José Lima Santana*
Irreverente, ela adentrou, airosa, ao
gabinete, cantarolando: “Preta, preta, pretinha...”. Sobre a mesa, alguns
processos aguardando despachos e sentenças. A magistrada estava em sua primeira
comarca. Dedicada, braba na aparência, mas um doce de pessoa para quem bem a
conhecia. O escrivão entrou com um feixe de processos debaixo de cada sovaco.
“Mais, ‘seu’ Antunes”? Ele sorriu, mostrando os dentes amarelados pela ação da
nicotina. “Ainda vem muito mais”! Ela suspirou.
A comarca foi encontrada em desalinho.
Um ano e tanto sem titular. Precisava botar muita coisa em ordem. A avaliadora
judicial morava na capital e não aparecia. O escrivão lhe fazia as vezes. A
funcionária só sabia assinar a papelada que o escrivão, quando ia à capital,
levava à sua casa. Dos oficiais de justiça, que eram dois, um puxava da perna
esquerda e demorava século e meio para cumprir os mandados. Ao menos, o
escrivão era diligente. Meio tapado, mas diligente.
A cidade convivia com acentuada
violência. Roubos e furtos ocorriam dia sim e o outro também. Dois homicídios
nos últimos quinze dias: um numa briga por terras e o outro no meio de uma
cachaçada. Um policial espancara um rapaz, que estava de namoro com uma moça,
que, há pouco, acabara o relacionamento com o dito policial. Os porcos de um
sujeito do povoado Pau D’Arco comeram a macaxeira do vizinho e este dera um
chega para lá no outro, que lhe botara no hospital. E a diretoria do hospital
procurou a juíza para reclamar do prefeito, que não estava repassando as verbas
acertadas no convênio.
Prefeito novo, ensimesmado com o
diretor da casa de saúde, filantrópica, porque este votou no opositor. Sem ação
judicial, a juíza nada podia fazer. Não poderia se imiscuir nos atos
discricionários da Municipalidade. Orientou que procurasse o doutor promotor.
O primeiro processo da espessa pilha
à sua esquerda era de uma ação de divórcio. A briga do casal em desunião, como
sempre, girava em torno da partilha dos bens e da pensão alimentícia para os
quatro filhos. O esposo era auditor fiscal do Estado e a esposa era professora
da rede municipal.
Mandara fazer a avaliação judicial
dos bens. Aguardava o laudo. Aliás, chamara às falas a avaliadora sempre
ausente, que buscara guarida junto a um desembargador, tio do seu sogro. O
pistolão ainda estava em voga e, a depender do pimpão que podia ostentar, seria
tiro e queda. Mas, com ela, Dra. Léa, a banda tocava de outro modo. A
avaliadora teria que dar o expediente normal, ao menos nos quatro dias em que a
juíza estava na comarca. E não adiantava reclamar e bufar.
Naquele dia, além da pilha de
processos e de duas audiências marcadas para a tarde, receberia o senhor José
da Silva Nunes, alcunhado de Pai Zuzé de Oxossi, um pai de santo, há pouco
mudado para a Rua do Escorrega. A vizinhança dera parte dele por conta da
fuzarca que acontecia nos dias de celebrar os orixás, segundas e sextas-feiras.
Os atabaques infernizavam os
vizinhos, embora o oficial de justiça Pedro Curió considerava que havia
intolerância religiosa. Católicos e protestantes irritavam-se à toa. O padre
Marcolino Guedes não suportava o sincretismo. “Onde já se ouvir dizer que Santa
Bárbara é uma tal de Iansã”? Esbravejava o prelado.
Por volta das 11 horas, o pai de
santo fora anunciado. A juíza ajeitou-se na cadeira. Mandou entrar. Entrou. Era
um preto roliço, alto, de idade avançada, grossas sobrancelhas, barba de alguns
meses. Vestia uma calça marrom e uma camisa branca. No pescoço, uns colares de
cores diversas. “Bom dia, sinhá doutora”! A magistrada respondeu ao cumprimento
e apontou a cadeira à sua frente. O pai de santo tomou assento.
A conversa tinha tudo para ser breve. Na
verdade, era apenas para determinar que os atabaques não incomodassem os
vizinhos. Porém, como fazê-lo? Terreiro sem atabaque era como igreja sem sino,
como feira sem vozerio, como corrida de cavalos, que eram comuns por ali, sem
alarido na chegada. Aliás, uns pangarés, que eram feitos cavalos de corrida,
sabia Deus como.
Doutora Léa iniciou a conversa: “Seu
José, o senhor sabe que a vizinhança do seu terreiro prestou uma queixa na
delegacia sobre os inconvenientes que os seus tambores estão causando, não
sabe? Pois bem. O delegado queria furar os seus tambores, mas teve o tino de
fazer-me ciente do ocorrido. Por isso, mandei chamar o senhor aqui, para darmos
uma solução nesse furdunço”. O velho pai de santo manteve-se imóvel como uma
baraúna em dia sem sopro de vento.
Naquele instante, adentrou ao
gabinete o tabelião Paulo Mendes. “Com licença, doutora. Eu preciso de um
despacho rápido, se não for incômodo”. A juíza, com cara de blague, respondeu:
“O despacho é meu ou do pai Zuzé”? O pai de santo arregalou os olhos. E o
tabelião não conteve a gargalhada.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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