nubentes
aguardavam um neto ou neta. Nada. Das duas, uma, dizia-se em Sapo Grande:
Tibúrcio era galo de ovo goro ou Matilde, sua esposa, tinha lá nela o útero
destrambelhado. Quatro anos sem procriação não era normal por aquelas bandas.
Verdade foi que Matilde não pôde
mesmo dar um filho a Tibúrcio. Ela pegou uma febre malsã e morreu na véspera do
Ano Novo. Pedro Curiboca e sua esposa, Dona Cecília, quase morreram. Era a sua
única filha. Tibúrcio passou meses acabrunhado. Mas, a vida seguia o seu curso.
Um ano e pouco depois, ele contrairia
segundas núpcias com uma moça dali mesmo, que estava de namoro com Borbinha,
exímio tocador de violão, boêmio de segunda e de cabelos negros empastados de
brilhantina Zezé. Ante não se sabia quais promessas de Tibúrcio, a moça, da
noite para o dia, desmanchou o namoro com o violonista e passou a morar na casa
de Tibúrcio. Sob pressão do novo padre, dentro de noventa dias, os dois estavam
no altar. As línguas ferinas de Sapo Grande alardeavam que a moça, que se
chamava Maria Flor, há muito tinha perdido o floreio. Nada que pudesse abalar
Tibúrcio.
Dias após o enlace matrimonial de
Tibúrcio com Maria Flor, a nova nora de Zeca Perna Torta anunciou que estava
pejada de três meses. Tibúrcio vangloriava-se que não era galo de ovo goro.
Matilde, que Deus a tivesse, não podia ter filhos. Enfim, nasceu o filho de
Tibúrcio, um garotinho troncudo, de cabelos negros, carinha de anjo de
folhetim.
Quando a parteira, Dona Mimosa,
banhou o menino, para colocá-lo nos braços da mãe, pôde ver que, na sua
perninha esquerda estava selada uma mancha vermelha em forma de triângulo. Ela
era a parteira da cidade há três décadas e meia. E vira aquela mesma mancha
triangular vermelha na perna esquerda do violonista Borbinha. Dona Mimosa
talvez fosse a única pessoa de Sapo Grande que não tinha a língua ferina.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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