domingo, 25 de junho de 2023

O FILHO DO PADRE


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pobre Toniquinho de Júlia Gorda. Por onde passava, ouvia o berro de alguém: “Toniquinho, filho do padre”! Um horror, para ele, que desgostava do apelido. Uma blasfêmia para Dona Marocas do finado Zé Boa Morte, maior tocador de rabeca dos Alecrins ao Riacho Fundo, do Mandacaru ao Brejinho de Argolo.

Aliás, a bem dizer, não só dali, mas do mundo inteiro. Nunca que haveria de aparecer um tocador que lhe pudesse fazer sombra, se vivo ainda fosse. Coitado! Morreu de caganeira. Que morte horrorosa! O sujeito morrer se esvaindo em cocô, daquele jeito. E tudo porque, segundo consta, o pobre homem comera, enganado, uma carne frita de urubu, como se fosse especial galinha de cabidela. Urubu é bicho carniceiro, de tudo comendo em podridão. Por isso, se dizia que o sujeito de malcheirosas flatulências era chamado “tripa de urubu”.

Júlia Gorda nunca se incomodou de saber que chamavam o filho único de “filho do padre”. Mas, de qual padre, se naquelas lonjuras sertanejas um padre não botava os pés desde que Maneca Porto comprara a imagem de Santo Antônio de Lisboa, para a capelinha daquele lugar, de nome Buraco d’Anta, onde Judas perdera as botas e o demo fazia questão de não passar?

Lugar infeliz. Diziam até que o atraso do povoado se devia à praga de um padre, de nome Pe. Fonsequinha, que, por causa de uma pilhéria do finado Américo de Pedro Bala, sapecara uma bênção de mão esquerda, esconjurando o lugar e o povo dali. Povinho miúdo em atoleimadas atitudes.

Povinho arrastador de asas para coisas de feitiçaria por conta de um negro antigo, dos tempos da escravidão, que fizera morada ali perto, na curva do Pé do Veado, onde Domingos Quaresmeira tivera, em 42, uma luta desembestada contra um encantado do além, que lhe tomara o pouco sangue que restava nas veias do corpo amarelado.

Toniquinho, filho do padre, era um molecote de doze anos, virado nas seiscentas. Ativo, como um capetinha, vivia correndo daqui para ali e dali para acolá, fazendo mandados da mãe e de quem lhe pudesse dar uma nica. Seguro que só fundo de sapo, que não se abria para nada, nem que um caminhão passasse por cima. Isso acontecendo, qualquer sapo botava as entranhas pela boca, mas não pelos fundilhos.

Toniquinho era seguro com as nicas angariadas, pensando, um dia, conseguir juntar o suficiente para comprar uma sanfoninha de segunda ou terceira mão, que era o seu sonho de relevância maior. Aspirava tornar-se um festejado sanfoneiro, maior que Cirilo Braço Torto, que Joca Tanajura e Militão Zarolho, os três maiores sanfoneiros de todo o sertão do Mataripe.

O filho do padre almejava, nos seus doze anos, ser mais conhecido que o próprio Zé Boa Morte, o tocador de rabeca, que até disco de carnaúba tinha gravado, no Recife, ao ser descoberto por um radialista, numa festa de São João. Pobre homem, que nunca recebera nadica de nada pelas tocatas que saíram na carnaúba de setenta e oito rotações, coisa mais antiga do que a posição de obrar de cócoras.

Um dia, ali mesmo, naquele fim de mundo, apareceu um sanfoneiro, mais perdido do que cego em tiroteio. Era domingo. De rota batida para Areia Grossa, vila distante umas doze léguas, errara o caminho e dera por ali. Sendo domingo, embora naquele povoado de gente miúda, qualquer dia da semana era igual, um ao outro, alguém cismou de fazer um furdunço à vista da sanfoninha de oito baixos do tocador.

Pois não foi que o furdunço varou a tarde e a noite, mais animado que pinto em lixo? Foi, sim. Desengonçados, os pares foram se formando, uns poucos, bem verdade, para saltitar ao som dos oito baixos de Virgílio Guedes, este o nome do sanfoneiro. Uma festança, para a leseira daquele lugar. Na época, Toniquinho tinha nove anos. Nunca mais saiu de sua cabeça de pouco juízo o desejo de ser sanfoneiro, para animar o sertão.

“Toniquinho, filho do padre”! Alguém o chamava, e lá ia ele, todo serelepe, embora sob protestos, na ânsia de prestar um serviço qualquer e merecer mais uma nica, que sua santa mãezinha guardava com esmerado zelo, contando tin-tin-tin por tin-tin-tin.

Deveras, Toniquinho era filho do padre. O seu pai, que Deus já o tinha, há uns cinco ou seis anos, era Antônio Conrado, vulgo, Tonho Padre, porque, na juventude, fora empregado no Seminário de Olinda. Só isso.

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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