José Lima Santana*
Menino, lá pelos meus nove, dez anos, minha avó
Lourdes, nas férias escolares, me levava para as suas pescarias, no riacho do
Trampolim, que nasce no açude da nossa cidade, Nossa Senhora das Dores, e que
fica ao pé da zona urbana, descendo pela Rua Barão do Rio Branco, antiga Rua do
Quartel, passando pela Baixa do Sapo, para quem vem do centro da cidade. Mas,
para quem mora no Bairro João Ventura (subúrbio no meu tempo de criança),
toma-se o rumo do antigo beco do açude, hoje, Rua Tobias Barreto, exatamente
onde se situava a casa da minha avó. As pescarias eram de jereré e a
companheira da minha avó era tia Maria, mulher do meu tio-avô Vangelo, irmão da
minha avó. Na verdade, o riacho, que, descendo um pouco mais, passa a se chamar
Gonçalão e, mais adiante, Caiçara, é, na verdade, o riacho Siriri Morto (não
sei de onde vem essa estúpida nomenclatura, pois o riacho é bem vivo e corta,
meio a meio, a minha propriedade rural, herdada do meu pai), que se junta ao
riacho Siriri Vivo, para formar o rio Siriri, afluente do rio Japaratuba. Eu
adorava as pescarias. Qual o menino que, criado no interior, não gostava de
aventuras? As pescarias ocorriam pela manhã, às vezes passando um pouco do
meio-dia. Vovó tinha o cuidado de sempre me fazer levar um lanche e água para beber.
Peixes pescados? Sarapó, jundiá, piau, e uns camarões de água doce, raros, mas
que eram pescados nas tocas. Vovó só pescava calçada. Certa vez, ela arranjou
com uma vizinha, Maria de Adalúcia, um par de sapatos vermelhos de salto alto,
fora de uso. Dá para imaginar alguém pescando, metida nuns sapatos altos? Só
mesmo a minha avó. Pois bem. Lá pelas tantas, vovó ficou atolada no riacho.
Acho mesmo que ela meteu o pé num buraco. Deu trabalho. Tia Maria morria de rir
e dizia: “Mulé, deixe o diabo desse sapato aí. Tire o pé e bora simbora”. Qual
nada! Vovó insistia em se desatolar, para não perder os sapatos vermelhos de
salto alto, a fim de usá-los noutra pescaria. Enfim, com a ajuda de tia Maria,
ela se desvencilhou do atoleiro ou do buraco, sei lá. Naquele dia, nós rimos
muito. Eu jamais entrava no riacho. Ia seguindo as duas pescadoras, carregando,
além da matula com a merenda, o embornal para acomodar o produto das pescarias
e um pequeno bastão, para alguma providência que se fizesse necessária. Medo só
de duas coisas: boi brabo e cobra. Mas, felizmente, nesse sentido, nada jamais
aconteceu para o meu lado, naquelas aventuras. Porém, dois fatos curiosos, que
nunca me saíram da memória: uma cobra no jereré de tia Maria e uma vaca parida
de novo, que se botou para a minha avó. Escaramuças. Dizem que bois têm
problemas com a cor vermelha. Zangam-se. Disso eu não sabia nos meus tempos de
acompanhante de pescarias. Numa daquelas idas ao riacho, minha avó vestia uma
blusa vermelha e uma saia de ramagens em que predominava a mesma cor. Com pouco
tempo que minha avô e tia Maria estavam na água, correndo os jererés aqui e
ali, minha avó saiu do leito do riacho, no exato lugar que a água corria por
entre umas pedras, fazendo um barulhinho gostoso de se ouvir, uma cançãozinha
aquosa de dar gosto aos ouvidos da gente, ao menos aos meus ouvidos de menino
atento às coisas da natureza. Eis que o jereré tinha enganchado numa ramagem e
parece que rompeu uns fios, a carecer de reparo. Tão logo minha avó saiu do
riacho, para a margem oposta àquela que eu margeava, uma vaca parida de novo
berrou duas ou três vezes e botou-se para cima dela, que estava de costas para
a cuidadosa mãe, atenta apenas ao conserto do jereré. Então, tia Maria gritou:
“Lourdes, ói a vaca”! Minha avó olhou para trás e, mais que de repente, jogou o
jereré em direção à vaca, que lhe foi cair sobre as pontas. E atirou-se na água
rasa do riacho, estatelando-se logo abaixo das pedras onde a água rumorejava.
Sorte dela. Ainda bem que naquele dia ela não estava com os sapatos vermelhos
de salto alto. A vaca chegou à beira do riacho, soprando, mas, felizmente,
recuou. O jereré enganchou-se nos chifres. A vaca baixava e balançava a cabeça,
tentando desvencilhar-se do objeto incômodo, sem sucesso. Um caçador de saguis,
Felipão de Bastião do finado Nonô Caganeira acudiu o animal, conseguindo, com a
vara comprida de pegar saguis, livrar a vaca do artefato indesejado e, àquela
altura, muito danificado. Pobre da minha avó, que teve de comprar outro jereré,
que era bem confeccionado por Estelinha de Maria de Afonso Zambeta do Pau Que
Chora, lugar, naquela época, de casas noturnas mal afamadas: “Amor Fugaz”,
“Inferno Colorido”, “Toca Viola”. A outra situação, a da cobra no jereré,
deu-se assim: tia Maria passava o jereré numa toca em busca de camarões,
sujeitinhos cabreiros de dar gosto. Vai daqui e vai dali, eis que ela suspendeu
o jereré para ver o que tinha conseguido. Sim, uns camarões! Mas também uma
cobra, do tipo jararacuçu malha de traíra, não muito crescida. Aliás, dizia-se
que jararacuçu dameava com traíra. Uma ilusão. O verbo damear, um neologismo,
significa manter relações mais do que próximas. O tal verbo origina-se de
mulher-dama, expressão aplicada, na nossa região, para designar mulher de vida
livre, como se sabe. A serpente pareceu, ao menos tia Maria assim o disse
depois, ajeitar-se no jereré para dar o bote, olhando para a cara dela com a
língua bifurcada saindo e voltando para a boca, saindo e voltando. Num átimo,
tia Maria gritou: “Tá bêba peste”! E atirou longe o jereré, riacho abaixo, que
acabou se enganchando num toco caído. Vovó disse: “Mas, mulé, tu tá cum medo de
cobra, dentro d’água? Tu num sabe que cobra num ofende na água”? Cobra não
ofendia dentro d’água. Era a crença de pessoas incautas. Era voz corrente,
então, dizer-se que cobra ao entrar na água deixava a peçonha numa folha, para
a resgatar depois. Que crença mais inocente! Gigantesca ilusão! Numa das
pescarias, as duas se prepararam para passar o dia todo no riacho. Levaram
algumas bugigangas para comermos. Eu carregava a matula, como já disse. E era
um pouquinho guloso, em fase de crescimento. Vai daqui e vai dali eu ia comendo
uma coisinha ou outra. Lá pelas tantas, o sol a pino, as duas pararam para um
descanso e para babujar alguma coisa. Eis que eu tinha devorado quase tudo.
Deixei as duas velhas roendo o osso. Vovó ficou danada: “Você deixou a gente
com fome”! E eu, em minha defesa, como bom advogado-mirim, lembrei de uma frase
que mamãe costumava dizer: “Quem guarda com fome, o gato come”. Comi. E assim
foram algumas das minhas aventuras de menino, acompanhando minha avó Lourdes e
tia Maria, nas pescarias, no riacho do Trampolim.
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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