sábado, 25 de julho de 2020

AS PESCARIAS DA MINHA AVÓ




José Lima Santana*


Menino, lá pelos meus nove, dez anos, minha avó Lourdes, nas férias escolares, me levava para as suas pescarias, no riacho do Trampolim, que nasce no açude da nossa cidade, Nossa Senhora das Dores, e que fica ao pé da zona urbana, descendo pela Rua Barão do Rio Branco, antiga Rua do Quartel, passando pela Baixa do Sapo, para quem vem do centro da cidade. Mas, para quem mora no Bairro João Ventura (subúrbio no meu tempo de criança), toma-se o rumo do antigo beco do açude, hoje, Rua Tobias Barreto, exatamente onde se situava a casa da minha avó. As pescarias eram de jereré e a companheira da minha avó era tia Maria, mulher do meu tio-avô Vangelo, irmão da minha avó. Na verdade, o riacho, que, descendo um pouco mais, passa a se chamar Gonçalão e, mais adiante, Caiçara, é, na verdade, o riacho Siriri Morto (não sei de onde vem essa estúpida nomenclatura, pois o riacho é bem vivo e corta, meio a meio, a minha propriedade rural, herdada do meu pai), que se junta ao riacho Siriri Vivo, para formar o rio Siriri, afluente do rio Japaratuba. Eu adorava as pescarias. Qual o menino que, criado no interior, não gostava de aventuras? As pescarias ocorriam pela manhã, às vezes passando um pouco do meio-dia. Vovó tinha o cuidado de sempre me fazer levar um lanche e água para beber. Peixes pescados? Sarapó, jundiá, piau, e uns camarões de água doce, raros, mas que eram pescados nas tocas. Vovó só pescava calçada. Certa vez, ela arranjou com uma vizinha, Maria de Adalúcia, um par de sapatos vermelhos de salto alto, fora de uso. Dá para imaginar alguém pescando, metida nuns sapatos altos? Só mesmo a minha avó. Pois bem. Lá pelas tantas, vovó ficou atolada no riacho. Acho mesmo que ela meteu o pé num buraco. Deu trabalho. Tia Maria morria de rir e dizia: “Mulé, deixe o diabo desse sapato aí. Tire o pé e bora simbora”. Qual nada! Vovó insistia em se desatolar, para não perder os sapatos vermelhos de salto alto, a fim de usá-los noutra pescaria. Enfim, com a ajuda de tia Maria, ela se desvencilhou do atoleiro ou do buraco, sei lá. Naquele dia, nós rimos muito. Eu jamais entrava no riacho. Ia seguindo as duas pescadoras, carregando, além da matula com a merenda, o embornal para acomodar o produto das pescarias e um pequeno bastão, para alguma providência que se fizesse necessária. Medo só de duas coisas: boi brabo e cobra. Mas, felizmente, nesse sentido, nada jamais aconteceu para o meu lado, naquelas aventuras. Porém, dois fatos curiosos, que nunca me saíram da memória: uma cobra no jereré de tia Maria e uma vaca parida de novo, que se botou para a minha avó. Escaramuças. Dizem que bois têm problemas com a cor vermelha. Zangam-se. Disso eu não sabia nos meus tempos de acompanhante de pescarias. Numa daquelas idas ao riacho, minha avó vestia uma blusa vermelha e uma saia de ramagens em que predominava a mesma cor. Com pouco tempo que minha avô e tia Maria estavam na água, correndo os jererés aqui e ali, minha avó saiu do leito do riacho, no exato lugar que a água corria por entre umas pedras, fazendo um barulhinho gostoso de se ouvir, uma cançãozinha aquosa de dar gosto aos ouvidos da gente, ao menos aos meus ouvidos de menino atento às coisas da natureza. Eis que o jereré tinha enganchado numa ramagem e parece que rompeu uns fios, a carecer de reparo. Tão logo minha avó saiu do riacho, para a margem oposta àquela que eu margeava, uma vaca parida de novo berrou duas ou três vezes e botou-se para cima dela, que estava de costas para a cuidadosa mãe, atenta apenas ao conserto do jereré. Então, tia Maria gritou: “Lourdes, ói a vaca”! Minha avó olhou para trás e, mais que de repente, jogou o jereré em direção à vaca, que lhe foi cair sobre as pontas. E atirou-se na água rasa do riacho, estatelando-se logo abaixo das pedras onde a água rumorejava. Sorte dela. Ainda bem que naquele dia ela não estava com os sapatos vermelhos de salto alto. A vaca chegou à beira do riacho, soprando, mas, felizmente, recuou. O jereré enganchou-se nos chifres. A vaca baixava e balançava a cabeça, tentando desvencilhar-se do objeto incômodo, sem sucesso. Um caçador de saguis, Felipão de Bastião do finado Nonô Caganeira acudiu o animal, conseguindo, com a vara comprida de pegar saguis, livrar a vaca do artefato indesejado e, àquela altura, muito danificado. Pobre da minha avó, que teve de comprar outro jereré, que era bem confeccionado por Estelinha de Maria de Afonso Zambeta do Pau Que Chora, lugar, naquela época, de casas noturnas mal afamadas: “Amor Fugaz”, “Inferno Colorido”, “Toca Viola”. A outra situação, a da cobra no jereré, deu-se assim: tia Maria passava o jereré numa toca em busca de camarões, sujeitinhos cabreiros de dar gosto. Vai daqui e vai dali, eis que ela suspendeu o jereré para ver o que tinha conseguido. Sim, uns camarões! Mas também uma cobra, do tipo jararacuçu malha de traíra, não muito crescida. Aliás, dizia-se que jararacuçu dameava com traíra. Uma ilusão. O verbo damear, um neologismo, significa manter relações mais do que próximas. O tal verbo origina-se de mulher-dama, expressão aplicada, na nossa região, para designar mulher de vida livre, como se sabe. A serpente pareceu, ao menos tia Maria assim o disse depois, ajeitar-se no jereré para dar o bote, olhando para a cara dela com a língua bifurcada saindo e voltando para a boca, saindo e voltando. Num átimo, tia Maria gritou: “Tá bêba peste”! E atirou longe o jereré, riacho abaixo, que acabou se enganchando num toco caído. Vovó disse: “Mas, mulé, tu tá cum medo de cobra, dentro d’água? Tu num sabe que cobra num ofende na água”? Cobra não ofendia dentro d’água. Era a crença de pessoas incautas. Era voz corrente, então, dizer-se que cobra ao entrar na água deixava a peçonha numa folha, para a resgatar depois. Que crença mais inocente! Gigantesca ilusão! Numa das pescarias, as duas se prepararam para passar o dia todo no riacho. Levaram algumas bugigangas para comermos. Eu carregava a matula, como já disse. E era um pouquinho guloso, em fase de crescimento. Vai daqui e vai dali eu ia comendo uma coisinha ou outra. Lá pelas tantas, o sol a pino, as duas pararam para um descanso e para babujar alguma coisa. Eis que eu tinha devorado quase tudo. Deixei as duas velhas roendo o osso. Vovó ficou danada: “Você deixou a gente com fome”! E eu, em minha defesa, como bom advogado-mirim, lembrei de uma frase que mamãe costumava dizer: “Quem guarda com fome, o gato come”. Comi. E assim foram algumas das minhas aventuras de menino, acompanhando minha avó Lourdes e tia Maria, nas pescarias, no riacho do Trampolim.

*Padre, advogado, professor da Universidade Federal de
 Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

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