domingo, 16 de agosto de 2020

O SÍTIO DO MEU PAI

 

 

José Lima Santana*

 

 

Eu nasci na Praça João Ventura, atual 23 de Outubro, onde meus pais foram morar, em 1954, quando se casaram. Dali, a família se mudou para um sítio, na estrada do Gonçalão. Primeiro imóvel comprado por meu pai. Perto ficavam os sítios dos irmãos do meu pai, meus tios Carivaldo e José, que chamávamos Danda.

Os três irmãos eram marchantes, assim como outros parentes, expoentes no fabrico da carne de sol, iguaria que apetece o gosto e o paladar dos dorenses. Muito perto, o barracão de João de Rita, pai do meu compadre Tonho da Copa, que comprava sebo de boi para derreter e fornecer a uma saboaria de Capela.

Nossos vizinhos de frente eram Tonho Miúdo e Dona Júlia, que meu irmão chamava de vovô e vovó. Eu chamava Dona Júlia de Dudua. Vizinho do lado direito, o velho Sinhô, sozinho. No lado esquerdo ficava o pasto de Gaspar. Adiante, os sítios do meu tio-avô Vangelo e o de “seu” Nonô, da Igreja Batista.

Descendo para o Gonçalão, as soltas de gado de “seu” Areto (Ariston Luiz dos Santos, pai do ex-prefeito Aldon da Festa do Boi) e do meu tio-avô Dadá (João Soares Santana). Descendo uma ladeira, ia-se dar no tanque e no açude da cidade. O primeiro, lugar dos homens e meninos tomarem banho e de lavar carros e cavalos. Banho com sabão de alcatrão. No segundo, as mulheres lavavam roupas, cada uma tendo a sua pedra de ensaboar, mas, também, lugar, depois do Trampolim, de lavar fatos de bois, a chamada “Fateira”.

Que tempo o da minha infância até os sete anos, naquele sítio, que não era somente um simples sítio! Ali, além da casa de morada, papai tinha o curral de abater gado e a salgadeira, anexa à casa. No curral, parentes e amigos abatiam os seus bois. Ninguém pagava nada pelo uso do curral. Tinha dias que o cheiro forte de sangue ressecado empesteava a casa, ao soprar do vento.

Havia, porém, algo positivo: a doença que matava galinhas, e que se chamava murrinha, não chegava lá em casa. Morriam galinhas em toda a redondeza, mas não no sítio da gente. Diziam que era porque as nossas se alimentavam do sangue dos bois, derramado na matança. Vai-se saber! O certo é que a murrinha não encontrava guarida lá em casa. Sorte nossa. E, sobretudo, das galinhas.

Quando alguma vaca dava leite, era uma festa para os dois neguinhos, eu e meu irmão Neném, acompanhar papai ao ato da ordenha, que se dava debaixo de uma sucupira, no lado direito da casa. Vaca amarrada e apeada, tetas lavadas, o leite descia borbulhando na tigela grande de estanho, dali para o vaso. Ah, um copo de leite cru, morninho de dar gosto, ali mesmo!

Vivíamos, eu e meu irmão, soltos no sitio. Muitas vezes, nós o percorríamos em busca de ninhos cheios de ovos que as galinhas botavam pelos matos. Não raro, quando cobras ou saruês não devoravam os ovos, algumas galinhas apareciam com suas ninhadas, pois chocavam nos ninhos que nós não descobríamos. Fartura de ovos, que mamãe distribuía com a parentela.

Entre agosto e setembro, mamãe vendia gordos capões, frangos e um bacorinho, a fim de comprar os tecidos para as roupas das festas do fim do ano: festa da Padroeira, em setembro, Natal e Ano Novo. Roupas confeccionadas pelas costureiras dona Elvira e Sila de João Nogueira.

Nunca se podia repetir uma roupa numa daquelas três festas. Embora a família fosse pobre, mamãe era zelosa. A roupa para a festa da Padroeira, ou seja, para a procissão, no domingo, era especial, geralmente um terninho de linho, calça curta, camisinha branca, tudo bem engomado, gravatinha borboleta, e lá íamos nós acompanhar a bela imagem de Nossa Senhora das Dores, percorrendo as principais ruas da cidade, com as beatas se esguelando no hino que Edilberto Andrade compôs.

Festas esperadas pela meninada eram mesmo as feirinhas do Natal e do Ano Novo. A Praça da Matriz cheia de gente. Íamos à tarde, com mamãe, uma tia ou uma prima mais velha, nos dias 24, 25, 31 e 1º. Para cada tarde, uma roupa. Os barcos de mestre Pedrinho e “seu” Lió, a onda, de Zezé da Noturna, a sombrinha de Roque, o balanço de Tonho do Bode, o carrossel de Alvino Bororô. Ah, eu gostava do carrossel! Montar nos cavalinhos, dando voltas. As bancas de doces. Doceiras? Dona Rosa de Artur, Dona Delfina, Dona Neném de Alípio, Dona Perolina de Izídio. Saquaremas, manauês de milho, puba, arroz e macaxeira, cocada branca e preta, cocada-puxa, confeitos de castanha de caju em cestinhas coloridas. As barracas de comida, via de regra, de arroz com galinha, para quem jantava na Praça.

No sítio, aos sábados à tarde, papai espelhava as mantas de carne, estendidas num varal (paus com cerca de quatro, cinco metros de comprimento, com uma espessura de uns vinte centímetros, em madeira de lei). Limpar a carne, retirando as pelancas, dando um banho de tutano de mocotó, derretido. As mantas de carne ficavam expostas ao sol por cerca de uma hora, escorrendo a salmoura, tomando cor. É por isso que se chama carne de sol. Jamais do sol, como a gente encontra no menu de alguns restaurantes. Eu fico danado da vida quando leio isso nalgum cardápio. Nunca peço, pois não vou comer um pedaço do astro-rei.

Atenção: apenas uma sugestão, para quem faz carne de sol em casa. Aliás, muita gente faz carne salgada, mas não de sol. Porque, simplesmente, salga, põe num vasilhame e não a espelha ao sol. Quem faz assim, experimente comprar um mocotó, tire o tutano, derreta e banhe a carne exposta ao sol. Se preferir, e gostar, salpique a carne com pimenta do reino, sem exagero. Vai ficar uma delícia por demais. Só para quem gostar de pimenta do reino. Depois, se tiver um bom braseiro, leve ao espeto. Não esqueça de fazer um delicioso molho com vinagre orgânico de maçã, óleo de girassol ou canola, cebola roxa, coentro, e pimenta malagueta, quem gostar, ou sem pimenta. Acompanhamento? O do gosto: uma boa farofa d’água, ou, simplesmente, uma cerveja mais do que suada. E de preferência, chame os amigos.

Aos sete anos, nós deixamos o sítio. Papai o vendeu e comprou a casa onde eu moro até hoje, na estrada da Caiçara, atual Rua Gilberto Amado, denominação por mim escolhida quando o subúrbio virou bairro, por decisão da Câmara Municipal. Saudades do sítio. Saudades da minha infância. Saudades do meu pai, que se foi aos 45 anos. Infarto fulminante, enquanto dormia. Meu pai orgulhava-se porque eu seria advogado, e queria que eu fosse escritor. Faleceu quando eu estava iniciando o terceiro ano do curso de Direito e dez anos antes da publicação do meu primeiro livro. Entre autor e coautor, já são treze livros. Mas, estou em dívida com papai: ele queria que eu escrevesse cordel.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


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