Claudefranklin
Monteiro Santos*
“Agora vos ofereço a minha morte.
Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo a caminho da eternidade e saio da
vida para entrar na História”. Com estas palavras, uma das figuras mais
fascinantes e contraditórias que o Brasil já conheceu, encerrou a sua jornada
para ficar na memória dos brasileiros das formas mais diversas. Não somente na
memória daquela geração, mas também na das que a sucederam.
“Caudilho”, revolucionário, ditador,
nacionalista, progressista, popular e democrática. Poucas pessoas na história
política do país conseguiram assumir tantas características, o que rendeu a Getúlio
Dornelles Vargas (1882-1954) uma das melhores (e piores também) representações
de grande estadista. Esta figura camaleônica não dispensou qualquer momento
para ficar na condição de protagonista político. Daí, a outra peja que lhe foi atribuída:
a de oportunista. Ao que costumava objetar, dizendo: “Não sou oportunista.
Apenas, quando o cavalo passa selado, eu monto”.
Em que pesem todas coisas que se disseram
ao seu respeito, a grande maioria há de concordar que o gaúcho de São Borja
tinha carisma e muita habilidade política, a ponto de transformar seu suicídio,
em 24 de agosto de 1954, no seu último e mais ousado gesto político, que teria
freado ânimos golpistas e prorrogado a ânsia de parte dos militares em chegar
(ou voltar) ao poder.
Na História da República no Brasil,
ninguém governou este país por tanto tempo. Foram aproximadamente dezoito anos
no poder: 1930-1945; depois, 1951-1954. Com direito a fazer seu sucessor no
intervalo entre os dois períodos, com o governo Eurico Gaspar Dutra. Dessa
forma, o Palácio do Catete, sede do Governo Federal à época, no Rio de Janeiro,
tornou-se praticamente uma extensão de sua casa. Aliás, grande equívoco de
algumas lideranças até hoje, qual seja o de agregar seus familiares para seus
domínios e fazer destes os seus domínios particulares, acima das pessoas e das
instituições.
Nesse sentido, pode-se dizer que Getúlio
Vargas dominou politicamente a cena política do país nas décadas de 30, 40 e 50
do século XX. Foi o mentor da Revolução de 1930, que depôs o Presidente
Washington Luiz, pondo fim, em tese, ao domínio das oligarquias do chamado
Café-com-Leite, à política dos governadores. Além disso, deslocou as atenções para
o Sul do país. Na condição de Presidente da República, nessa primeira passagem
pelo poder, Vargas procurou empreender medidas para dar novo rumo à nação, mas
acabou por firmar-se no poder e instalou um regime autoritário.
A ditadura varguista ficou conhecida
por Estado Novo (1937-1945). Getúlio Vargas procurou imprimir um caráter
desenvolvimentista ao seu governo, mas também se valeu de toda a aparelhagem de
todo e qualquer regime de exceções, como o uso da censura e de medidas mais
duras do ponto de vista da repressão. Foi por essa época, sobretudo, que ele
procurou construir a sua imagem pública à semelhança do que fizera em outros
tempos outros estadistas, a exemplo de Luís XIV, da França (1643-1715).
Refiro-me ao culto da imagem do
homem público. Getúlio Vargas se utilizou da propaganda direcionada para passar
a ideia de grande governante. O rádio, o cinema e as comemorações cívicas estiveram
no bojo das manobras para idealizar o estadista Vargas. Algo que lhe rendeu, por
exemplo, a alcunha de “pai dos pobres”. Aliás, é importante dizer que essa e
outras de suas imagens foram amplamente apropriadas e trabalhadas pela Música
Popular Brasileira, inclusive nos Sambas-enredos das Escola de Samba do Rio e
de São Paulo, no teatro, e no cinema e na TV, do qual destaco duas produções em
especial: a minissérie Agosto (Rede Globo, 1993, de Jorge Furtado) e o filme
Getúlio (2014, de João Jardim, com Toni Ramos).
Getúlio Vargas encerrou a carreira política
e a vida como democrata, embora a oposição, a exemplo de Afonso Arinos entendesse
que uma vez ditador sempre ditador, que não havia redenção para quem se usurpou
do poder tendo rasgado dois textos constitucionais. Assim, Vargas retornou à
Presidência da República no que se convencionou chamar de “nos braços do povo”,
pelo voto. Ele manteve o viés progressista e desenvolvimentista, agora com uma
faceta trabalhista. É fato que colaborou para dar novas feições ao país do
ponto de vista econômico, mas foi um governo turbulento do ponto de vista político
A essa altura do campeonato, Getúlio
colecionava dos admiradores e da oposição uma série de estigmas: “ambivalente”,
“ambíguo”, “raposa velha”. Típico de quem já sofria a exposição de muito tempo
na vida pública. Por isso mesmo, defendo o fim do carreirismo político e a
renovação da vida política, pelo menos a cada oito anos.
Seu principal opositor e desafeto
foi o jornalista Carlos Lacerda (UDN), candidato à Deputado Federal à época,
que liderou uma campanha sem tréguas contra Getúlio Vargas, que contou com a
corrupção interna de assessores e familiares, atentados e assassinatos
liderados por sua guarda pessoal presidencial e a com a reação de setores das
Forças Armadas. Era o início de sua derrocada. Estava montado todo o clima para
que o fizesse cometer suicídio.
“Daqui só saio morto”. Repetia a
cada investida da oposição e de também de uma ampla frente considerada golpista.
Os últimos dias de Getúlio Vargas foram de grande tensão, contando com o apoio
de sua filha Alzira Vargas e de alguns assessores diretos, a exemplo de Osvaldo
Aranha e Tancredo Neves. Com ataques de vários lados, inclusive da imprensa, ele
optou por algo que talvez ninguém imaginasse, para além da queda ou renúncia.
Nesse sentido, muito já disse e
ainda há muito a ser dito e analisado sobre o suicídio de Vargas. Via de regra,
quando alguém chega a esse ponto está desesperado e não consegue perceber outra
saída para algo que lhe aflige. Mas, em se tratando de Getúlio há que ponderar
mais de uma vez e procurar entender o ato até mesmo como um ato político, para
alguns até mesmo frio e inteligente.
Em linhas gerais, Getúlio Vargas foi
uma pessoa controvertida, cheia de incógnitas, que ainda rende inúmeras
biografias e estudos, que quando pensamos serem definitivas, novos fatos e
nuances surgem a enriquecer esse terreno fértil de análises e discussões sobre
a vida política do Brasil, que segue sua toada de viver no limite entre a democracia,
sua manutenção e desenvolvimento, e os fantasmas aterrorizantes dos governos e
ideologias autoritárias.
*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor e História e membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Sergipana de Educação.
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