José Lima Santana*
Ora,
deu-se o ocorrido em 1974. Por que eu lembro tão bem do ano? Porque trabalhava
na Prefeitura Municipal da minha cidade, aos dezenove anos de idade, no
pomposo, mas pouco rendoso, cargo de diretor do departamento da fazenda do
Município, equivalente, hoje, a secretário municipal de finanças.
Para se
ter uma ideia de quão pouco rendoso era o cargo, ao deixá-lo, em março de 1977,
eu ganhava, bruto, Cr$ 900.00 (novecentos cruzeiros), ao passo que, nomeado,
após aprovação em concurso público, para o cargo de auxiliar de controle
externo do Tribunal de Contas do Estado, por portaria do então presidente
conselheiro Manoel Cabral Machado, meu mestre de Direitos Reais, na Faculdade
de Direito da Av. Ivo do Prado, em julho daquele ano, eu passei a ganhar Cr$ 4.680,00.
Mas, os 900 da Prefeitura representavam o maior vencimento de um servidor
daquela municipalidade. Logo, não era rendoso, mas era, sim, grandioso para
mim. O salário mínimo de março de 1977 era de Cr$ 768,00.
Pois bem,
pois bem. A perícia de Antônio dos Santos, trabalhador braçal da Prefeitura, da
turma de “seu” Bonifácio, velho e operoso cabo de turma, a dirigir parte do
pessoal que cuidava das estradas vicinais, roçando, consertando valetas,
espalhando piçarra etc., eu mesmo marquei no INPS.
Era assim
naquele tempo: INPS. Ele andava cheio de dores. Pobre trabalhador de sol a sol,
de chuva a chuva, como tantos outros. Vivia reclamando que não aguentava mais
trabalhar, com dores nas pernas, nos braços e “nas cruz”. Socorri-me de um
fiscal do INPS, “seu” Eutímio, que, prestimoso, conseguiu abreviar a data da
perícia médica.
No dia
marcado, lá foi o colega Antônio dos Santos, vulgo Tuninho Cheira Peido, porque
diziam os seus colegas de eito, que ele tinha a mania de passar a mão no
para-choque traseiro e levá-la ao nariz. Eu pessoalmente jamais o vi fazendo
esse ato anti-higiênico. O carro da Prefeitura foi buscá-lo em casa, logo cedo,
no Acoita Manhoso, lá para as bandas do Cruzeiro das Moças.
Para
acompanhá-lo ao local da perícia, no prédio da esquina da Rua de Geru com
Itabaianinha, foi a porteira da Prefeitura, Maria Nicolina de Menezes, filha de
Januário Bispo de Menezes, oficial de justiça que, em dezembro de 1931, recebeu
o encargo de intimar Lampião, em face do assassinato de Elpídio José dos Santos,
morto com requintes de crueldade pelo bando do afamado cangaceiro, na madrugada
de 16 de outubro de 1930, na fazenda Candeal.
Naquele
tempo, Dores era Termo da Comarca de Capela. Apenas para informar, a denúncia
contra Lampião foi lavrada pelo adjunto da Promotoria, cidadão Artur Dias de
Andrade, pai de José Barreto de Andrade, da loja “A Suprema”, já falecido. O
juiz municipal do Termo era Nicanor Oliveira Leal e o titular do Ministério
Público era Joel Macieira Aguiar. Ambos acabariam desembargadores.
E lá se
foram Nicolina e Tuninho à capital, numa manhã chuvosa. Na época, ainda não
havia asfalto da BR-101 para Dores, que só viria no ano seguinte, no segundo
governo do Dr. José Rolemberg Leite. A estrada de rodagem era muito ruim de
Dores para Maruim, passando por Siriri e Divina Pastora.
No
caminho havia a ladeira dos Cinco Paus, temida pelos viajantes, local da
ocorrência de vários acidentes, especialmente de caminhões. Faltar freio
naquela ladeira, era fatal. E isso ocorria com certa frequência, porque os
veículos tinham deficiências de fábrica ou porque não recebiam a devida
manutenção.
Nicolina,
que chamávamos de Nicola, só viajava de terço na mão, o trajeto todo. Não sei o
que aconteceu com Tuninho diante do perito médico. O que ele revelou foi que o
médico o auscultou e, segundo suas próprias palavras, “fincou o dedão na minha
barriga, na minha caixa dos peitos e nas minhas costas”. E mais: “Perguntou se
doía aqui e ali, mas eu disse que não”. Pronto. Estranho, pois naquele dia,
nada doía.
O perito
mandou que ele aguardasse em casa uma carta do INPS. A carta chegou duas
semanas depois, pelas mãos do carteiro Germínio de “seu” Juviano. Negada a
pretensão de Tuninho, para “se encostar”. Decepção. Pobre homem, que
continuaria no eito, na labuta semanal, sofrendo com dores, tomando pitadas do
mal-cheiroso. Putz!
As
reclamações de Tuninho continuaram. Eram dores e mais dores. Chegava a não ir
ao trabalho, algumas vezes. Um colega dizia que ele tinha era “mais preguiça do
que uma preguiça de verdade”. Palavras de Zé Labisone, assim mesmo pronunciado,
tido e havido, este, sim, como um contumaz preguiçoso.
“Seu”
Bonifácio, preocupado, informava ao prefeito Paulo Garcia que a situação de
Tuninho era cada vez pior. Faltava, e quando ia, pouco rendia no serviço. Seria
preciso dar um jeito de “encostar” Tuninho. Passados uns meses, eis “seu”
Eutímio de volta para auditar a Prefeitura, analisando as folhas de pagamento,
os recibos de prestação de serviços de terceiros e os recolhimentos ao INPS.
Tornei a
falar com ele sobre Tuninho. Pelo tempo decorrido, ele já poderia retornar à
perícia médica. Foi marcada. Dessa vez, quem acompanhou Tuninho foi Marilene,
também nossa colega. Ela, porém, avisou: “Como esse peste disse que não
reclamou de dor nenhuma ao médico, e, por isso, a perícia não deu em nada, eu
vou dar umas porradas nele, antes dele entrar no consultório do doutor. Só
assim, ele vai gemer quando o doutor tocar o dedo nele e a perícia vai dar
positiva”.
Não sei
se ela deu as prometidas porradas. Não lhe perguntei. Mas, presumo que não.
Claro que não. O certo mesmo foi que, dias depois – oh, glória! –, chegou a
informação de que Tuninho Cheira Peido estava “encostado”. Com porradas ou sem
porradas. Seis meses depois, ei-lo devidamente aposentado por incapacidade para
o trabalho.
Não
demorou muito e acabou morrendo da coisa braba, da doença que, muitos se
escusavam de pronunciar o temível nome: câncer. Nos ossos. Ajudei a viúva,
Maria Angélica, a pleitear a pensão para si e para os oito filhos, quase todos
de cobrir com um cesto.
Na cova
de sete palmos de Antônio dos Santos, no cemitério municipal, alguém escreveu
uma troça. Na cruz, até então sem inscrição, passou a constar o seguinte
epitáfio, em letras miúdas: “Aki Discansa Tunio Xêra Chão”.
*Padre,
advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de
Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação
e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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