JOSÉ LIMA SANTANA*
O
João Ventura, subúrbio dorense que, por força de lei municipal, tornou-se bairro,
em 1974, na gestão do prefeito Paulo Garcia Vieira, é o meu berço de
nascimento, de moradia e de vida até os dias de hoje. Lugarejo da minha gente.
Tempo houve em que na Praça dos Eucaliptos, que, desde 74, se chama Praça 23 de
Outubro, data da elevação da vila à categoria de cidade, em 1920, agora prestes
a completar, pois, cem anos; na rua que vem da confluência com a Rua do Ouro,
hoje Marechal Rondon, e que se chamou Rui Barbosa até ser convertida em Rua
Emílio dos Reis Lima; na estrada da Caiçara, que passou a se chamar Rua
Gilberto Amado, onde está a minha casa, desde 1962; na estrada do Gonçalão,
hoje, Rua Floro da Silveira Andrade; no beco do hospital, que virou Rua João
Soares Santana, meu tio-avô, conhecido no seu tempo por “seu” Dadá do Queijo; e
no beco do açude, onde moravam os meus avós Lourdes e Dioclécio, e que passou a denominar-se Rua Tobias Barreto, todas
as denominações decorrentes da lei de 1974, havia mais de vinte casas da nossa
família. Reduto dos “negros de Vangelo”, como diziam na cidade.
Vovó Lourdes era doceira. E
cozinhava muito bem. Ah, comer a fritada de maturis da minha avó, era uma
delícia! Um manjar dos deuses. Só quem já degustou uma fritada de maturis sabe
o que estou dizendo. É de lamber os beiços. E os lombos de frigideira recheados,
fritos na banha de porco? As moquecas de peixe com açafrão? A rabada com agrião
e quentão (na verdade, coentrão) de pé de cerca? O mal assado de carne de sol,
bem temperada, assada na brasa. Carne de sol de papai. Algumas delícias da
culinária da minha avó. O doce de
goiaba, batido, era uma divina sobremesa.
Entre cocada, pés de moleque de puba e
manauês, vovó fazia mungunzá, que vendia em casa, no sábado à tarde e no
domingo pela manhã. No sábado, eu, nos meus seis anos, sete anos, também fazia
algumas entregas de porta em porta, aos fregueses habituais. Em dois caldeirõezinhos
de alumínio, sempre brilhando, que vovó lavava e esfregava com bucha de cerca,
ou maxixão, antes de cada entrega, eu levava a porção inteira, ou meia-porção,
conforme o freguês ou freguesa: Joãozinho de tio Dadá, Dona Melânea, que a
gente chamava de Melonia, mãe da minha professora de primeiras letras, Mestre
Belo, barbeiro afamado no corte e na lorota, Manoel Ferreira, ferreiro de
profissão e violonista de vadiação, tio Dadá, Pedrinho de Gimio, Dona Marica,
mãe de Zequinha e Conceição. O meu “pagamento” pelas entregas feitas era um
prato do caldo do mungunzá com pão jacó esfarelado no caldo. Outro manjar dos
céus! Os caroços do milho do mungunzá eu jamais os comia. Eu dizia: “Num sou
galinha pra comer mio”. Somente na idade adulta, eu passei a comer os caroços.
Eu sempre fui um neguinho cismado. Os pedaços de pão jacó, francês, ou d’água e
sal (são tantos nomes para o pãozinho nosso de cada dia) esfarelados no caldo
do mungunzá, bem amolecidos, encorpados pelo caldo, desmanchavam-se na boca
ávida. Era o meu jantar.
Aos domingos pela manhã, alguns
fregueses da minha avó iam tomar café. Sentavam-se na mesa da sala de jantar,
onde as pessoas da casa jamais comiam. Comíamos na mesa da cozinha. E a cozinha
era grande, com a cantareira dos potes, o fogão a lenha, que tinha o forno de
assar bolos etc., uma mesa pequena e a mesa grande, onde comíamos. Na parede
onde ficava a cantereira, e sobre esta, ficavam dependurados os caldeirões, o
tacho de cobre para os doces, as canjicas etc. No armário da parede que tinha
uma porta a dar para o quintal, as caçarolas, panelas e outros trecos de
cozinha. Num canto, ficavam, no chão, dois grandes porrões cheios de água. A
casa da minha avó era a minha segunda casa. O quarto que fora do meu pai, era o
meu quarto. Todavia, voltemos aos fregueses do domingo.
Eu esperava, ansioso, pelo domingo.
Teta, como eu o chamava, irmão do meu avô Dioclécio, pai adotivo do meu pai, e
que se chamava Tertuliano Pinheiro dos Santos, era um freguês habitual, embora
não pagasse pelo café da manhã. Era da família. Ele levava pães e dois deles
eram meus. Assim que ele chegava, abria o pacote de pães e me dava os meus: um
pão jacó e um pão doce. Novamente, caldo de mungunzá com pão. Com uma novidade:
eu me sentava na mesa da sala de jantar. As cadeiras de espaldar, tão
diferentes dos tamboretes da mesa da cozinha. Eu me sentia importante, naquela
mesa ao lado dos homens, que proseavam com o meu avô. O domingo começava em
grande estilo.
Semana após semana, tudo se repetia
no sábado à tarde e no domingo pela manhã. Então, todo fim de semana eu passava
na casa da minha avó.
Numa das minhas tarefas de entrega,
subindo a quase ladeira, pois era pouquíssima acentuada, já chegando à casa de
Joãozinho de tio Dadá, um sujeito a cavalo dobrou a esquina em disparada, quase
me atropelando. Joguei-me no valado, os dois caldeirõezinhos estatelando-se no
chão e derramando o mungunzá. Não me sujei. Praguejei contra ele. Má sorte a minha,
naquela tarde. Porém, maior foi a má sorte do cavaleiro desembestado. Descendo
a ladeira do tanque, de barro avermelhado e escorregadio, pois tinha chovido um
pouco pela manhã, o sujeito, que era filho de Almerindo da Cobra d’Água, caiu
do cavalo e quebrou algumas costelas. Voltando para casa, a fim de encher de
novo os vasilhames, para, enfim, efetuar as entregas, vovó, alarmada com o
sucedido, perguntou porque eu estava com o olhar tão duro. Eu nem sabia o que
era um olhar tão duro. De cara amarrada, eu disse que tinha rogado uma praga sobre
o celerado. Vovó riu. Mas, depois que a notícia do tombo do sujeito na ladeira
do tanque correu trecho, uma vizinha da minha avó disse que a minha praga fez
com que ele caísse do cavalo. “Você tem praga e olho duro de feiticeiro”, ela
me disse, gargalhando.
Bem. Com o tempo, eu não me tornei
feiticeiro. Tornei-me padre, não para praguejar, mas, sim, para bendizer.
* Padre, Advogado,
Professor da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras,
da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da ADL, da Academia Sergipana de Educação
e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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