domingo, 12 de fevereiro de 2023

O DESPACHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Irreverente, ela adentrou, airosa, ao gabinete, cantarolando: “Preta, preta, pretinha...”. Sobre a mesa, alguns processos aguardando despachos e sentenças. A magistrada estava em sua primeira comarca. Dedicada, braba na aparência, mas um doce de pessoa para quem bem a conhecia. O escrivão entrou com um feixe de processos debaixo de cada sovaco. “Mais, ‘seu’ Antunes”? Ele sorriu, mostrando os dentes amarelados pela ação da nicotina. “Ainda vem muito mais”! Ela suspirou.

A comarca foi encontrada em desalinho. Um ano e tanto sem titular. Precisava botar muita coisa em ordem. A avaliadora judicial morava na capital e não aparecia. O escrivão lhe fazia as vezes. A funcionária só sabia assinar a papelada que o escrivão, quando ia à capital, levava à sua casa. Dos oficiais de justiça, que eram dois, um puxava da perna esquerda e demorava século e meio para cumprir os mandados. Ao menos, o escrivão era diligente. Meio tapado, mas diligente.

A cidade convivia com acentuada violência. Roubos e furtos ocorriam dia sim e o outro também. Dois homicídios nos últimos quinze dias: um numa briga por terras e o outro no meio de uma cachaçada. Um policial espancara um rapaz, que estava de namoro com uma moça, que, há pouco, acabara o relacionamento com o dito policial. Os porcos de um sujeito do povoado Pau D’Arco comeram a macaxeira do vizinho e este dera um chega para lá no outro, que lhe botara no hospital. E a diretoria do hospital procurou a juíza para reclamar do prefeito, que não estava repassando as verbas acertadas no convênio.

Prefeito novo, ensimesmado com o diretor da casa de saúde, filantrópica, porque este votou no opositor. Sem ação judicial, a juíza nada podia fazer. Não poderia se imiscuir nos atos discricionários da Municipalidade. Orientou que procurasse o doutor promotor.

O primeiro processo da espessa pilha à sua esquerda era de uma ação de divórcio. A briga do casal em desunião, como sempre, girava em torno da partilha dos bens e da pensão alimentícia para os quatro filhos. O esposo era auditor fiscal do Estado e a esposa era professora da rede municipal.

Mandara fazer a avaliação judicial dos bens. Aguardava o laudo. Aliás, chamara às falas a avaliadora sempre ausente, que buscara guarida junto a um desembargador, tio do seu sogro. O pistolão ainda estava em voga e, a depender do pimpão que podia ostentar, seria tiro e queda. Mas, com ela, Dra. Léa, a banda tocava de outro modo. A avaliadora teria que dar o expediente normal, ao menos nos quatro dias em que a juíza estava na comarca. E não adiantava reclamar e bufar.

Naquele dia, além da pilha de processos e de duas audiências marcadas para a tarde, receberia o senhor José da Silva Nunes, alcunhado de Pai Zuzé de Oxossi, um pai de santo, há pouco mudado para a Rua do Escorrega. A vizinhança dera parte dele por conta da fuzarca que acontecia nos dias de celebrar os orixás, segundas e sextas-feiras.

Os atabaques infernizavam os vizinhos, embora o oficial de justiça Pedro Curió considerava que havia intolerância religiosa. Católicos e protestantes irritavam-se à toa. O padre Marcolino Guedes não suportava o sincretismo. “Onde já se ouvir dizer que Santa Bárbara é uma tal de Iansã”? Esbravejava o prelado.

Por volta das 11 horas, o pai de santo fora anunciado. A juíza ajeitou-se na cadeira. Mandou entrar. Entrou. Era um preto roliço, alto, de idade avançada, grossas sobrancelhas, barba de alguns meses. Vestia uma calça marrom e uma camisa branca. No pescoço, uns colares de cores diversas. “Bom dia, sinhá doutora”! A magistrada respondeu ao cumprimento e apontou a cadeira à sua frente. O pai de santo tomou assento.

 A conversa tinha tudo para ser breve. Na verdade, era apenas para determinar que os atabaques não incomodassem os vizinhos. Porém, como fazê-lo? Terreiro sem atabaque era como igreja sem sino, como feira sem vozerio, como corrida de cavalos, que eram comuns por ali, sem alarido na chegada. Aliás, uns pangarés, que eram feitos cavalos de corrida, sabia Deus como.

Doutora Léa iniciou a conversa: “Seu José, o senhor sabe que a vizinhança do seu terreiro prestou uma queixa na delegacia sobre os inconvenientes que os seus tambores estão causando, não sabe? Pois bem. O delegado queria furar os seus tambores, mas teve o tino de fazer-me ciente do ocorrido. Por isso, mandei chamar o senhor aqui, para darmos uma solução nesse furdunço”. O velho pai de santo manteve-se imóvel como uma baraúna em dia sem sopro de vento.

Naquele instante, adentrou ao gabinete o tabelião Paulo Mendes. “Com licença, doutora. Eu preciso de um despacho rápido, se não for incômodo”. A juíza, com cara de blague, respondeu: “O despacho é meu ou do pai Zuzé”? O pai de santo arregalou os olhos. E o tabelião não conteve a gargalhada.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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