domingo, 28 de maio de 2023

A POESIA DE EUNALDO COSTA: CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE UM POETA


 

 

 

José Anselmo de Oliveira*

 

 

Uma das formas de cumprir a sua missão de imortalidade dos ocupantes de suas cadeiras é a Academia Sergipana de Letras cultuar os seus membros que já passaram para a eternidade, e nada melhor que comemorarmos, não a data da morte, mas a data do nascimento, posto que se tratamos de imortalidade, não há que se comemorar outra data.

Este ano se comemora o centenário do imortal poeta Eunaldo Costa, que ocupou a Cadeira 21 da Academia Sergipana de Letras que sucedeu o fundador da cadeira, Joaquim Maurício Cardoso, jornalista como ele, falecido em 1970, tomando posse em 31 de julho de 1971.

Conheci o nosso homenageado apenas de vista e de alguns contatos, pois era também jornalista como eu, e algumas vezes nos encontramos em eventos culturais.

Eunaldo Costa nasceu no dia 19 de abril de 1923 na cidade de Aracaju, filho de Carivaldo Costa e de Maria Eunice Costa. Foi funcionário dos Correios, migrando depois para outro órgão federal onde se aposentou. Faleceu em Aracaju em 17 de setembro de 2000.

O poeta Eunaldo Costa é da geração que foi bastante influenciada pela poesia de José Sampaio e de Santo Souza, o primeiro com a sua poesia marcantemente social, e o segundo pela poesia orfeônica e muito esotérica.

Afinal, quem é este ser chamado poeta?

A poesia sempre esteve na vida dos homens desde que se entende que existe sociedade e cultura, entretanto a figura do poeta nem sempre foi aplaudida como um artista das letras, já foi chamado de “vidente”, “maldito” e até mesmo de “adivinho”. Por quê? Porque os poetas, por sua sensibilidade, viam sempre além do real, do presente. Percebe a alma e não somente as curvas dos corpos. Percebe o imperceptível e faz leitura do que é indecifrável.

Assim, poetas como Eunaldo Costa, um homem simples, sem os ornamentos sociais e sem os recursos financeiros da elite, funcionário público e jornalista, escreve e se torna poeta conhecido na década de 50 do século passado. Seu primeiro livro é publicado em 1958, ou seja, há 65 anos atrás, sob o título “Poemas da noite”. Seguiram-se “Cadernos de ritmos” (1960); Caminhos da madrugada (1974; “Signo” (1980); “Aquário (1992); e, “Arca do som” (1997). Seu último livro foi “Água Boa”, como observa Francisco Rollemberg, sua obra mais madura, tanto do ponto de vista poético como temático, mais filosófico e rico em construções rítmicas.

A vida de um poeta nem sempre é coberta de louros e de reconhecimento. Por vezes o poeta deixa a sua poesia como uma semente para o futuro, quando o preconceito e a discriminação não mais fizerem vítimas. Não que o poeta Eunaldo Costa se enquadre nessas situações, tanto que ascendeu ao capitólio das letras sergipanas, apesar de críticas contrárias.

A maldição do poeta é tema de um poema de Vinicius de Moraes, de 1935:

 

A lenda da maldição

 

A noite viu a criança que subia a escada cheia de risos e de sombras

E pousou como um pássaro ferido sobre as árvores que choravam.

A criança era o príncipe-poeta que a música ardente fizera subir à última torre

E a noite era a camponesa que amava o príncipe e o adormecia no seu canto.

Quando a criança chegou ao ponto mais alto viu que a música era o riso embriagado

E que o riso embriagado era das estátuas mortas que tinham no ventre aberto entranhas murchas.

A criança lembrou-se da noite cheia de entranhas e cujo riso era a poesia eterna

E a angústia cresceu no seu coração como o mar alto nos penhascos.

O olhar cego das estátuas levou o herdeiro do reino ao fosso negro — ó príncipe, onde estás? — a voz dizia

E a água subia, nos braços, no peito, na boca, nos olhos do amado da noite.

 

Depois saiu do fosso um homem que era o poeta-amaldiçoado

E que possuiu a noite chorando, adormecida.

A noite que nada viu continua chamando o príncipe-poeta

Enquanto o poeta-amaldiçoado chora nos braços das estátuas mortas...

 

Ou como diz o poeta Manoel de Barros em:

 

RETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA

I

Não tenho bens de acontecimentos.

O que não sei fazer desconto nas palavras.

Entesouro frases. Por exemplo:

- Imagens são palavras que nos faltaram.

- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.

-Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.

Ai frases de pensar!

Pensar é uma pedreira. Estou sendo.

Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).

Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.

Outras de palavras.

Poetas e tontos se compõem com palavras.

 

II

Todos os caminhos — nenhum caminho

Muitos caminhos — nenhum caminho

Nenhum caminho — a maldição dos poetas.”

 

Nada disso tira do homenageado o seu compromisso com a arte da palavra. A poesia sempre foi a sua guia, sua régua e compasso, como já disse o acadêmico Gilberto Gil.

Num dos seus poemas mais bonitos pela visão humanista e social, diz o poeta:

 

“Olha aquela negra, tuberculosa,

Estendida nas grama úmidas do canteiro do jardim.

A chuva e o vento caindo-lhe no corpo

Cansado da vida dos becos.

- Seu nome?

- Pouco importa,

- Poderia ser Carlota

- ou outro qualquer.

Naquela negra, seminua, enferma,

Abandonada, o mundo só não sujou

A sua alma, que conserva a pureza inicial.

Nesta hora tardia da noite

O sono fechou as pálpebras da cidade,

Mas existem alguns olhos abertos

Vendo as luzes descendo sobre a negra

Que agoniza junto às rosas do canteiro do jardim.”

 

O poeta Eunaldo Costa também era um desses seres espiritualizados onde a filosofia viceja por encontrar solo fértil, esoterismo e filosofia durante muitos séculos andaram de mãos dadas, e para o poeta que bebia na fonte de Santo Souza, nada como fundir a alma com a mente quando diz:

 

“A noite veio ligeira,

Me abraçou, chorou no meu ombro,

E, depois, cansada, foi dormir

Num canto da calçada,

Se casando, assim, com o silêncio,

Tão pequena que parecia que não existia.

Quando ela acordou, não era mais noite

- Era filosofia”

 

O acadêmico Francisco Rollemberg no discurso em homenagem ao poeta Eunaldo Costa quando do seu panegírico fez uma ligação do poeta Edgar Allan Poe, autor de “O Corvo”, com a poesia do nosso homenageado. O que toca aos dois poetas é a capacidade de fazer poesia mesmo com matéria prima antipoética ou a espontaneidade, como bem demonstra quando diz:

 

“Se Poe conseguiu elaborar um poema de tamanha beleza a partir de ingredientes aparentemente antipoéticos. Eunaldo Costa conseguiu construir toda sua obra valendo-se apenas da espontaneidade da poesia. Não que Poe se deixasse marcar por qualquer artificialismo. Ocorre que pelo menos O corvo, de forma confessa, nasceu de uma engenharia poética maturada, que associada à arte revelou aquela grande obra da literatura universal. Concorreram, para tal, diria Camões, o engenho e a arte.

Não há que se falar em planejamento quando se analisa a produção do nosso grande poeta sergipano. Sua poesia nasce da palavra em estado de sentimento, pura, fluente, as vezes ingênua, permitindo uma singela, mas profunda ligação entre autor, obra e leitor. Nisso repousa sua grande marca com maior ou menor intensidade em Poemas da Noite, Cadernos de Ritmos, Caminhos da Madrugada, Signo. Aquário, Água Boa, ou na antologia Arca do Som.”

 

Tenho a honra de ocupar a cadeira 21 que foi ocupada pelo homenageado Eunaldo Costa e depois pelo poeta e também jornalista Benvindo Sales Campos a quem sucedi. Parece que a poesia persegue o seu caminho, independentemente dos poetas.

E não poderia deixar de prestar ao poeta Eunaldo Costa, por ocasião do seu centenário de nascimento, esta singela homenagem que serve para que a imortalidade acadêmica siga como farol do fazer cultural, e nesse caso, poético.

 

Referências

 

BARRETO, Luiz Antônio. O Poeta Eunaldo Costa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 33. 2000-2002. Págs. 251-253.

NASCIMENTO, José Anderson. Perfis Acadêmicos. Aracaju: Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe – EDISE, 2017.

ROLLEMBERG, Francisco.  Poe e Eunaldo. Discurso proferido por ocasião do panegírico do poeta Eunaldo Costa, na Academia Sergipana de Letras.

 

 

*Juiz de Direito, jornalista, professor e poeta. Membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Educação e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.

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