José Lima Santana*
Dé era Derivaldo. Dedé era Edevaldo.
Irmãos. Filhos de “seu” Durval do finado Eronildes do Pau Ferro, povoado quase
em extinção. Porém, em tempos idos era povoado de fama. Lugar de bons pastos,
de boas roças de milho e algodão, principalmente. Boa festinha de São João. Boa
festinha de Natal.
Até alambique por lá tinha. Fabricava
uma cachacinha muito apreciada. Pequena produção, que não passava de umas
poucas centenas de litros em cada safra. O alambique pertencia a Manoel
Clarindo, avô dos irmãos, Dé e Dedé. Avô materno. Além de fabricante de
cachaça, o velho era rezador. Contavam no povoado que, em tempos idos, ele
expulsara o demônio apossado do corpo de uma moça, metida em atropelos de
encruzilhada.
O velho Manoel Clarindo engasgou com
um rolete de cana caiana, que lhe tapou os gorgomilos. Numa noite qualquer, ele
bateu a caçoleta. Espumou, ficou ofegante e esticou a canela. Era um velho
muito bem-quisto nas redondezas. Ao enterro compareceu muita gente.
Os netos Dé e Dedé eram crianças.
Carregaram buquês de flores do campo, murchas, à frente do féretro. Dé era
chorão. Dedé era do tipo casca grossa. O primeiro abriu o berreiro o tempo
todo, no percurso da casa do defunto ao pequeno cemitério. O segundo desdenhava
das caretas do irmão, o tempo todo.
O percurso do féretro, da casa do
defunto ao arremedo de cemitério, um pedaço de chão sem muro nem cercas,
animais pastando o capim viçoso, quando o tempo era fresco, que nascia entre
uma cova e outra, durou meia hora. Tinha chovido na noite anterior. O enterro foi
às 9 horas.
No caminho de bom massapê, a lama
escorregadia exigia cuidado dos transeuntes. Umas duas ou três vezes, um ou
outro condutor do esquife barato escorregou, sem maiores consequências. “Segura
o pé, Tonho de Chico”! Mas, Clarinha de Pedro Martelo, donzela quarentona, que
ainda suspirava por um homem que lhe tirasse do caritó, foi ao chão.
Socorrida, o vestido verde-abacate
foi maculado pela lama viscosa do massapê preto. Terra boa era o que se tinha
por ali. Uma despeitada, Cilinha de Zé Cartuxo, desandou a rir baixinho,
cutucando Maria de João de Zezito, outra despeitada. As duas não iam com as
fuças de Clarinha, que, tempos antes, tivera chamegos de namoro com os maridos
das duas, antes de ambos se darem em casamento.
O enterro chegou ao cemitério. A cova
de sete palmos de fundura estava pronta. A boca da terra engoliria mais um. Ali
estava o lugar onde todos se igualavam. Tico Bebinho, um pobre coitado, que
morreu de pança grande, mais amarelo do que cravo de defunto, estava enterrado
ao lado de Gonçalão de Maria de Dió, o maior proprietário de terras do povoado,
ali nascido e criado, ali enterrado. No chão do cemitério todos eram iguais.
Mesmo destino, mesmo pó, mesmos morotós, bichos de comer defunto a serem
alimentados pela carniça humana.
Mais um escorrego. O caixão pendeu
para o lado esquerdo. Um neto de Pixilinga acudiu Henricão de Júlia de Maneca
cego. “Não deixe o defunto beijar o chão fora da cova, home de Deus”! Dé
continuava chorando. E Dedé rindo do choro do irmão. Uma coruja rasga-mortalha
sobrevoou o cortejo em voo rasante, quase tocando a cabeça de Valentim de
Alfredo Sabiá. “T’esconjuro, bicho agourento do demo”! Gritou o quase atingido
pela ave.
O grito estridente do animal
emplumado assustou as pessoas. Mau agouro! Como mau agouro se ali já estava um
defunto? A coruja, que fazia morada no telhado da capelinha do povoado, nalgum
ponto da cumeeira, sabia-se lá, não estaria a agourar outra morte. Uma em cima
de outra, assim no de repente? Não podia ser. Aquela coruja estaria atrapalhada.
Por certo. De novo, a coruja sobrevoou o corteja, na entrada do cemitério
desamparado de qualquer atenção da autoridade municipal. Quem mais a foice da
morte deceparia?
O esquife barato foi colocado no chão
lamacento. Antes, duas cordas foram passadas por baixo, para a descida aos sete
palmos. De novo, a rasga-mortalha soltou um grito. Era estranho. As corujas
eram animais noturnos. Raramente, davam sinais durante o dia, embora aquela
fosse uma manhã nublada. Quando o caixão começou a descer, ouviu-se um barulho
fraco, depois mais forte, vindo lá de dentro. As pessoas mais próximas
assustaram-se. Algumas mulheres correram.
“Parem”!. Era o grito de Durval,
genro do defunto. O caixão foi posto de volta ao chão, à beira da cova.
Abriram-no. O velho Manoel Clarindo estava se mexendo. Estava vivo. Catalepsia.
Retirado do caixão e amparado pelo genro e por um filho, o velho perguntou o
que estava acontecendo. “O senhor morreu e não morreu”, disse o filho, Zé
Augusto. Manoel Clarindo franziu a testa, esbugalhou os olhos e morreu. De
verdade.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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