sábado, 26 de setembro de 2020

VOTO FORMIGUINHA


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

No passado, não muito distante, antes da urna eletrônica, que começou a ser usada em 1996, votava-se em cédulas oficiais, brancas com uma tarja preta. Os políticos fraudadores de eleições mandavam imprimir cédulas parecidas, que eram distribuídas aos eleitores, ensinando-se a votar àqueles que tinham menor percepção das coisas. E eram muitos.

Inventaram, então, o chamado “voto formiguinha”, que consistia em um eleitor sob o descuido dos mesários, trocar a cédula oficial por uma similar, que o cabo eleitoral, candidato ou chefe político lhe entregava, recebendo do eleitor a cédula oficial que ele recebia na mesa da sessão eleitoral, tendo empurrado urna adentro a cédula similar.

De posse da cédula oficial, iniciava-se o “voto formiguinha”. Um eleitor ia com uma cédula oficial preenchida e voltava com uma cédula oficial em branco. E assim transcorria todo o pleito. Votos carimbados. Fraudes. Ah, como fizeram isso!

Na eleição de 1972, o velho caudilho municipal de Pontal de Areia, Sizino da Bela Vista, elegeria o seu sucessor à Prefeitura Municipal e tinha escolhido um afilhado para ser o vereador mais votado. No “voto formiguinha” seria fácil. Assim, Pedrinho de Gregório da Padaria dispararia nos votos para a vereança.

Quanto ao candidato a prefeito, Afrânio Junqueira, vulgo Afrânio Casca Grossa, a sua eleição seria garantida. Na sessão 19, a mais recente, com os votos dos eleitores mais novos, que votavam pela primeira vez, somando 236 votantes, o “voto formiguinha” foi inaugurado por Bililiu de Maria Cecília, pai do presidente da mesa da sessão em apreço.

A troca da cédula oficial pela oficiosa foi uma barbada. Para votar com a cédula oficial surrupiada foi escolhida pelo velho Sizino a sua neta Belinha, e ela mesma cuidaria de repassar as vindouras cédulas oficiais preenchidas a eleitores da confiança do seu avô.

Belinha, ela mesma, escrevia os nomes dos candidatos a prefeito e a vereador, variando na forma de escrever, para não ficar tudo igual, com a mesma letrinha caprichosa. Prefeito, Afrânio Junqueira. Vereador, ao invés de Pedrinho, salvo uma ou outra cédula, ela optou por Jorge Marques, candidato da oposição, seu colega de colégio e por quem ela roía brocha para namorar.

Um sacrilégio, se o avô descobrisse. Porém, a força do coração suplantava qualquer outra força. Jorge Marques era o mais bem-apessoado aluno do Colégio Nossa Senhora dos Anjos. O mais extrovertido. O mais engraçado. O mais cobiçado. Belinha era sua amiga, a despeito das desavenças políticas entre as duas famílias, desavenças sem, contudo, inimizades a fogo e sangue. Apenas desavenças. Mas, o coraçãozinho da moça dava fortes pulsadas quando estava ao lado do amigo. Ela esperava, um dia, deixar as outras moças para trás. Não haveria de demorar, segundo ela calculava.

A eleição transcorreu normalmente. Fim de tarde, fim da votação. Logo mais, as urnas foram recolhidas ao Fórum, que funcionava no prédio da Prefeitura Municipal. As apostas começavam a aumentar. Apostava-se em todos os resultados possíveis. A eleição para prefeito parecia ser pau a pau.

A oposição crescera muito na fase final da campanha eleitoral. Quem venceria? Uma incógnita. Quais seriam os nove vereadores eleitos? Quem seria o mais votado? Quais os resultados, urna por urna? Tudo era motivo para apostas.

Na urna da sessão 19, que a cargo de Belinha ficara a condução do “voto formiguinha”, os apaniguados de Sizino da Bela Vista davam cinco por um, na votação para vereador, a favor de Pedrinho contra Jorge Marques. A casadinha Afrânio / Pedrinho haveria de campear. Cinco por um? Era demais.

Muita gente contrária pegou essa aposta. Três por um, fosse lá. Todavia, cinco por um, era um despautério. “A não ser que houve fraude”! Era o que alardeava João Maçarico, apostador fino em tudo que fosse possível apostar.

Apurados os votos no dia seguinte, eis que na sessão 19 quase só deu Afrânio para prefeito e Jorge Marques para vereador. Este obteve 95 votos contra 23 de Pedrinho. O restante foi pulverizado entre outros candidatos, além de muitos brancos e nulos. Vinte e seis votantes deixaram de comparecer. Para prefeito, naquela urna, Afrânio ganhou bem, não casando, porém, os seus votos com os de Pedrinho, como era de se esperar.

Logo, apontaram Belinha como culpada pelo resultado. Como ela era o xodó do avô, recebeu apenas uma severa reprimenda. Enfim, a Prefeitura continuaria no bloco de Sizino, enquanto Pedrinho acabou sendo o mais votado, na totalidade dos votos de todas as urnas. Entretanto, na sessão de Belinha, ou aos seus cuidados fraudatórios, o moço Jorge Marques, deu um banho, como acima descrito. Um coração desabrochando na paixão fazia coisas que até o diabo duvidava.

Belinha estava aos pulos com a votação do seu pretendido, que logrou a segunda maior votação, no geral. Perspicaz, bem-falante, seria a liderança jovem na Câmara Municipal, a trombetear na oposição. Futuro garantido na política. Quem sabia, um dia, ele não poderia se juntar ao avô da mocinha? Esperança de um coração apaixonado.

Os partidários de Sizino, avô de Belinha, dariam uma festa de arromba, para celebrar mais uma vitória, a quarta em seguida, para o comando dos destinos da municipalidade. Na Câmara, fizeram cinco dos nove vereadores. Elegeriam o presidente.

A oposição mostrou muitos votos. Perdeu a Prefeitura por menos de cinquenta votos e ficou com um vereador a menos. Na última eleição tinha levado uma sova de mais de quatrocentos votos de diferença, para a Prefeitura, e só tinham conseguido eleger dois vereadores. Houve, pois, um bom crescimento.

A família de Jorge Marques, cujo pai era dono da maior loja de tecidos e confecções da cidade, também daria uma festa. Já projetava o futuro político do rapaz. Belinha foi convidada pelo próprio vereador eleito. Não faltaria. Quem sabia, não seria a ocasião para o mancebo lhe apresentar à família como namorada, depois das muitas conversas que tiveram nas últimas semanas, embora sem que ele revelasse a intenção de lhe pedir em namoro. Porém, como ela sonhava com isso, dava como certo. Sonhos.

A casa dos pais de Jorge era recuada, com um enorme jardim, onde a festa da vitória se desenrolaria. Belinha, que favoreceu o pretendente com o “voto formiguinha”, traindo a confiança do avô, como mandou o seu coração, chegou à casa de Jorge por volta das oito da noite. Muitos colegas do Colégio. Enturmou-se. O vereador eleito ainda não tinha mostrado a cara. Lá pelas nove e meia, eis que ele chegou. De mãos dadas com Celina de Isidoro do finado Robertão. Estavam de olho no olho. Era, pois, a primeira namorada a ser apresentada à família. Celina era a melhor amiga de Belinha, que quase teve um treco. Lágrimas. Desolação.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

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