José Lima Santana*
Pobre Toniquinho de Júlia Gorda. Por
onde passava, ouvia o berro de alguém: “Toniquinho, filho do padre”! Um horror,
para ele, que desgostava do apelido. Uma blasfêmia para Dona Marocas do finado
Zé Boa Morte, maior tocador de rabeca dos Alecrins ao Riacho Fundo, do
Mandacaru ao Brejinho de Argolo.
Aliás, a bem dizer, não só dali, mas
do mundo inteiro. Nunca que haveria de aparecer um tocador que lhe pudesse
fazer sombra, se vivo ainda fosse. Coitado! Morreu de caganeira. Que morte
horrorosa! O sujeito morrer se esvaindo em cocô, daquele jeito. E tudo porque,
segundo consta, o pobre homem comera, enganado, uma carne frita de urubu, como
se fosse especial galinha de cabidela. Urubu é bicho carniceiro, de tudo
comendo em podridão. Por isso, se dizia que o sujeito de malcheirosas
flatulências era chamado “tripa de urubu”.
Júlia Gorda nunca se incomodou de
saber que chamavam o filho único de “filho do padre”. Mas, de qual padre, se
naquelas lonjuras sertanejas um padre não botava os pés desde que Maneca Porto
comprara a imagem de Santo Antônio de Lisboa, para a capelinha daquele lugar,
de nome Buraco d’Anta, onde Judas perdera as botas e o demo fazia questão de
não passar?
Lugar infeliz. Diziam até que o
atraso do povoado se devia à praga de um padre, de nome Pe. Fonsequinha, que,
por causa de uma pilhéria do finado Américo de Pedro Bala, sapecara uma bênção
de mão esquerda, esconjurando o lugar e o povo dali. Povinho miúdo em
atoleimadas atitudes.
Povinho arrastador de asas para
coisas de feitiçaria por conta de um negro antigo, dos tempos da escravidão,
que fizera morada ali perto, na curva do Pé do Veado, onde Domingos Quaresmeira
tivera, em 42, uma luta desembestada contra um encantado do além, que lhe
tomara o pouco sangue que restava nas veias do corpo amarelado.
Toniquinho, filho do padre, era um
molecote de doze anos, virado nas seiscentas. Ativo, como um capetinha, vivia
correndo daqui para ali e dali para acolá, fazendo mandados da mãe e de quem
lhe pudesse dar uma nica. Seguro que só fundo de sapo, que não se abria para
nada, nem que um caminhão passasse por cima. Isso acontecendo, qualquer sapo
botava as entranhas pela boca, mas não pelos fundilhos.
Toniquinho era seguro com as nicas
angariadas, pensando, um dia, conseguir juntar o suficiente para comprar uma
sanfoninha de segunda ou terceira mão, que era o seu sonho de relevância maior.
Aspirava tornar-se um festejado sanfoneiro, maior que Cirilo Braço Torto, que
Joca Tanajura e Militão Zarolho, os três maiores sanfoneiros de todo o sertão
do Mataripe.
O filho do padre almejava, nos seus
doze anos, ser mais conhecido que o próprio Zé Boa Morte, o tocador de rabeca,
que até disco de carnaúba tinha gravado, no Recife, ao ser descoberto por um
radialista, numa festa de São João. Pobre homem, que nunca recebera nadica de
nada pelas tocatas que saíram na carnaúba de setenta e oito rotações, coisa
mais antiga do que a posição de obrar de cócoras.
Um dia, ali mesmo, naquele fim de
mundo, apareceu um sanfoneiro, mais perdido do que cego em tiroteio. Era
domingo. De rota batida para Areia Grossa, vila distante umas doze léguas,
errara o caminho e dera por ali. Sendo domingo, embora naquele povoado de gente
miúda, qualquer dia da semana era igual, um ao outro, alguém cismou de fazer um
furdunço à vista da sanfoninha de oito baixos do tocador.
Pois não foi que o furdunço varou a
tarde e a noite, mais animado que pinto em lixo? Foi, sim. Desengonçados, os
pares foram se formando, uns poucos, bem verdade, para saltitar ao som dos oito
baixos de Virgílio Guedes, este o nome do sanfoneiro. Uma festança, para a
leseira daquele lugar. Na época, Toniquinho tinha nove anos. Nunca mais saiu de
sua cabeça de pouco juízo o desejo de ser sanfoneiro, para animar o sertão.
“Toniquinho, filho do padre”! Alguém
o chamava, e lá ia ele, todo serelepe, embora sob protestos, na ânsia de
prestar um serviço qualquer e merecer mais uma nica, que sua santa mãezinha
guardava com esmerado zelo, contando tin-tin-tin por tin-tin-tin.
Deveras, Toniquinho era filho do
padre. O seu pai, que Deus já o tinha, há uns cinco ou seis anos, era Antônio
Conrado, vulgo, Tonho Padre, porque, na juventude, fora empregado no Seminário
de Olinda. Só isso.
Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário