domingo, 7 de maio de 2023

BONS TEMPOS NO CURSO DE DIREITO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

No prédio da velha Faculdade, “seu” Abílio, o garçom, sempre impecável, envergando paletó branco e gravata borboleta, chegava à sala de aula, o professor João de Araújo Monteiro discorrendo sobre algo, e dizia: “Dr. Monteiro, aqui tem duas capacidades em Direito, primeiro eu e, depois, o senhor”. O velho Monteiro soltava alguns impropérios e a gente gargalhava. Primeiro era seu Abílio, claro, depois, o professor, na sapiência jurídica.

O professor Monteirinho não fazia chamada. A disciplina Direito Previdenciário era propícia para quem gostava de gazear. No dia das provas, a sala estava abarrotada. Muitos alunos de outros cursos matriculavam-se na disciplina, como optativa. Na primeira prova do semestre em que eu fiz a disciplina, algumas meninas de Serviço Social estavam atônitas.

Não sabiam, nada, porque não frequentaram as aulas. Estavam paradas diante da prova, sem saber como responder às questões. De repente, Monteirinho dirigiu-se a uma delas e, pegando a CLPS, que estava sobre a carteira, disse: “Minha filha, abra este livro e copie as respostas, senão você vai se lascar”. Foi um alívio. Todas passaram a manusear o exemplar da Consolidação das Leis da Previdência Social em busca das respostas.

O professor Bonifácio Fortes às vezes perdia a calma, quando passavam alunos fazendo algazarra no corredor. Numa dessas vezes, ele bateu as duas bandas da porta da frente (eram duas portas de cada lado) e gritou: “Absurdo! Não se pode dar aula sossegado nesta casa. Vou me aposentar para ler minhas poesias prediletas, para ler Manuel Bandeira”.

E começou a recitar versos do poema “Desencanto” do poeta pernambucano, que Drummond o chamava de “o mais ilustre dos nossos poetas”: “Eu faço versos como quem chora / De desalento... de desencanto... / Fecha o meu livro se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto”. Parou.

Esquecera o resto do poema. Então, levantando-me, continuei a declamar: “Meu verso é sangue, volúpia ardente / Tristeza esparsa... remorso vão... / Dói-me nas veias. Amargo e quente / Cai, gota a gota, do coração. /// E nestes versos de angústia rouca / Assim dos lábios a vida corre / Deixando um acre sabor na boca / -Eu faço versos como quem morre”!

Ah, ficamos companheiros de recitação! Vinte anos depois, quando eu fui candidato a uma vaga na Academia Sergipana de Letras, disse-me o professor Bonifácio: “Vou votar no amante da poesia bandeiriana”.

José Antônio de Andrade Góis proferiu uma sentença, condenando um médico, professor de Medicina da UFS, por erro médico. Uma mulher passara por uma cirurgia e no seu interior foi deixada uma mecha de gaze, ou uma pinça, que lhe causaria um sério problema. Levada a Maceió, terra da família do esposo, viera a falecer por infecção generalizada.

O médico que a atendera na capital alagoana enviou para o colega que fizera a cirurgia em Aracaju, um relatório detalhado com as intercorrências registradas. Mas, propositalmente, ou não, entregara o dito relatório em mãos, ao viúvo. De posse do relatório, ele ingressou com ação civil por reparação de danos.

A ação caiu para o juiz Antônio Góis, nosso querido mestre, que foi, aliás, o paraninfo da minha turma, em 1980. Sentença proferida, talvez tenha sido a primeira sentença sergipana a condenar um cirurgião por erro médico, ou uma das primeiras, mas com enorme repercussão em face de o condenado, como já foi referido, ser professor de Medicina e de grande reputação nos meios médicos e na sociedade sergipana.

A repercussão do caso foi tão grande, que alunos de Medicina da UFS publicaram uma moção em um jornal da capital, em favor do seu professor. E nós de Direito fizemos o mesmo em desagravo ao nosso mestre. A sentença fora reformada no Tribunal de Justiça. Góis sentiu-se desprestigiado pelos desembargadores.

Ameaçou deixar a magistratura, pois, à época, os vencimentos de professor da UFS eram maiores do que o subsídio de juiz. Numa manhã, após a aula de Direito Civil – Obrigações – alguns da minha turma se reuniram com Góis, embaixo do oitizeiro da frente da Faculdade, para demovê-lo de tal decisão.

Ponderamos muito. À certa altura, ele disse: “Eu sei que só poderei chegar a desembargador por antiguidade. A maioria deles não me quer por lá”. Bem. Com o tempo, ele se acalmou. Em 1994, na presidência de Aloísio de Abreu Lima, no TJ, este, um amigo querido da minha família e meu, em particular, assim como a Dra. Izabel, sua esposa, minha conterrânea, eis Antônio Góis feito desembargador, por merecimento. Foi um preito de justiça, que Aloísio defendeu com unhas e dentes. Pessoalmente, eu vibrei muito. Pena que Góis morreu tão moço! Um mestre de primeira linha.

Ao contrário de Monteirinho, Góis não dispensava uma falta de ninguém. Nisso, era um “Caxias”. Um colega nosso, Cláudio Aloísio, era da PETROBRAS e trabalhava em Carmópolis. Chegava cansado do plantão por lá. Às vezes, faltava. E eis que ultrapassara, em faltas, o limite de 25% das aulas. Estaria reprovado, por uma ou duas faltas.

Uma comissão da minha turma foi a Góis pedir clemência para o nosso colega. Intransigente, ele disse que não poderia fazer nada. Não teve jeito. Parlamentamos, mas nada. Ficamos bravos com ele. Porém, ao sair o resultado final, eis que o colega estava aprovado. O coração do mestre não era tão duro assim.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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