José Lima Santana*
No prédio da velha Faculdade, “seu”
Abílio, o garçom, sempre impecável, envergando paletó branco e gravata
borboleta, chegava à sala de aula, o professor João de Araújo Monteiro
discorrendo sobre algo, e dizia: “Dr. Monteiro, aqui tem duas capacidades em
Direito, primeiro eu e, depois, o senhor”. O velho Monteiro soltava alguns
impropérios e a gente gargalhava. Primeiro era seu Abílio, claro, depois, o
professor, na sapiência jurídica.
O professor Monteirinho não fazia
chamada. A disciplina Direito Previdenciário era propícia para quem gostava de
gazear. No dia das provas, a sala estava abarrotada. Muitos alunos de outros
cursos matriculavam-se na disciplina, como optativa. Na primeira prova do
semestre em que eu fiz a disciplina, algumas meninas de Serviço Social estavam
atônitas.
Não sabiam, nada, porque não
frequentaram as aulas. Estavam paradas diante da prova, sem saber como
responder às questões. De repente, Monteirinho dirigiu-se a uma delas e,
pegando a CLPS, que estava sobre a carteira, disse: “Minha filha, abra este
livro e copie as respostas, senão você vai se lascar”. Foi um alívio. Todas
passaram a manusear o exemplar da Consolidação das Leis da Previdência Social
em busca das respostas.
O professor Bonifácio Fortes às vezes
perdia a calma, quando passavam alunos fazendo algazarra no corredor. Numa
dessas vezes, ele bateu as duas bandas da porta da frente (eram duas portas de
cada lado) e gritou: “Absurdo! Não se pode dar aula sossegado nesta casa. Vou
me aposentar para ler minhas poesias prediletas, para ler Manuel Bandeira”.
E começou a recitar versos do poema
“Desencanto” do poeta pernambucano, que Drummond o chamava de “o mais ilustre
dos nossos poetas”: “Eu faço versos como quem chora / De desalento... de
desencanto... / Fecha o meu livro se por agora / Não tens motivo nenhum de
pranto”. Parou.
Esquecera o resto do poema. Então,
levantando-me, continuei a declamar: “Meu verso é sangue, volúpia ardente /
Tristeza esparsa... remorso vão... / Dói-me nas veias. Amargo e quente / Cai,
gota a gota, do coração. /// E nestes versos de angústia rouca / Assim dos
lábios a vida corre / Deixando um acre sabor na boca / -Eu faço versos como
quem morre”!
Ah, ficamos companheiros de
recitação! Vinte anos depois, quando eu fui candidato a uma vaga na Academia
Sergipana de Letras, disse-me o professor Bonifácio: “Vou votar no amante da
poesia bandeiriana”.
José Antônio de Andrade Góis proferiu
uma sentença, condenando um médico, professor de Medicina da UFS, por erro
médico. Uma mulher passara por uma cirurgia e no seu interior foi deixada uma
mecha de gaze, ou uma pinça, que lhe causaria um sério problema. Levada a
Maceió, terra da família do esposo, viera a falecer por infecção generalizada.
O médico que a atendera na capital
alagoana enviou para o colega que fizera a cirurgia em Aracaju, um relatório
detalhado com as intercorrências registradas. Mas, propositalmente, ou não,
entregara o dito relatório em mãos, ao viúvo. De posse do relatório, ele ingressou
com ação civil por reparação de danos.
A ação caiu para o juiz Antônio Góis,
nosso querido mestre, que foi, aliás, o paraninfo da minha turma, em 1980.
Sentença proferida, talvez tenha sido a primeira sentença sergipana a condenar
um cirurgião por erro médico, ou uma das primeiras, mas com enorme repercussão
em face de o condenado, como já foi referido, ser professor de Medicina e de
grande reputação nos meios médicos e na sociedade sergipana.
A repercussão do caso foi tão grande,
que alunos de Medicina da UFS publicaram uma moção em um jornal da capital, em
favor do seu professor. E nós de Direito fizemos o mesmo em desagravo ao nosso
mestre. A sentença fora reformada no Tribunal de Justiça. Góis sentiu-se
desprestigiado pelos desembargadores.
Ameaçou deixar a magistratura, pois,
à época, os vencimentos de professor da UFS eram maiores do que o subsídio de
juiz. Numa manhã, após a aula de Direito Civil – Obrigações – alguns da minha
turma se reuniram com Góis, embaixo do oitizeiro da frente da Faculdade, para
demovê-lo de tal decisão.
Ponderamos muito. À certa altura, ele
disse: “Eu sei que só poderei chegar a desembargador por antiguidade. A maioria
deles não me quer por lá”. Bem. Com o tempo, ele se acalmou. Em 1994, na
presidência de Aloísio de Abreu Lima, no TJ, este, um amigo querido da minha
família e meu, em particular, assim como a Dra. Izabel, sua esposa, minha
conterrânea, eis Antônio Góis feito desembargador, por merecimento. Foi um
preito de justiça, que Aloísio defendeu com unhas e dentes. Pessoalmente, eu
vibrei muito. Pena que Góis morreu tão moço! Um mestre de primeira linha.
Ao contrário de Monteirinho, Góis não
dispensava uma falta de ninguém. Nisso, era um “Caxias”. Um colega nosso,
Cláudio Aloísio, era da PETROBRAS e trabalhava em Carmópolis. Chegava cansado
do plantão por lá. Às vezes, faltava. E eis que ultrapassara, em faltas, o
limite de 25% das aulas. Estaria reprovado, por uma ou duas faltas.
Uma comissão da minha turma foi a
Góis pedir clemência para o nosso colega. Intransigente, ele disse que não
poderia fazer nada. Não teve jeito. Parlamentamos, mas nada. Ficamos bravos com
ele. Porém, ao sair o resultado final, eis que o colega estava aprovado. O
coração do mestre não era tão duro assim.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras,
da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e
do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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