domingo, 25 de junho de 2023

A ORIGEM DA COVID-19. TEM ALGUMA IMPORTÂNCIA?


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O conhecimento da origem de uma emergência em saúde pública é essencial para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, de mitigação e, sobretudo, de prevenção porque, seguramente, outras virão. Estamos no quarto ano da pandemia da Covid-19 e ainda existe intenso debate, tanto no cenário político como no científico sobre o surgimento e a disseminação do nefasto patógeno.

As duas principais hipóteses, são: doença naturalmente transmitida aos seres humanos por animais (Zoonose), ocorrida, provavelmente, no Mercado Atacadista de Frutos do Mar, Huanan, na cidade de Wuhan, província chinesa de Hubei, ou um escape acidental de laboratório, do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV).

Há, ainda, aqueles que acreditam que este flagelo resultou de uma ação deliberada do governo chinês, visando lucrar com a possível venda de vacinas. Por sua vez, em março de 2020, o Ministério das Relações Exteriores da China alegou, sem provas, que militares americanos haviam introduzido o SARS CoV-2, durante uma visita a Wuhan, levando o então presidente Donald Trump a alegar que o vírus se originou no WIV.

Em geral, o armazenamento e manuseio de produtos biológicos em laboratórios de pesquisa, seguem rigorosas normas de gerenciamento e aqueles envolvidos nos experimentos, também passam por treinamentos específicos de segurança, sendo, portanto, rara a ocorrência de infecção laboratorial.

Todavia, é possível que ocorram acidentes com coronavírus de morcego que são usados ​​em diferentes laboratórios, ao redor do mundo. Portanto, os defensores da teoria do escape laboratorial acidental do vírus, enfatizam a localização geográfica do WIV, exatamente na cidade onde a peste começou.

A determinação da origem do novo coronavírus e o enfrentamento da Covid-19, deveriam ser, estritamente, assuntos científicos, todavia, infelizmente, passaram a ser tratados politicamente, em detrimento das consequências negativas para a população. Das três possibilidades - natural, acidental ou deliberada, a evidência científica mais plausível recai sobre o surgimento natural, uma vez que, a maioria dos primeiros casos da virose foram conectados ao mercado Huanan, e o mapeamento epidemiológico revelou uma concentração de casos naquela localidade. O vírus passou, provavelmente, do morcego para um mamífero intermediário, e dele para o ser humano. Ainda, a transmissão de um morcego diretamente para um humano também tem sido apontada como uma hipótese possível.

Independentemente da real origem da Covid, surtos futuros podem resultar de causas naturais, acidentais ou mesmo, intencionais e, portanto, melhorar a nossa capacidade para entender e provar teorias será crítico. Na esteira desta interlocução, foi publicado, recentemente, no icônico periódico New England Journal of Medicine (Doi: 10.1056/NEJMp2305081) um artigo, no qual os autores propuseram três importantes passos para fortalecer a preparação contra eventuais pandemias: a) evitar as zoonoses, mediante uma estratégia que vincule a saúde animal, humana e ambiental. Aproximadamente 60% dos surtos de doenças nunca acometeram humanos, surgem de zoonoses naturais, portanto, há necessidade de regulamentação mais rigorosa do funcionamento de mercados, com a aplicação de leis que, efetivamente, coíbam o comércio de animais silvestres. Por outro lado, o combate ao desmatamento desenfreado e o fomento da agricultura sustentável, beneficiaria o meio ambiente e criaria um amortecedor entre a vida selvagem e humanos; b) fortalecimento da segurança dos laboratórios para reduzir os riscos de liberação não intencional de um patógeno perigoso, mediante a observação rigorosa dos padrões internacionais de gerenciamento do biorisco e, c) as pesquisas de manipulação genética devem ser adequadamente supervisionadas, para redução do risco de potencial pandêmico, que pode ser liberado de forma acidental ou intencionalmente.

Desde o início da pandemia que existem controvérsias sobre a sua origem, e as investigações, necessárias para desvendar este mistério e preparar a humanidade para os surtos que certamente ocorrerão, prosseguem mais lentamente que o ciclo de notícias, muitas vezes levianas que ganham substancial espaço nas mídias sociais.

Finalizo, citando a escritora e filósofa francesa, Simone Adolphine Weil: “Se alguém reconhece uma contradição, é vergonhoso apoiá-la”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação. 

O FILHO DO PADRE


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pobre Toniquinho de Júlia Gorda. Por onde passava, ouvia o berro de alguém: “Toniquinho, filho do padre”! Um horror, para ele, que desgostava do apelido. Uma blasfêmia para Dona Marocas do finado Zé Boa Morte, maior tocador de rabeca dos Alecrins ao Riacho Fundo, do Mandacaru ao Brejinho de Argolo.

Aliás, a bem dizer, não só dali, mas do mundo inteiro. Nunca que haveria de aparecer um tocador que lhe pudesse fazer sombra, se vivo ainda fosse. Coitado! Morreu de caganeira. Que morte horrorosa! O sujeito morrer se esvaindo em cocô, daquele jeito. E tudo porque, segundo consta, o pobre homem comera, enganado, uma carne frita de urubu, como se fosse especial galinha de cabidela. Urubu é bicho carniceiro, de tudo comendo em podridão. Por isso, se dizia que o sujeito de malcheirosas flatulências era chamado “tripa de urubu”.

Júlia Gorda nunca se incomodou de saber que chamavam o filho único de “filho do padre”. Mas, de qual padre, se naquelas lonjuras sertanejas um padre não botava os pés desde que Maneca Porto comprara a imagem de Santo Antônio de Lisboa, para a capelinha daquele lugar, de nome Buraco d’Anta, onde Judas perdera as botas e o demo fazia questão de não passar?

Lugar infeliz. Diziam até que o atraso do povoado se devia à praga de um padre, de nome Pe. Fonsequinha, que, por causa de uma pilhéria do finado Américo de Pedro Bala, sapecara uma bênção de mão esquerda, esconjurando o lugar e o povo dali. Povinho miúdo em atoleimadas atitudes.

Povinho arrastador de asas para coisas de feitiçaria por conta de um negro antigo, dos tempos da escravidão, que fizera morada ali perto, na curva do Pé do Veado, onde Domingos Quaresmeira tivera, em 42, uma luta desembestada contra um encantado do além, que lhe tomara o pouco sangue que restava nas veias do corpo amarelado.

Toniquinho, filho do padre, era um molecote de doze anos, virado nas seiscentas. Ativo, como um capetinha, vivia correndo daqui para ali e dali para acolá, fazendo mandados da mãe e de quem lhe pudesse dar uma nica. Seguro que só fundo de sapo, que não se abria para nada, nem que um caminhão passasse por cima. Isso acontecendo, qualquer sapo botava as entranhas pela boca, mas não pelos fundilhos.

Toniquinho era seguro com as nicas angariadas, pensando, um dia, conseguir juntar o suficiente para comprar uma sanfoninha de segunda ou terceira mão, que era o seu sonho de relevância maior. Aspirava tornar-se um festejado sanfoneiro, maior que Cirilo Braço Torto, que Joca Tanajura e Militão Zarolho, os três maiores sanfoneiros de todo o sertão do Mataripe.

O filho do padre almejava, nos seus doze anos, ser mais conhecido que o próprio Zé Boa Morte, o tocador de rabeca, que até disco de carnaúba tinha gravado, no Recife, ao ser descoberto por um radialista, numa festa de São João. Pobre homem, que nunca recebera nadica de nada pelas tocatas que saíram na carnaúba de setenta e oito rotações, coisa mais antiga do que a posição de obrar de cócoras.

Um dia, ali mesmo, naquele fim de mundo, apareceu um sanfoneiro, mais perdido do que cego em tiroteio. Era domingo. De rota batida para Areia Grossa, vila distante umas doze léguas, errara o caminho e dera por ali. Sendo domingo, embora naquele povoado de gente miúda, qualquer dia da semana era igual, um ao outro, alguém cismou de fazer um furdunço à vista da sanfoninha de oito baixos do tocador.

Pois não foi que o furdunço varou a tarde e a noite, mais animado que pinto em lixo? Foi, sim. Desengonçados, os pares foram se formando, uns poucos, bem verdade, para saltitar ao som dos oito baixos de Virgílio Guedes, este o nome do sanfoneiro. Uma festança, para a leseira daquele lugar. Na época, Toniquinho tinha nove anos. Nunca mais saiu de sua cabeça de pouco juízo o desejo de ser sanfoneiro, para animar o sertão.

“Toniquinho, filho do padre”! Alguém o chamava, e lá ia ele, todo serelepe, embora sob protestos, na ânsia de prestar um serviço qualquer e merecer mais uma nica, que sua santa mãezinha guardava com esmerado zelo, contando tin-tin-tin por tin-tin-tin.

Deveras, Toniquinho era filho do padre. O seu pai, que Deus já o tinha, há uns cinco ou seis anos, era Antônio Conrado, vulgo, Tonho Padre, porque, na juventude, fora empregado no Seminário de Olinda. Só isso.

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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