quarta-feira, 22 de julho de 2020

AFINAL, QUEM FOI GETÚLIO VARGAS?




 

 

Claudefranklin Monteiro Santos*

 

 

            “Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo a caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Com estas palavras, uma das figuras mais fascinantes e contraditórias que o Brasil já conheceu, encerrou a sua jornada para ficar na memória dos brasileiros das formas mais diversas. Não somente na memória daquela geração, mas também na das que a sucederam.

            “Caudilho”, revolucionário, ditador, nacionalista, progressista, popular e democrática. Poucas pessoas na história política do país conseguiram assumir tantas características, o que rendeu a Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) uma das melhores (e piores também) representações de grande estadista. Esta figura camaleônica não dispensou qualquer momento para ficar na condição de protagonista político. Daí, a outra peja que lhe foi atribuída: a de oportunista. Ao que costumava objetar, dizendo: “Não sou oportunista. Apenas, quando o cavalo passa selado, eu monto”.

            Em que pesem todas coisas que se disseram ao seu respeito, a grande maioria há de concordar que o gaúcho de São Borja tinha carisma e muita habilidade política, a ponto de transformar seu suicídio, em 24 de agosto de 1954, no seu último e mais ousado gesto político, que teria freado ânimos golpistas e prorrogado a ânsia de parte dos militares em chegar (ou voltar) ao poder.

            Na História da República no Brasil, ninguém governou este país por tanto tempo. Foram aproximadamente dezoito anos no poder: 1930-1945; depois, 1951-1954. Com direito a fazer seu sucessor no intervalo entre os dois períodos, com o governo Eurico Gaspar Dutra. Dessa forma, o Palácio do Catete, sede do Governo Federal à época, no Rio de Janeiro, tornou-se praticamente uma extensão de sua casa. Aliás, grande equívoco de algumas lideranças até hoje, qual seja o de agregar seus familiares para seus domínios e fazer destes os seus domínios particulares, acima das pessoas e das instituições.

            Nesse sentido, pode-se dizer que Getúlio Vargas dominou politicamente a cena política do país nas décadas de 30, 40 e 50 do século XX. Foi o mentor da Revolução de 1930, que depôs o Presidente Washington Luiz, pondo fim, em tese, ao domínio das oligarquias do chamado Café-com-Leite, à política dos governadores. Além disso, deslocou as atenções para o Sul do país. Na condição de Presidente da República, nessa primeira passagem pelo poder, Vargas procurou empreender medidas para dar novo rumo à nação, mas acabou por firmar-se no poder e instalou um regime autoritário.

            A ditadura varguista ficou conhecida por Estado Novo (1937-1945). Getúlio Vargas procurou imprimir um caráter desenvolvimentista ao seu governo, mas também se valeu de toda a aparelhagem de todo e qualquer regime de exceções, como o uso da censura e de medidas mais duras do ponto de vista da repressão. Foi por essa época, sobretudo, que ele procurou construir a sua imagem pública à semelhança do que fizera em outros tempos outros estadistas, a exemplo de Luís XIV, da França (1643-1715).

            Refiro-me ao culto da imagem do homem público. Getúlio Vargas se utilizou da propaganda direcionada para passar a ideia de grande governante. O rádio, o cinema e as comemorações cívicas estiveram no bojo das manobras para idealizar o estadista Vargas. Algo que lhe rendeu, por exemplo, a alcunha de “pai dos pobres”. Aliás, é importante dizer que essa e outras de suas imagens foram amplamente apropriadas e trabalhadas pela Música Popular Brasileira, inclusive nos Sambas-enredos das Escola de Samba do Rio e de São Paulo, no teatro, e no cinema e na TV, do qual destaco duas produções em especial: a minissérie Agosto (Rede Globo, 1993, de Jorge Furtado) e o filme Getúlio (2014, de João Jardim, com Toni Ramos).

            Getúlio Vargas encerrou a carreira política e a vida como democrata, embora a oposição, a exemplo de Afonso Arinos entendesse que uma vez ditador sempre ditador, que não havia redenção para quem se usurpou do poder tendo rasgado dois textos constitucionais. Assim, Vargas retornou à Presidência da República no que se convencionou chamar de “nos braços do povo”, pelo voto. Ele manteve o viés progressista e desenvolvimentista, agora com uma faceta trabalhista. É fato que colaborou para dar novas feições ao país do ponto de vista econômico, mas foi um governo turbulento do ponto de vista político

            A essa altura do campeonato, Getúlio colecionava dos admiradores e da oposição uma série de estigmas: “ambivalente”, “ambíguo”, “raposa velha”. Típico de quem já sofria a exposição de muito tempo na vida pública. Por isso mesmo, defendo o fim do carreirismo político e a renovação da vida política, pelo menos a cada oito anos.

            Seu principal opositor e desafeto foi o jornalista Carlos Lacerda (UDN), candidato à Deputado Federal à época, que liderou uma campanha sem tréguas contra Getúlio Vargas, que contou com a corrupção interna de assessores e familiares, atentados e assassinatos liderados por sua guarda pessoal presidencial e a com a reação de setores das Forças Armadas. Era o início de sua derrocada. Estava montado todo o clima para que o fizesse cometer suicídio.

            “Daqui só saio morto”. Repetia a cada investida da oposição e de também de uma ampla frente considerada golpista. Os últimos dias de Getúlio Vargas foram de grande tensão, contando com o apoio de sua filha Alzira Vargas e de alguns assessores diretos, a exemplo de Osvaldo Aranha e Tancredo Neves. Com ataques de vários lados, inclusive da imprensa, ele optou por algo que talvez ninguém imaginasse, para além da queda ou renúncia.

            Nesse sentido, muito já disse e ainda há muito a ser dito e analisado sobre o suicídio de Vargas. Via de regra, quando alguém chega a esse ponto está desesperado e não consegue perceber outra saída para algo que lhe aflige. Mas, em se tratando de Getúlio há que ponderar mais de uma vez e procurar entender o ato até mesmo como um ato político, para alguns até mesmo frio e inteligente.

            Em linhas gerais, Getúlio Vargas foi uma pessoa controvertida, cheia de incógnitas, que ainda rende inúmeras biografias e estudos, que quando pensamos serem definitivas, novos fatos e nuances surgem a enriquecer esse terreno fértil de análises e discussões sobre a vida política do Brasil, que segue sua toada de viver no limite entre a democracia, sua manutenção e desenvolvimento, e os fantasmas aterrorizantes dos governos e ideologias autoritárias.


*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor e História e membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Sergipana de Educação. 

 

 


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