sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

BESTA FERA


  

 

José Lima Santana*

 

 

O município, recentemente emancipado, a custo de confusões e até mortes, enfrentaria a sua primeira eleição municipal. Os chefes políticos do município maior do qual Brejão das Almas tinha se separado, ainda detinham poderio de mando sobre a cidadezinha e os povoados agrupados no novel município.

A disputa, então, para os cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador, este com nove vagas, ficava por conta dos apaniguados de Doquinha do Tanque Limpo e de João Pedro da Barra Funda, vulgo Besta Fera, na voz dos seus opositores. Besta Fera tinha nas mãos a Prefeitura da sua cidade, Nossa Senhora do Pilar, e contava com o governo estadual, da UDN.

O PSD estava debaixo, no Estado, há duas eleições. O candidato apoiado por Besta Fera em Brejão das Almas era o seu genro, Chicão de Zé Maria, sujeito endinheirado, mas muito mofino, que, por certo, não teria nascido para a política, mas para ela sendo empurrado pelo sogro casca grossa.

Do outro lado, o candidato a prefeito era Joca Mulatinho, vereador há três mandatos no Pilar. Este, sim, político até as tripas. Dizia-se que com ele até as lombrigas dos eleitores buchudos votavam. Sujeito sagaz, capaz de dar nó em pingo d’água para arranjar votos. Era um pé ligeiro nas estripulias eleitorais. Nisso, ele sabia onde o cão dormia. Um populista de primeira hora, batedor de pernas por bodegas e cacetes-armados onde quer que se situassem, bom de lábia e de copo, misturado ao povinho raia-miúda daqui, dali e dacolá.

Joca era apoiado pelo Dr. Fulgêncio Marques de Brito e Melo Alencar, médico cearense há mais de trinta anos radicado no Pilar e deputado estadual pela segunda vez. E claro, apoiado por Doquinha. Os embates políticos prometiam escaramuças naquela primeira eleição de Brejão das Almas.

Os dois lados prometiam queimar enxofre, torrar castanhas de caju sem azeite. Aproximando-se o dia da eleição, os comícios pegavam fogo. Homens armados protegiam os candidatos dos dois lados. Besta Fera arranjara uns cabras das Alagoas. Já o deputado Fulgêncio e Doquinha arregimentaram uns protetores para Joca Mulatinho dali de perto, da Cruz de Ferro, povoado de gente acostumada a tocaiar, e do Riacho Sangrento, outro povoado de homens desassombrados. Para quê buscar pistoleiros de fora? Por ali tinha dos bons e dos melhores. Uma carnificina parecia estar armada, prestes a explodir.

Os dois lados arrotavam vitória e vomitavam ameaças. Pelo jeito, o cemitério local seria pequeno para conter tantos corpos, tal era a assustadora carnificina que se avizinhava. No domingo anterior à eleição, Maria do Socorro de Pedrão de Chico Batoré acordou cedo, mais do que de costume, para cuidar na casa e poder sair para votar dentre os primeiros eleitores.

Não gostava do fuzuê do dia da eleição, gente para lá e para cá, zanzando como baratas tontas, as bocas de urna esquentadas e tudo o mais fora da conta. Preparava o café quando ouviu um pipocar de tiros. Era uma saravaida de balas que parecia uma guerra de verdade. A guerra de Brejão das Almas como certamente haveria de ficar conhecida. Gritos, palavrões e mais pipocar de balas.

Correu para a varanda, abriu devagarinho uma janela e lá estava a carnificina. A praça onde se situava a sua casa encontrava-se coalhada de corpos, o sangue escorrendo como um riacho. Uma bala arrancou um tampo na janela vizinha. Mais que depressa, ela fechou a janela onde estava, caiu de joelhos e pôs-se a rezar. Se continuasse daquele jeito, não sobraria ninguém na nova cidade. Para que foram emancipar Brejão das Almas? Para aquilo? Para fazer da sua primeira eleição municipal uma guerra despropositada? Que Deus abrandasse os corações carregados de ódio, de ganância pelo poder. Mas que poder? Numa cidade que de cidade mesmo só tinha o nome.

O tiroteio continuou por horas a fio. A gritaria e os palavrões foram, pouco a pouco, diminuindo. O pipocar dos tiros também foi cessando. Novamente, Maria do Socorro entreabriu a janela, cautelosa. Medo de uma bala perdida. O que ela viu era ainda mais assustador do que antes.

Montes de corpos caídos, destroçados. Nas valetas o riacho de sangue já era caudaloso. Os dois candidatos a prefeito estavam caídos na calçada da igrejinha, um ao lado do outro, como se tivessem se matado. Na porta da igreja, o corpo do padre Filomeno Cardoso jazia com as mãos trançadas sobre o peito.

Àquela altura, imperava o silêncio. Até parecia que ela era a única sobrevivente daquela carnificina. Mas, outras pessoas também deveriam ter sobrevivido. Do contrário, seria uma lástima. De chofre, um menino ensanguentado chegou-se para ela, que se assustou. Era Mundinho, seu afilhado. Ela abriu a porta para acolhê-lo. Ele caiu em seus braços, arquejando. Morreu logo.

Maria do Socorro entrou em desespero. Abriu um berreiro desmedido. Mundinho era seu afilhado favorito, dentre alguns que ela tinha levado à pia batismal. Era como se fosse um filho. Do seu corpinho de seis anos, o sangue fluía por um sem número de furos. Tiros em profusão.

Na visão perturbadora de Maria do Socorro, o sangue de Mundinho inundaria a sua casa, a cidade, o mundo. Jorrava sem parar. Dona Janaína gritou na porta do quarto de Maria do Socorro: “Socorro, levante para se ajeitar. Hora do café. Daqui a pouco, começa a votação”.

Maria do Socorro, professora municipal, provinda do Pilar e, agora, na rede municipal da nova cidade, Brejão das Almas, acordou do pesadelo. Uma coisa horrorosa que lhe invadiu o sonho, ganhando força de pesadelo. Que Nossa Senhora do Desterro desterrasse as maledicências dos dois lados. Que a eleição não se desse suja de sangue.

Café tomado, foram as duas, mãe e filha cumprir o dever cívico. Tudo parecia tranquilo, apesar de muitas caras mal encaradas espalhadas pelos cantos. Seriam os pistoleiros, prontos para dar início ao banho de sangue do seu pesadelo? Que nada!

A eleição transcorreu sem sobressaltos. O genro do Besta Fera contava com a vitória. Afinal, gastara uma fortuna, comprando votos. Joca Mulatinho, pelo seu lado, já tinha comprado o terno para a posse. Confiava no seu jeito de lidar com as pessoas, misturando-se à raia-miúda.

Afinal, venceu Joca Mulatinho. Desbancou o Besta Fera e o seu genro endinheirado. Nove votos de diferença. No dia seguinte, um tiro certeiro derrubou o primeiro prefeito eleito de Brejão das Almas. Um pistoleiro postado por detrás do muro da casa de Severino Três Pernas, cabo eleitoral do Besta Fera, foi quem desferiu o tiro.

Joca Mulatinho foi levado, more-não-morre, para o acanhado hospital do Pilar. Resistiu. Escapou. Tomou posse no dia certo. Maria do Socorro tornou-se secretária municipal de educação. Quanto ao pistoleiro atirador, escafedeu-se. Mas, disseram depois que ele foi morto a mando do próprio Besta Fera. Tendo errado o alvo, passou a ser, então, o novo alvo.

Sertão de fogo. Meses depois, Besta Fera seria picado por uma cobra venenosa. Veneno poderoso. Sem antídoto.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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